Em 1987, uma multidão de gremistas e colorados lotou o saguão do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, pra recepcionar com entusiasmo uma pequena comitiva de quarto reservas do Grêmio que estavam voltando da Suíça. O motivo mostra como o Brasil tem orgulho do seu machismo.
O Grêmio era pela terceira vez consecutiva campeão gaúcho. Próximo passo: cruzar o Atlântico em excursão para a Philips Cup, na cidade de Berna, Suíça. De cara, o Grêmio venceu o Benfica, de Portugal, impressionando pelo segundo ano seguido a garota Sandra Pfäffi, de 13 anos.
Como no ano anterior, Sandra decidiu visitar a delegação do Grêmio que estava hospedada no Hotel Metropole. Acabou batendo de forma aleatória no quarto 204. Foi atendida. Lutando contra a barreira do idioma, tentou comunicar que gostaria de ganhar uma camiseta como souvenir.
Do outro lado da porta estavam os reservas do Grêmio Eduardo Hamester e Fernando Castoldi, que convidaram os visitantes a entrar, tentaram manter uma comunicação por grunhidos e gestos sem sucesso.
A situação chamou a atenção de Henrique Etges e Alexi Stival, conhecido como Cuca. Ao verem a movimentação no quarto, entraram. Fecha-se a porta.
Sandra foi estuprada dentro do quarto no que os jogadores consideraram uma orgia. Jogaram-se sobre ela, imobilizaram. Dois homens a violaram, enquanto outros dois a acariciavam e seguravam.
Após 30 minutos de terror, Sandra foi à polícia e a equipe, aos treinos. Henrique e Eduardo foram presos na noite de quinta-feira. No dia seguinte, toda a delegação do Grêmio foi convocada pra reconhecimento dos demais envolvidos através de um espelho falso.
E assim estavam presos na Suíça, sob a acusação de estupro, os reservas gremistas Henrique, Eduardo, Cuca e Fernando, cada um em uma cela distinta e incomunicáveis – exceto por advogados – até o fim do inquérito, conforme a legislação do país.
Comitivas, advogados, Itamaraty, Embaixada, até João Havelange, à época chefão da FIFA foram tentativas de intervir sem sucesso pra livrar os rapazes entre 21 e 24 anos. O chefe da delegação insistia em dizer que foi um mal entendido pela barreira da língua que causou a situação.
A legislação da Suíça proibia relação sexual com menores de 16 anos. Crime sério. A denúncia de estupro, então, dispensa qualquer tipo de comentário em relação à gravidade.
O fato ganha destaque no noticiário internacional, respeitando a identidade da vítima. No Brasil, com especial destaque nos jornais gaúchos, foi dada abertura a palpites, comentários e achismos diversos, porém quase unânimes na defesa dos jogadores.
Presos, os jogadores estavam incomunicáveis até o término do processo, o que poderia durar até 30 dias. Não tinha como obter informações ou qualquer tipo de privilégio na Suíça, pois o sigilo judiciário lá é quase hermético.
Um embaixador da Suíça teve acesso às acusações e de fato, disse que eram gravíssimas. Entretanto, a menina, que até então tinha 13 anos, passa a ter “14 anos incompletos” que logo, por comodismo de discurso, viraram 14 anos. Para os jogadores, a idade era outra: 18. Parecia 18.
Foi dito que Sandra entrou no quarto dos rapazes e começou a tirar a roupa, se oferecendo. Quem afirmou foi o China, titular do time que já conhecia a menina da excursão do ano anterior.
Ela estava tentando tirar a blusa que usava na hora para trocar por uma camisa do Grêmio.
A família também era entrevistada, afirmando que os jogadores seriam incapazes de fazer isso. Muito se falou sobre a índole impecável dos quatro. Aliás, se isso aconteceu mesmo, a culpa é da menina, que não deveria se meter no meio de quarto marmanjos assim.
Quase ninguém acreditava que eles tivessem estuprado a garota. Afinal, era uma “mocetona”, conforme expressão da época. A teoria difundida que ela havia se oferecido para orgia, pois no dia seguinte estava com uma camisa do Grêmio vendo um jogo.
Diziam também ela já tinha transado antes e com o namorado, que estava com ciúme do que aconteceu no quarto 204 e foi enganado com a história do estupro. Na imprensa brasileira, informavam que jovens europeias têm vida sexual ativa muito cedo, inclusive tomam pílula desde novas.
Para provar que era uma “mocetona” o fotógrafo Paulo Dias do Zero Hora fez de tudo pra tirar uma foto da menina, apesar do sigilo da sua identidade. Conseguiu pegar ela na saída da escola com a mãe. Quase apanhou de uns suíços no ato pela falta de respeito de fotografar uma menor
Tentou vender a foto pra imprensa europeia, mas não conseguiu. Em compensação, a foto foi destaque no jornal O Globo e Jornal do Brasil. O repórter que o acompanhava conta, aos risos, que também chantageou um repórter pra obter o nome completo da Sandra.
Depois de 28 dias presos, os jogadores foram liberados. Pagaram fiança e uma indenização à garota. Depois foram condenados, mas nunca cumpriram a pena. Os rapazes podem circular por aí livremente, como estão até hoje. Basta não pisarem na Suíça.
Após saírem da prisão, os rapazes admitiram sua culpa. Eles estavam muito envergonhados. Saíram da Suíça com medo da recepção, de como seriam julgados após 28 dias incomunicáveis. O horário do voo pra Porto Alegre foi escolhido a dedo para evitar a imprensa.
De fato, mal sabiam o que esperava os “Doces Devassos”, apelido que a imprensa esportiva gaúcha deu para os rapazes: um grupo de 500 pessoas entre imprensa e torcedores colorados e gremistas ocupava o Salgado Filho. No topo, as bandeiras do Inter e do Grêmio unidas.
O clima no desembarque era de festa. Envergonhados e pedindo desculpa, os jogadores do Grêmio demoraram para entender o que os gritos ensurdecedores de “PUTA, PUTA, PUTA!!!” e seu real significado. Eles eram heróis. Vítimas solitárias. Machos.
Depois, a retomada. Fizeram ensaio de foto, entrevista de heróis sobreviventes. Vítimas. Só voltaram a ser notícia quando saiu a condenação na Suíça. Seguiram jogando no Grêmio, já que a diretoria recebeu milhares de cartas pedindo pra que os garotos não fossem punidos.
Só precisaram pagar as custas dos advogados, processo e indenização mensalmente para o Grêmio.
Hoje, Cuca é treinador de um dos maiores times do país, o Santos, e teve passagem em diversos clubes no Brasil e no exterior.
Sandra teve depressão e tentou suicídio aos 15 anos.
Eu queria fazer um comentário pra todos os torcedores do Internacional que mandaram mensagem pra mim por DM afirmando que a torcida do Inter jamais receberia jogadores do Grêmio no saguão, ainda mais em tais circunstâncias:
Não sei se vocês viram com profundidade a thread, mas ela é toda fundamentada em matérias jornalísticas e prints que sustentam a narrativa. Eu nasci em 1992, não vivenciei isso acontecendo, não sou testemunha ocular nem escrevi as mais de 27 matérias que li pra montar a thread.
Podem ler os prints de matéria ao longo da leitura, assim vocês vão ver que a informação não foi inventada por mim.
Felizmente e infelizmente as torcidas têm mentalidade heterogênea e sim, eu acredito que você não conheça ninguém que torce pro seu time e faria algo do tipo.
Infelizmente nossos amigos, conhecidos, colegas, família etc. são apenas uma amostra pessoal da realidade que não a representa com fidelidade. A história toda tem pontos absurdos e inacreditáveis que podem trazer à indignação qualquer um. Esse detalhe é, sinceramente, o +
de menos. O estado de negação das coisas faz parte da estrutura que mantém pessoas como o Cuca sendo respeitadas e passando incólumes por escândalos desse nível. Espero que compreendam e usem sua voz pra lutar contra situações como essas no momento em que se repetirem, pois +
se sobrou uma certeza, é a de que infelizmente essas coisas se repetem e se repetirão. Meu objetivo foi não deixar cair no esquecimento o que aconteceu. Não criei factoides por uma estética narrativa. Conto com o bom senso de vocês.
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CLIENTES POR FSVOR CALMA SEM AGREDIR POR FAVOR CLIENTES PAREM DE BRIGAR PELAS CAMISETAS VCS VÃO SE MACHUCAR TEM CRIANÇAS NO SITE CUIDADO!!!!!!!!!
ALGUÉM PODE POR FAVOR CHAMAR A POLÍCIA UMA CLIENTE SEQUESTROU UMA ARARA DE BRUSINHAS E ESTÁ SE ESCONDENDO NO BANHEIRO DISSE QUE SÓ SAI SE LIBERAREM UM MOLETOM M PRA ELA!!!!
Copa do Mundo em ano de eleição é uma instituição, mas nem sempre foi assim.
Em 1994, votamos sendo tetra:
Quatro vezes campeões no futebol.
Vencendo a quarta maior hiperinflação do mundo.
Elegendo quem ia se reeleger em 4 anos.
Me siga se quiser ler, mas a thread é longa.
Antes de falar das eleições de 1994 propriamente ditas, precisamos entender o que tava rolando no Brasil até essa eleição chegar.
Em março de 1990, Fernando Collor assumiu a presidência da república, sendo o primeiro presidente democraticamente eleito após a ditadura.
Pra entender melhor sobre como o Collor chegou lá, seria legal você saber sobre como foi a eleição de 1989 nessa thread aqui:
Em 15 de novembro de 1989 o povo brasileiro pôde finalmente votar para eleger diretamente o presidente da república, algo que não acontecia desde 1960. Era um dia emblemático: aniversário de 100 anos da república, fundada em 1889.
Me siga se quiser ler, mas essa thread é longa.
A campanha eleitoral pra presidente era uma novidade. E mais que isso: foi uma eleição dita “solteira”, ou seja, sem a tradição que já conhecemos de votar pra deputados, governador e presidente.
Houve campanha pedindo diretas em 1984, é verdade, mas só em 1989 isso foi possível
No ano anterior, em 1988, foi promulgada a nova constituição do Brasil, a constituição cidadã, feita por deputados eleitos pelo povo, os deputados constituintes, sendo um dos marcos do fim da ditadura militar. Nela, foi determinado um mandato de 5 anos para presidente.