Thread by @mizanzuk

Valêncio Xavier é um dos autores que mais me influenciou. Misturava cinema com literatura, vanguardista pra cacete.

Seu livro mais famoso é "O Mez da Grippe", publicado na década de 1970. Se passa durante o surto de Gripe Espanhola em Curitiba, em 1918.

Usando tipografias diferentes e recortes de jornais da época, Valêncio faz uma colcha de retalhos de narrativas paralelas: a 1a Guerra, a gripe, relatos orais de gente q viveu o surto, e o fluxo de pensamento de um maníaco que anda por Curitiba enquanto todos estão em quarentena.

"um homem eu caminho sozinho
nesta cidade sem gente
as gentes estão nas casas
a grippe"

Esse trecho me dá calafrios até hoje.

Valêncio nunca fala nada. Ele joga na sua cara e você tem q pegar as pistas.

No início do surto, propagandas de cortinas.
Depois q começa a grippe, os anunciantes são desinfetantes, xaropes etc.

A guerra pegando na Europa.
E um maníaco andando sozinho pelas ruas.

A Dona Lúcia, que sobreviveu a Grippe, conta suas memórias da época. É minha personagem predileta.

Esse homem me dá medo

Eles também tiveram problemas em enterrar seus mortos

A imprensa estava sendo censurada. Não podia falar do q estava acontecendo. Não queriam criar pânico. Mas os jornalistas e a população sabiam q tinha algo errado.

Depois q todo mundo tava doente, não havia outro assunto. Eventos públicos foram cancelados. Mercados e pharmacias foram autorizados ficar abertos durante domingos e feriados.

O ministério da justiça e negócios interiores tentava instruir a população sobre oq fazer.

O aviso no final é prova de que não melhoramos muito em 100 anos.

Imprensa censurada, jornais reclamando que os dados oficiais não condiziam com a realidade.

No final, há esses números.
Curitiba tinha 73 mil habitantes.
Adoeceram 45.249.
Oficialmente, foram 1.466 óbitos.

0,84%

Mas pode ter sido mais.

Eu li esse livro pela primeira vez em 2008. Já cansei de usá-lo em cursos de design e de narrativa.

Ontem eu o reli e nunca foi tão assustador. Tudo se tornou realista demais.

Ao mesmo tempo, me faz pensar que novos Valêncios Xavier vão surgir para contar a história desses dias.

Há tb algo de reconfortante em saber q já passamos por isso e estamos aqui ainda.

Resistiremos, nem que seja em memória.

Essa reedição da Cia das Letras tá esgotada há anos. Se vc encontrar em sebo, vai estar caríssimo. A edição original então deve valer uma herança inteira.

Então, pra quem se interessou, um passarinho me passou esse PDF aqui.

drive.google.com/file/d/0BwUJPT…

(dedico a thread aos autores brasileiros que conheci em 2008 e q me fizeram me apaixonar por contar histórias: @alargedenial @cabrapreta e @jocaterron, q sei q curte muito o Valêncio tb.

E claro, @lourenmutarelli, q é uma pessoa inteligente o suficiente para não usar o Twitter)

ANEXO I: essa reedição da Cia das Letras do livro do VX tem outros livros além do Mez da Grippe. Um deles é um chamado "13 Mistérios + O mistério da porta aberta".

São pequenos contos q tem sempre um mistério como motor narrativo, ñ necessariamente tem conclusão, são incríveis.

Pois o meu querido amigo @gil_baroni (q é um baita diretor e roteirista) trabalhou na adaptação desse livro para o cinema. O filme se chama "MYSTÉRIOS", é de 2008, e o Gil liberou para ser visto INTEIRO durante esse tempo de confinamento.

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