A SAGA DE UMA CAMISA
Voltei da Argentina com a missão de trazer uma camisa de futebol para o meu filho. “Mas não dessas que a gente também encontra no Brasil, como a do Boca ou a do River”, conforme expliquei a Jesús, o atencioso vendedor venezuelano da loja I Love Gifts.
“Entendo... Você deve estar querendo uma do Independiente, do Racing ou do San Lorenzo”, ele me respondeu. “Não, não!”, protestei. “Eu estou atrás de uma camisa daqueles times de bairro, que não disputam a primeira divisão.” E assim começou a saga que eu vou contar nesta thread.
Foi uma saga, mesmo, porque eu e minha mulher embarcaríamos de volta para o Brasil na manhã do domingo, já eram 17 horas do sábado e nós ainda não tínhamos encontrado a camisa que eu queria. O atencioso Jesús até parou de atender outros clientes só pra me ajudar.
Então Jesús me disse: "Esse tipo de camisa você só conseguirá nas sedes desses clubes 'más chicos' (menores)”. Uma rápida busca na internet pelo celular de Jesús foi o bastante para saber que eu estava a apenas 750 metros do Club Atlético San Telmo, do bairro de mesmo nome.
San Telmo é o bairro mais antigo de Buenos Aires. Por sua vida cultural agitada e pelo comércio de antiguidades, lembra os points paulistanos de Vila Madalena e Praça Benedito Calixto. O time atualmente joga em Avellaneda, mas mantém sua sede lá mesmo, em San Telmo.
Calle (rua) Peru, 1360. Era esse o endereço do C.A. San Telmo, que naquele fim de tarde de sábado estava fechado. Mas toquei o interfone e uma voz feminina atendeu. Em bom portunhol, tratei de explicar que era do Brasil e queria comprar uma camisa do time para "mi hijo".
A dona da voz tratou de me dar um outro endereço: calle Bolivar, 1257. Lá, no ginásio poliesportivo, ficava também a loja do clube, onde eu poderia comprar a camisa. Eram só mais 250 metros, que pareceram intransponíveis porque minha mulher, Patrícia, estava com uma bolha no pé.
Lá dentro, alguns garotos jogavam futebol, um deles com a camisa do Vasco. O porteiro, Matheus, gentilmente nos disse que a loja estava fechada, mas poderíamos comprar o que quiséssemos de segunda a sexta, no horário comercial. Expliquei que voltaríamos ao Brasil já no domingo.
Matheus, então, se propôs a nos vender a camisa de um dos manequins que estavam em uma vitrine à qual ele tinha acesso, desde que conseguisse por telefone a autorização para isso. Conseguiu, mas a camisa era pequena demais para alguém de 17 anos, como o meu filho.
Agradecemos e nos retiramos, conformados em trocar a ideia da sonhada camisa por uma outra lembrança qualquer a ser comprada no ponto comercial da calle Florida. Voltamos ao prédio da sede principal do San Telmo, onde sabíamos que poderíamos utilizar o Wi-Fi para chamar um uber.
Enquanto a Patrícia chamava o Uber, resolvi fazer uma última tentativa. Chamei de novo a mulher da voz misteriosa pelo interfone, expliquei que a loja estava fechada e perguntei se além dela não havia ninguém no prédio que pudesse me vender uma camisa do San Telmo, mesmo usada.
Fez-se um longo silêncio do outro lado da linha. Finalmente, quando ela percebeu que eu não ia desistir mesmo, resolveu responder: “Un ratito”. O que para nós, em português, significava um esperançoso “um minutinho”.
Enquanto eu esperava, apareceu na calçada um casal em dificuldades, tentando transportar uma senhora idosa de uma cadeira de rodas para o banco dianteiro de um automóvel. Resolvi ajudá-los, e a porta do San Telmo se abriu justo quando eu estava no meio daquele processo.
Naquela hora, Patrícia, minha mulher, foi a salvação. Ela ficou conversando com o homem que apareceu na porta enquanto eu terminava de ajudar a velhinha. Ele trabalhava na administração do clube, nos convidou a entrar e tirou três camisas de uma sacola daquelas de vestiário.
Uma das camisas, pólo, com zíper, parecia da comissão técnica. A outra era de algum outro esporte que não o futebol, embora trouxesse as inscrições “San Telmo” e “Buenos Aires”. A terceira, listrada em dois tons de azul (um mais claro e o outro mais escuro), era a que eu queria.
Aliás existe uma explicação para o San Telmo ser azul-claro e azul-escuro: na primeira partida da história do time, a camisa era listrada em branco e em um tipo só de azul. Mas naquele dia choveu, o branco virou um azul mais claro e a camisa acabou ficando assim até hoje.
Fiquei sabendo, também, que o time, fundado em 1904, disputa atualmente a Primera B Nacional (segunda divisão argentina). E que no único ano em que jogou na primeira de fato, em 1976, foi rebaixado, mas ganhou do Boca (3 a 1) em um turno e empatou no outro (1 a 1), na Bombonera!
Finalmente perguntei quanto o homem queria pela camisa. Primeiro, disse-me que não tinha ideia. Sugeri, então, que cobrasse o que normalmente se cobra por uma camisa de futebol por lá, e ele sugeriu algo em torno de 2 mil pesos, o equivalente a 110 reais.
Tirei do bolso, então, meus últimos pesos de fim de viagem. Contei nota a nota, não chegava a 900 (uns 50 reais). Ele achou pouco, perguntou se eu não tinha reais para complementar a compra. Não tinha. Perguntei se ele tinha máquina de cartão de crédito. Também não.
Já estava achando que ia acabar voltando pra casa sem a tal camisa, mesmo. Mas acho que foram os olhos tristes da minha mulher, olhos de uma mãe decepcionada, com os braços já estendidos para devolver a camisa, que acabaram convencendo o homem a fazer o negócio.
Antes de nos despedirmos, perguntei-lhe qual era o seu nome e ele me respondeu que era Daniel. Justamente o nome do meu filho, esse carinha que aparece todo feliz aí embaixo, finalmente vestindo a camisa do @PrensaSanTelmo . 👇

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