Thread by @lucasbulgar

O Brasil está lotado de casos como o da menina de 10 anos. Em pesquisa de campo para mapear a circulação da ideologia de gênero no Brasil encontrei portas de banheiro masculinos em cidades do interior em que eram escritos como ocorriam estupros de menores em casa. (1)

Durante o trabalho de campo ouvi sobre os ciclos de estupro, quando o pai ou padrasto estupra a filha ou enteada, a engravida e passa a estuprar a criança nascida da relação. Em geral vizinhos e familiares sabem e o silêncio é difícil de romper. (2)

Em várias cidades em que os ciclos de estupro ocorrem também são pautados projetos de lei municipais de supressão do debate de gênero nas escolas e pressão de pais sobre professores e diretores. O problema sempre está fora do núcleo familiar, nunca dentro. (3)

Na linguagem da id. de gênero, estupro, homossexualidade, transexualidade e aborto pertencem ao mesmo domínio do diabólico. Por isso os movimentos LGBT e feministas são tratados no registro da conspiração, de portadores uma ideologia que atenta às leis da natureza. (4)

A ideologia de gênero tem sido uma das ferramentas mais bem sucedidas da direita no Brasil. Ao disputar o gênero e a sexualidade no campo da política, oferece uma compreensão útil para valorar um mundo em transformação em que feminismo e lutas LGBT pautam direitos sociais (5)

Mesmo conquistas insuficientes sobre gênero e sexualidade são utilizadas como evidência de que o Estado foi contaminado pela id de gênero. A pesquisa da @kalil_isabela tem apontado esse deslocamento do Estado para a família na administração das ações desenvolvidas por Damares.

Essa interpretação não se coloca contrária aos direitos, mas a favor de direitos para sujeitos específicos. Muitos se levantaram para dizer que defendiam “as duas vidas” no caso da menina, enquanto a esquerda estaria defendendo a “vida de uma criança e a morte de outra” (5)

O que a campanha de abstinência sexual p/ jovens, peça chave da atuação da Damares, tem a contribuir com uma menina de 10 anos estuprada pelo padrasto? Relativizar a responsabilidade do padrasto atribuindo uma influência diabólica a ele e questionar responsabilidade da vítima (6)

Mas, sobretudo, consegue manter as dinâmicas de abuso contra menores de idade e mulheres e a exclusão e a violência contra jovens LGBTI, no domínio do privado, sem interferência do Estado. Não há cortina de fumaça alguma nisso, é uma política de governo em curso. (7)

A @jamoteka tem demonstrado na pesquisa dela a trajetória da Damares no ativismo de desmonte das garantias relacionadas a gênero e sexualidade. A articulação antigenero no Brasil não começou com Bolsonaro e tem sido tarefa de pesquisadores/as investigar esse vasto ecossistema (8)

Damares é uma vitrine importante dessas ideias, mas há canais de youtube, editoras, rádios e canais de televisão evangélicos, documentos e produção de teoria teleológica pela Igreja Católica, instituições transnacionais, campanhas e eventos (9)

Não é burrice, não é fé cega, não é a influência do zap apenas. Essas explicações não ajudam a entender porque parcelas inteiras da população participam e mantêm estruturas de violência enquanto atribuem a culpa da desordem do mundo ao diabo, à esquerda, aos LGBT, ao kit gay (10)

São fenômenos que despertam engajamento político e afetivo, um sentimento de luta justa, um combate moral em prol do “bem”, sensação de pertença, ferramentas de compreensão de mundo. Enfrentar as campanhas pró-vida e antigenero passa por entender seu alcance e mecanismos (11)