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Sep 27, 2020 10 tweets 3 min read Read on X
Pequena amostra de como traduções ruins podem nos levar a cometer equívocos significativos.

Deparei-me com esse artigo do Mauro Iasi outro dia, não entrarei aqui na questão principal do texto, mas um trecho me chamou a atenção. +

pcb.org.br/portal2/23326/…
Do que conheço de Hegel, achei bem estranho que o sujeito que uma vez disse que o cristianismo realiza a unidade do Espírito na história pela unidade da Igreja com o Estado [visão distorcida do cristianismo, diga-se de passagem], diga que a religião seja opositora da verdade.
Eu não achei essa edição da Hemus que o Mauro Iasi faz referência, mas achei essa tradução da Edições 70 em que não se fala de "religião" ou "religiosidade", mas do pietismo.
E conferindo o texto original, de fato, Hegel emprega o termo "Frömmigkeit" - "piedade".
Bom, Hegel não está fazendo uma observação quanto à religião enquanto tal, mas a uma corrente específica do protestantismo, o pietismo, e dando uma indireta reta ao kantismo, pois, embora Kant criticasse o pietismo, no qual fora criado, sempre foi relacionado a ele.
E, de qualquer maneira, o kantismo comungava dessa posição que Hegel atribui ao pietismo, a impossibilidade de acesso à "verdade" - que, no caso dele, significa: a autoconsciência do Espírito na história em que as antinomias da razão são resolvidas.
Kant negava essa possibilidade, para ele o máximo que se podia ter era "fé racional" em questões do "suprassensível", onde as antinomias se manifestavam. Para Hegel, nesse âmbito, era possível haver "saber", ou seja, verdade.
Portanto, Mauro Iasi, e qualquer outra pessoa, pode fazer crítica em abstrato à religião se o quiser, mas não o pode fazer tomando Hegel por referência por este, supostamente, ter dito que a religião é "antagonista da verdade" - isso é falso.
E se deve levar em consideração, como já coloquei, que a verdade a qual Hegel se refere não é "qualquer" verdade em qualquer nível, mas a verdade num nível bem específico: a verdade "absoluta".
Penso, pois, que materialistas também reneguem [ou ao menos deveriam renegar] esse tipo de possibilidade de acesso do conhecimento, e, nesse caso, estejam do lado do pietismo e de Kant, não de Hegel.

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Jan 30, 2022
Passou aqui um meme sobre como o acadêmico anglo só sabe inglês e o latino-americano se vira (tem que se virar) com até duas ou mais línguas estrangeiras.

Eu acharia graça se não fosse de dar raiva.

Isso não mostra como somos melhores, mostra como somos dependentes.
O sujeito que é do mundo anglófono tem vantagem só nisso - de ser de língua inglesa. Porque mesmo não anglófonos, em muitas áreas, publicam boa parte de sua produção (quando não exclusivamente) só em inglês.
Se tu escreves qualquer merda em inglês as chances de ser lido e elogiado são muito maiores se escreves em língua "periférica", assim como qualquer bosta em inglês soa "refinada", quando uma boa análise em português ou espanhol soa "exótica".
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Jan 28, 2022
Todos nós conhecemos ao menos de três a cinco (muitos ainda mais) pessoas que MORRERAM de covid. O risco da covid é real E explícito, não é conjectura.
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Dada as MILHÕES de pessoas EM TODO O MUNDO que já foram vacinadas, SE as vacinas apresentassem risco, esse risco já seria real E explícito para, então, se julgar com razão e razoabilidade que “o risco supera o benefício”.
+
SE o risco das vacinas superasse o benefício, ENTÃO, cada um de nós deveria conhecer ao menos de três a cinco pessoas nas quais a vacinação significou algo tão ou mais pior que a infecção por covid, real E explicitamente, mostrou que significa.
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Read 8 tweets
Jan 27, 2022
Eu tenho percebido dois problemas nos trabalhos sobre "a falácia" ad hominem:

i. conceituação deveras abrangente - em geral, estendem o conceito a qualquer "menção" ao interlocutor, e quando percebem que a menção faz sentido, abrem a exceção, "esse é um uso legítimo".
Ocorre que não é o caso de ser um "uso legítimo do ad hominem", simplesmente não é o ad hominem; daí alguns autores diferem (considero válido) entre a falácia e a "argumentação" ad hominem.
ii. e, mais ou menos ligado ao anterior, os lógicos demonstram pouca ambientação em "política". Quase todos os textos trazem algum exemplo em política (é tema que fomenta a discussão), mas, até agora, todos que o fizeram trouxeram exemplos fracos em que a falácia não se aplica.
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Jul 26, 2021
Devemos saber fazer uma diferenciação entre "valores" e "práticas".

Genocídio indígena não era um valor no séc. XVII, era uma prática fundada em valores que estabeleciam também "não-valores". O valor era o que era ou provinha do branco, do europeu, do português. +
Tinha valor legítimo pera esse sujeito o que promovia e aumentava a sua vida (a despeito de vidas alheias).

Era uma axiologia exclusivamente etnocêntrica (digo "exclusivamente" porque toda valoração é, em alguma medida, etnocêntrica).
Bem, esse quadro de valores estabelecia também os não-valores, ou seja, tudo o que não provinha ou não aumentava a vida de dito sujeito e/ou que "ficasse no caminho" do aumento de sua vida, da expansão dela.
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Jul 26, 2021
Gostaria de contribuir aqui fazendo referência que essa tese já é heideggeriana. No §65 de "SuZ", Heidegger trabalha justamente isso, a precedência do futuro ante o passado e o presente, afirmando, por fim:

"O fenômeno primário da temporalidade originária e própria é o futuro".
Aliás, essa semana mesmo eu li essa entrevista do Álvaro Garcia Linera para a Jacobin Brasil que me fez recordar desse parágrafo de "Ser e tempo" ( a entrevista toda é excelente, super recomendo).

jacobin.com.br/2021/07/como-o…
Aqui a entrevista completa.
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Sep 28, 2020
Terminei essa leitura e digo sem medo de errar:

Esse livro é.... uma delícia! Super recomendo, gente amiga. O último capítulo, "A última viagem do Mouro", eu já havia lido na versão em artigo que há, e me emocionei de novo.

Só teria duas pequenas observações. +
1. A primeira diz respeito a uma crítica pontual que o Musto faz a Enrique Dussel quando inclui este entre os que, sem razão suficiente, defendem "um rompimento drástico de Max em relação a suas convicções anteriores [a respeito das comunas rurais russas]". pp. 76-77.
Bom, Dussel não pode ser incluído entre estes, pois, de fato, não tem essa posição, e isso se averigua na própria referência que Musto traz de Dussel. Creio que o trecho é claro o bastante, não necessitando de maiores comentários.

El último Marx. Siglo XXI. p. 260.
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