Thread by @alexandre786

# Fio sobre a falta de imaginação de certos cultos políticos e religiosos #

Meu avô não foi à guerra. Talvez eu não existisse se ele houvesse ido, uma vez que minha mãe só nasceu em 1950, e guerra... Bem, guerra é guerra.

Ele era militar, no tempo da guerra. Da segunda grande guerra. E, como muitos jovens de sua época, queria ardentemente servir (ou assim me foi contado). Mas, era negão, e era banguela. Elegantemente, disfarçadamente, banguela. Mas banguela, todavia.

Meu avô ficou contrariado de não poder servir a pátria lutando contra o mal do nazi-fascismo na Europa. Muito tempo depois, quando lhe nasceram os primeiros netos, descobriu que não ter ido à guerra tinha muitas vantagens. Por uma, estava ali, segurando os netos.

Por outra, contar para eles que tinha ido à guerra, e inventar estórias emocionantes sobre ela não custava nada, e era uma habilidade na qual o Tenente Adauto se destacava. Os meus olhos brilhavam.

Vez por outra, ele deixava uma ou outra lacuna em sua história, para atiçar nossa imaginação, e provocar riso, porque, na verdade, aquelas estórias não eram mentiras. Todo mundo sabia que ele não tinha ido à guerra. Inclusive o motivo.

Mas isso não impediria o tenente de apertar os olhinhos pequenos e falar de quando sobrevoara Casablanca, "palco da maior história de amor de todos os tempos". Um romântico inveterado, o Tenente Adauto.

Uma vez, contava-me de seu treinamento na Amazônia, em que ele, de folga, ia tomar banho nu num igarapé, quando apareceu um jacaré.
— Rapidamente Eu puxei minha faca de caça — disse ele — enfiei no pescoço do bicho e saí puxando até a ponta do rabo.

— Mas vovô — eu perguntei, com aquela curiosidade insaciável das crianças — de onde o senhor tirou essa faca de caça, já que estava nu?
— Você não quer ouvir estórias — dizia, numa irritação mal-simulada — Quer é criar caso.

No caso do meu avô, a frase "criar caso" era o *punchline*, o final engraçado para o qual sua estória vinha me configurando a expectativa.

Alguns cultos políticos e religiosos são, lamentavelmente, imunes à sutil e relaxante embriaguez do humor. Se são engraçados essa não era sua intenção. Se tentam ser, decerto querem ferir alguém. Não sabem contar estórias, como o Tenente Adauto, mas contam.

E tentam, agora, com suas estórias mal contadas, recontar a história.
Os criadores de caso não são curiosos inocentes, como nós, os netos do Tenente. São jornalistas e cientistas, gente que busca a verdade, essa mesma, com "v" minúsculo, a verdade factual.

São encarados com hostilidade e desconfiança. Demitidos. Perseguidos. E onde impera a obtusidade, a ignorância orgulhosa de si mesma, a fealdade que não se reconhece, criadores de caso são essenciais.
Quanto mais negados, mais necessários serão.

Os cultos políticos e religiosos mais obtusos de nossos tempos querem sufocar a beleza porque nela não se reconhecem. São como vovôs sem senso de humor, sem conseguir rir de si mesmos.

Não sabem configurar a expectativa de sua audiência, e nem precisariam saber: ela já foi vacinada contra o "vírus" dos criadores de caso.

Deste modo, apenas têm que usar a curta imaginação para preencher as muitas lacunas de uma estória cuja moral é óbvia, e representa tudo o que as três últimas gerações descobriram com suas vidas: que é possível ser uno na multiplicidade.

Que é possível ver beleza no que nos é avesso. Que é possível criar caso, e provocar um final mais digno, mais engraçado e menos trágico do que nossas expectativas conseguem formular a partir do solene esquecimento silencioso das lacunas dessas estórias sem graça que eles contam.

Tenente Adauto disse bem. Eu não quero apenas ouvir estórias. Eu quero criar caso, com os criadores de caso, para que a estória contada seja, como todas as boas estórias são, a semente de onde brotará a nossa futura história.

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