Pedro Cintra Profile picture
Mestre em física, amante de Legos, Ciência e Desenhos (Ele/Dele) / MSc in physics, passionate about science, drawings and Lego (He/Him)

Dec 27, 2022, 49 tweets

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Há muitas histórias interessantes sobre grandes experimentos na ciência.

Essa é a história de como a PREGUIÇA, um CIGARRO RUIM e uma GREVE moldaram um dos maiores experimentos de física do século 20 (fio grande mas tentei fazer bem completo).👇 #FisicaThreadBR

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A gente falha em ver cientistas como pessoas comuns e o quanto a sorte muda o jogo. Por isso, vamos conhecer a história por trás do experimento que todo aluno de física estuda nas matérias de mecânica quântica: O Experimento de Stern-Gerlach (SG)

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O experimento SG foi o experimento que mostrou uma propriedade intrinsecamente quântica. A orientação espacial do momento angular é quantizada! Essa descoberta foi a chave para a invenção de relógios atômicos, ressonâncias magnéticas, métodos para estudar proteínas..

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Esse fio é baseado em um artigo e na aula que meu queridíssimo amigo Felipe (o grande fera do fogo) deu em 2020 na 1ª Escola de Introdução à Mecânica Quântica na UnB organizada pelo @PETFisicaUnB (onde eu fui monitor hihihi). O link para ambos está no final do fio.

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Nossa história começa em 1913, quando o físico Niels Bohr apresenta seu modelo atômico para o átomo (algumas pessoas talvez lembrem de ter visto isso na escola). No modelo atômico do Bohr, as órbitas dos elétrons ao redor do núcleo são quantizadas. Ou seja +

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Elas são discretas. Só existem certas órbitas que o elétron pode ocupar. A consequência disso é que a energia que o elétron pode ter também é discreta, em um átomo de hidrogênio por exemplo, se considerarmos a órbita de menor energia = 0 (mais infos )+

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A segunda órbita possível com maior energia é 10.2 elétron-volts (eV, não se preocupem com as unidades aqui). O elétron não pode ter 2, 3, 4.5 ou 9 eV. Nenhum valor entre 0 e 10.2 é possível! Isso é a quantização. Esse modelo fez um sucesso ao explicar o espectro dos átomos!

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Para quem tiver mais interesse sobre isso, eu tenho um fio sobre espectros atômicos onde eu entro em mais detalhes sobre essa quantização:

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Acontece que existe outra consequência dessa quantização proposta pelo Bohr. É a quantização do momento angular! O momento angular nos dá a "quantidade de rotação" em um objeto. Algo como "O quão forte esse treco gira?".

Como o elétron só poder ter órbitas específicas +

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Seu momento angular também só pode ter valores específicos. Matematicamente, o momento angular L do átomo é escrito em termos de um número inteiro n (L = nћ). Ou seja, o momento angular só pode ser L = ћ, L = 2ћ, L = 3ћ... mas nunca algo como L = 0.2ћ.

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Aqui entra o primeiro nome do experimento: Otto Stern. Em 1921, o Stern notou que uma consequência da quantização do L era que a direção na qual esse momento angular apontava também devia ser quantizada (pois ela dependia do valor de L) e ninguém nunca havia verificado isso

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Basicamente, ele notou que além das órbitas serem específicas, a direção das órbitas também deveria ser específica! Isso é a quantização espacial. E ai vem a motivação do experimento! Se eu produzir átomos por emissão térmica (aquecer muito um metal até átomos saírem) +

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Os momentos angulares são totalmente aleatórios. MAS! Será que se eu for medir a distribuição de momentos angulares em laboratório, eu vou ver eles ocupando valores contínuos (como previsto pela mecânica clássica) ou valores discretos (tipo o nћ, previsto pelo Bohr)?

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Portanto, haviam 3 possibilidades. Se a distribuição de valores de L no feixe de átomos fosse contínua, isso indicaria vitória da física clássica. Se a distribuição for discreta (ћ, 2ћ, 3ћ...) = vitória da quântica. Se for algo entre os dois = nenhum dos dois está certo

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Stern ficou muito empolgado com a possibilidade de verificar a quantização espacial das órbitas. Stern conta que na manhã seguinte ele tinha que trabalhar cedo. Mas estava muito frio e ele estava com MUITA PREGUIÇA de sair da cama quentinha dele.

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Segundo ele "Eu fiquei lá deitado pensando, e tive uma ideia para o experimento".

E a ideia foi a seguinte! Não dá para medir o momento angular de átomos diretamente. Mas da para medir o momento magnético deles!

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Da mesma forma que o momento angular diz "Quão forte esse treco gira?", o momento magnético diz "Quão forte é esse treco como um ímã?" Acontece que o momento magnético (μ) depende diretamente do momento angular (L).
μ = -(e/2m)*L
(e = carga elétrica, m = massa)

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Então medir um, é igual a medir o outro. Portanto a lógica do experimento é:

Elétrons orbitando o núcleo tem um momento angular orbital. Então, átomos são pequeninos ímãs. Por serem pequenos ímãs, a trajetória deles é desviada quando passa por um campo magnético.

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E a intensidade dos desvio depende do momento angular da órbita do elétron!

E esse foi o pensamento fruto da preguiça de ir trabalhar no frio. Depois dessa ideia, Stern vai até seu colega de trabalho Walther Gerlach e Max Born contar aos dois.

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O Born não recebeu a ideia muito bem. Segundo ele:
"Me levou um tempo até eu realmente levar a ideia a sério. Eu sempre pensei na quantização espacial como um simbolismo para algo que você não entende. Mas levar essa ideia a sério..."

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Mas felizmente Gerlach, um especialista em campos magnéticos, viu valor na ideia e decidiu se juntar a Stern. De acordo com Gerlach:
"Nenhum experimento é burro o suficiente que não deveria ser tentado"

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Os dois pensaram juntos em um arranjo experimental e chegaram no seguinte:
Um forno emite termicamente átomos de prata (área do Stern) que são colimados em um feixe e passam por um campo magnético para serem desviados (área do Gerlach), até baterem em uma chapa de vidro

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Com o ímã desligado, os átomos simplesmente seguem uma linha reta e batem no vidro deixando um pontinho nele. Com o feixe ligado, os átomos são defletidos, e a deflexão vai deixar sua marca no vidro.

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Se a mecânica clássica estiver certa, e a órbita do elétron no átomo puder ter qualquer valor de momento angular e qualquer direção, a deflexão forma uma linha continua.

Já se a quântica de Bohr estivesse certa, as marcações no vidro seriam discretas, com marcas espaçadas

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Só que temos um erro rude aqui que na época nossos amigos não conheciam (a teoria de Schrodinger só foi publicada em 1926 e a teoria mais completa de Dirac em 1928).

Spoilers: O modelo do Bohr não explica totalmente um átomo.

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Há órbitas onde o momento angular é zero (isso porque na verdade o elétron não gira em volta do núcleo). E usando o que sabemos hoje sobre mecânica quântica, a gente sabe que o momento angular total de um átomo de prata é ZERO.

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Ou seja, o momento magnético é zero e os átomos nunca deveriam ser defletidos pelo campo magnético. Mas eles observaram o feixe de átomos sendo desviado! De onde vem esse momento magnético então?

Ele vem do próprio elétron! O momento angular do próprio elétron. O SPIN

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Sem saber, Stern e Gerlach estavam na verdade medindo não quantização das órbitas dos elétrons, mas a quantização do momento angular do próprio elétron!

Isso quer dizer que o elétron gira em torno de si mesmo? Tipo um peão?

Não, ele não gira.

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O que é o spin então?

Pois é, ninguém sabe não. Ele é uma propriedade fundamental do elétron (e todas as partículas). O que é uma forma bonita de dizer que a gente não sabe explicar o que ele é, mas tá lá.

Mas como ele tem momento angular se não gira?
¯\(ツ)/¯

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Mas voltemos ao experimento.

Além deles estarem medindo sem querer o momento angular intrínseco do elétron (spin) ao invés do momento angular orbital. O que eles viram? O universo atômico é quântico ou clássico?

Bem... nada kkkk

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É sério, eles fizeram o experimento várias vezes e quando olhavam para a chapa de vidro... não tinha nada lá. A camada de prata que se depositava na chapa era tão fina que era quase impossível de ver.

Até que em uma das execuções o Stern conta o seguinte:

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"Após liberar o vácuo, Gerlach removeu a placa. Mas ele não conseguia ver nenhum traço do feixe de prata e me deu a placa. Com o Gerlach espiando por cima dos meus ombros enquanto eu olhava mais de perto, ficamos surpresos ao ver o traço do feixe emergir gradualmente . . .

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Finalmente havíamos entendido o que tinha acontecido."

E o que tinha acontecido? Bem, notem uma coisa: Em TODAS as fotos que mostrei do Stern e do Gerlach, eles estão com um cigarro ou charuto na mão

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Os dois fumavam que nem duas chaminés!

"Na época eu era o equivalente a um professor assistente. Meu salário era baixa demais para comprar cigarros bons, então eu fumava cigarros ruins. +

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Eles tinham muito enxofre neles, meu bafo na prata transformou a prata em sulfeto de prata, que era bem preta e facilmente visível." - Otto Stern

É isso ai, o bafo dos dois fumantes era tão brabo que reagiu com a prata e permitiu que eles vissem a marcação do feixe.

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E se você acha que isso ai é lorota, esse mesmo experimento com as mesmas condições foi replicado em 2003 pelo Bretislav Friedrich e o Dudley Herschbach pra testar se dava mesmo pra isso acontecer. E dava sim.

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Mas ainda assim, as marcas eram muito borradas e tirar conclusões do experimento era difícil. E nesse meio tempo, o Stern recebeu uma proposta de assumir uma posição em outra universidade. Ele conversa com o Gerlach e ambos decidem desistir do experimento

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E por incrível que pareça, no dia em que Stern iria embora. Uma greve de ferroviários impede ele de pegar o trem. Com a viagem atrasada em mais de um dia, ele decidiu revisar os dados do experimento e resolveu dar mais uma chance ao experimento.

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Ele e Gerlach voltaram ao laboratório, melhoraram o alinhamento dos feixes e fizeram uma última tentativa.

E foi nessa tentativa, que o resultado saiu! Claro e sem dúvidas. Havia uma separação bem evidente nos feixes, se depositando em apenas dois lugares na chapa.

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Uma distribuição discreta! E mais! Apenas com dois valores de deflexão, ou seja, apenas dois valores possíveis para o momento magnético e por consequência, para o momento angular.

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Vamos dar uma olhada nesse resultado. Embaixo, tem uma linha fina que é o feixe dos átomos sem campo magnético. Em cima, o resultado com o campo magnético, onde vemos a linha se abrir em duas (formando tipo uma boca).

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O fato da linha não se dividir totalmente e parecer essa boquinha se dá devido ao campo magnético usado, que não era homogêneo na linha horizontal. Portanto, as partes do feixe que estavam mais longe do centro do campo se defletiram menos e por isso mal se separaram.

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Já essa coisa no meio que dá uma pontinha é devido a um desalinhamento do feixe, que saia um pouquinho mais perto do topo do ímã do que do chão do ímã. Essas partículas acabam sofrendo uma força maior e causam essa pontinha.

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Ster e Gerlach mostraram, sem querer, que o elétron em um momento angular intrínseco. E mostraram que ele é quantizado. Mostraram que a direção na qual esse momento angular aponta são só duas possíveis. Esse é o resultado do experimento de Stern Gerlach

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Tudo graças à preguiça do Stern de sair da cama, aos cigarros ruins que ele e o Gerlach fumavam e à greve ferroviária que fez eles darem uma última chance!

Nas palavras do Einstein:
"A conquista mais interessante até este ponto é o experimento de Stern e Gerlach."

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Com o passar dos anos, o resultado foi melhorado e hoje em dia não restam dúvidas das conclusões feitas pelos dois.

Essa é uma história incrível, na minha opinião. Ela mostra como a ciência é não linear e como o acaso pode mudar tudo.

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O experimento de Stern-Gerlach teve um impacto enorme na física do século 20. É uma pena que a gente nos cursos de física estude tanto esse experimento, mas não tanto a história dele. A história da física é muito mais regada ao acaso do que a gente pensa.

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A história desse experimento e a replicação dele estão nesses artigos:
physicstoday.scitation.org/doi/pdf/10.106…

nature.com/articles/s4225…

E as aulas da escola de mecânica quântica dadas pelo Felipe e meu ex orientador estão no Youtube

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