Comunidades na foz do Amazonas, o maior rio DO MUNDO, não têm água para beber há semanas
É possível que parte da culpa seja de búfalos (ou melhor, de quem resolveu criá-los nesta parte da Amazônia)
Eis uma das histórias mais surreais que ouvi nos últimos tempos. Fio:
Primeiro, vamos nos situar
As comunidades hoje sem água para beber moram no arquipélago do Bailique, que fica na foz do rio Amazonas, no Amapá
Por essa região, nada menos do que um quinto de toda a água doce do planeta é escoada para o mar. Como então elas não têm o que beber?
Parte da resposta tem a ver com um fenômeno natural
Nesta época do ano, o fluxo do Amazonas diminui, o que facilita o avanço da água salgada (imprópria para o consumo) rio adentro
Quando o rio sobe no fim do ano, o fenômeno perde força, e a água volta a ficar doce. Porém...
...antes, menos da metade das cerca de 50 comunidades do Bailique eram afetadas pela salinização
Hoje o fenômeno passou a atingir todas. Como não há água encanada no arquipélago, toda a água potável tem que vir de bem longe
Um galão de 20 litros está custando até R$ 25 por lá
Mas o que isso tem a ver com os búfalos?
Olhem bem para a animação. Ela mostra uma drástica mudança no curso do rio Araguari de 2011 pra cá
O Araguari desaguava no Atlântico ao norte da foz do Amazonas
Mas, nos últimos anos, a foz desse grande rio amazônico simplesmente SECOU
Essa mudança ocorreu após a criação espontânea de um canal chamado Urucurituba, que ligou o Araguari ao Amazonas
Em poucos anos todo o fluxo do Araguari se direcionou para o canal, fazendo com que o rio deixasse de desaguar no mar e virasse um afluente do Amazonas
Eu disse que o canal surgiu espontaneamente, mas não foi bem assim
Estudos apontaram que a abertura desse canal muito provavelmente foi influenciada por duas ações humanas
A primeira foi a construção de 3 hidrelétricas na parte alta do Araguari, que reduziram o fluxo do rio
A 2ª foi a intensa criação de búfalos na região
Ao pisotear os mesmos locais, esses pesados animais podem ter aberto uma vala que, com a força das águas, se ampliou até desviar o curso do Araguari
Há 202 mil búfalos na bacia do Araguari, número três vezes maior que o de humanos
Alan Cunha, prof da Univ Federal do Amapá, me explicou:
Quando o Araguari desaguava no Atlântico, ele ajudava a empurrar para longe da costa a água salgada que ronda o arquipélago do Bailique
Quando a foz secou, o sistema perdeu força, o que pode estar ampliando a salinização
Essa hipótese é reforçada por ribeirinhos, que apontam que a salinização começou a se agravar justamente após a formação do canal de Urucurituba
Aliás, a formação do canal também provocou o fim de um fenômeno pelo qual o Araguari era conhecido mundialmente, a pororoca
As ondas da pororoca ocorrem a partir do choque entre o fluxo do rio e a maré
Como o Araguari não encontra mais o mar, as ondas que avançavam rio adentro deixaram de se formar
Alan Cunha, da @unifapoficial, cita outra possível causa para a salinização: a elevação do nível do mar causada pelas mudanças climáticas
Segundo a Nasa, o nível já subiu 20 cm, o que pode ter mudado o equilíbrio entre o fluxo do rio e o mar, facilitando o avanço da água salgada
A salinização no Bailique fez as autoridades decretarem estado de emergência. Campanhas para a distribuição de água e alimentos estão em curso
Mas o que ocorrerá se o fenômeno continuar se agravando? Quantas outras comunidades ficarão sem água?
O nível médio dos oceanos deve subir até 1,1 m até o fim do século. Isso deve inundar várias regiões costeiras, forçando as populações a migrar
Para comunidades em estuários como o do Amazonas, porém, escapar da inundação pode não ser suficiente, pois pode faltar água para beber
Para quem quiser saber mais, este é o estudo que aborda as possíveis causas para a mudança no curso do rio Araguari researchgate.net/publication/32…
Alguns achando absurda a tese de que búfalos ajudaram a mudar o curso do rio
Já citei o estudo que trata do tema e sugiro que se pesquise sobre o impacto dos búfalos na Austrália. Erosão, criação de canais, salinização… tudo amplamente documentado por lá awe.gov.au/sites/default/…
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