Num dia como hoje, a 4 de Março de 1394, nasceu na cidade do Porto o Infante D. Henrique, uma das figuras mais célebres da História portuguesa, e também uma das mais mitificadas.
Por isso, deixo aqui uma breve tentativa de desmontar um desses mitos: a imagem do Infante 🧵👇
Todos conhecemos bem a figura do homem do bigode e do chapeirão borgonhês. Ela está presente nos livros e nas estátuas erigidas, sobretudo, no séc. XX.
No entanto, esta imagem não corresponde de modo algum ao Infante real e histórico.
Até meados do séc. XIX, o Infante era praticamente sempre representado como um guerreiro barbudo envergando armadura, por vezes também com espada e com uma cruz de Cristo ao peito. É o que sucede, por exemplo, nesta estátua no Mosteiro dos Jerónimos, datada de inícios do séc. XVI
Mas tudo mudou a partir de 1841, ano em que foi descoberta na Biblioteca Nacional de Paris a "Crónica dos Feitos da Guiné", composta pelo cronista Gomes Eanes de Zurara c. 1453. Esta crónica, dedicada às navegações promovidas pelo Infante, continha uma iluminura bem conhecida:
A partir de então, o homem do bigode e chapeirão passou a ser identificado como o Infante D. Henrique. A esta identificação parecia dar força a presença de uma figura semelhante nos célebres Painéis de S. Vicente (hoje no MNAA).
A identificação acabou por fazer escola. O Estado Novo, por motivos variados, acabou por promover consideravelmente a "verdadeira imagem do Infante", como era então apelidada, por intermédio do ensino, de livros, estátuas, monumentos, etc...
No entanto, alguns autores notaram desde cedo que a figura presente na crónica e nos Painéis não correspondia à descrição física do Infante que que chegou até nós por intermédio da pena do cronista Zurara, que bem conheceu D. Henrique em vida.
Parafraseando Zurara, D. Henrique era um homem bem encorpado, com membros fortes e largos, cabelo levantado, pele bronzeada e um ar sisudo que podia ser entendido como pouco amigável. Ou seja, nada de bigode, de chapéu, ou de ar melancólico como a figura dos Painéis.
Pelo contrário, a essa mesma figura corresponde antes a descrição do rei D. Duarte, irmão mais velho do Infante. Parafraseando o cronista Rui de Pina, D. Duarte teria um rosto redondo, enrugado e com pouca barba, olhos moles e cabelo corredio.
A descrição das feições do Infante encaixa bastante melhor num outro personagem, concretamente aquele que se encontra ajoelhado no Painel dos Cavaleiros. Ali temos um homem sisudo, de cabelo levantado, envergando as armas que em vida foram tão caras a D. Henrique.
Além disso, existem claras semelhanças entre a face desta figura e a estátua jacente que encontramos no túmulo do Infante D. Henrique no Mosteiro da Batalha, estátua essa que foi encomendada ainda em vida do Infante.
Pois bem, a conclusão a que se chega é a seguinte: o homem do chapéu e bigode é D. Duarte, e o cavaleiro ajoelhado é D. Henrique. As evidências existentes apontam todas nesse sentido.
Para finalizar, importa dizer que nada disto é novidade no meio académico. Desde a década de 1980 que autores como Dagoberto Markl defendem esta identificação. Mas, como noutros casos, tem havido muita dificuldade em transpor as paredes da academia, e por isso o mito persiste.
Como este thread tem gerado mais atenção do que esperava, aproveito para dizer que no podcast do qual sou co-criador, o @FalandoHistPod, fazemos episódios semanais sobre História. E fica já prometido para breve um ep. inteiramente dedicado ao Infante D. Henrique e os seus mitos!
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No Portugal de meados do séc. XV, duas mulheres protagonizaram fugas da prisão dignas de um filme. Segue breve thread 👇🧵 1/9
1º caso: Lisboa, 1452.
Maria Vaz, acusada do homicídio de Nacim Fayam, está presa à guarda do carcereiro Francisco Anes. Certa noite, pede para ir "verter águas", pelo que é enviada às privadas ou latrinas, situadas numa elevação, acompanhada por um moço do carcereiro 2/9
Pelo caminho, a candeia que transportava apagou-se misteriosamente, obrigando o moço a regressar à prisão para a reacender. Maria Vaz, que planeara tudo, aproveitou a oportunidade para lançar um cordel com um prumo - para fazer peso- pelo fundo da latrina 3/9
Os jovens de hoje não querem trabalhar, edição séc. XV. Segue breve thread🧵
A 10 de Janeiro de 1440, com as cortes reunidas em Lisboa, os concelhos do reino expõem os seus problemas ao jovem rei D. Afonso V - de apenas 7 anos - e ao regente D. Pedro, em busca de solução 1/4
Ponte de Lima é apoquentada por um problema particular:
os filhos da gente do povo não querem trabalhar! Os malandros preferem ir folgar para os paços da nobreza, deixando os campos ao abandono. Por isso o concelho pede que os jovens do povo aprendam os ofícios paternos... 2/4
... e que tirem o cavalinho da chuva quanto a festas nos paços. O regente concorda e ordena que nenhum filho de lavrador seja levado para os paços sem autorização paterna. Acabou-se a brincadeira - pelo menos no papel, porque ordem dada não é necessariamente ordem cumprida. 3/4
É domingo, está sol, mas não resisto. É mais forte que eu. Defeitos do ofício de historiador. Vamos lá ao breve thread 🧵
A monarquia portuguesa não foi, obviamente, milenar. Foi fundada no séc. XII, mas a data concreta é muito discutível. Batalha de S. Mamede em 1128? Batalha de Ourique em 1139? Convénio em Zamora em 1143? Reconhecimento papal em 1179? Muitas datas, poucas certezas.
Durou longos séculos, mais que umas, menos que outras. Foi extinta em 1910, como todos sabemos. Hoje existem pretendentes ao trono. Mas será D. Duarte Pio o pretendente correcto? D. Manuel II deixou o trono ao ramo miguelista dos Bragança, mas aqui residem vários problemas...
A pena de morte é frequentemente caracterizada como um castigo medieval, ou seja, bárbaro. Mas será que os reis de Portugal executavam pessoas a torto e a direito?
Segue thread sobre crime e perdão nos finais da Idade Média, analisando alguns casos mais explicativos🧵👇1/15
Primeiro caso:
Em Abril de 1484, Gonçalo Lourenço, morador no termo de Silves, atacou violentamente um vizinho (Lopo Esteves) e a sua esposa, saltando-lhes ao caminho certo dia, montado a cavalo e de lança na mão, ferindo-os várias vezes. 2/15
De acordo com as vítimas:
“elle sopricamte saltara com elle, hindo em cima de hũu cavallo, e lhe dera tres feridas, a saber, hũua lamçada pellos peitos e outra pello pescoço e outra per hũu braço esquerdo, as quaees feridas lhe dera de prepósito” 3/15
Na documentação medieval abundam nomes e alcunhas engraçadas, por isso decidi mostrar-vos algumas daquelas com que me fui deparando nos documentos da Chancelaria de D. Afonso V (r. 1438-1481).
Esperando que gostem, segue thread👇🧵
Começamos, claro, pelos nomes mais sugestivos:
1) Pedro Afonso Caralhote, morador em Pombal em 1455.
2) Álvaro Fernandes Caralhote, residente no termo de Évora em 1468.
Alcunhas certamente bastante ilustrativas da personalidade dos visados...
Seguindo na mesma linha, temos:
3) Álvaro Martins Corno, escudeiro de Lamego em 1453.
4) João Afonso das Moças, marinheiro do Porto que em 1471 participou na conquista de Arzila. Claramente a inspiração para a ideia de que os marinheiros têm uma namorada em cada porto.
Estive fora e portanto só agora reparei que o debate sobre o pretenso "Tratado de Zamora" continuou. Não podendo responder a todos, deixo aqui uma thread com o que sabemos sobre esta questão🧵👇
Em Outubro de 1143, depois de ter passado por território português, o cardeal Guido de Vico, legado papal enviado à Península Ibérica para resolver várias questões de natureza eclesiástica e política rumou à cidade de Zamora, no reino de Leão.
Foi em Zamora, entre 4 e 5 de Outubro de 1143, que se reuniu com Afonso Henriques, que desde 1139 se apelidava de rei, e Afonso VII, rei de Leão, que desde 1135 se apelidava de imperador da Hispânia. O objectivo era sanar as relações entre os primos e promover o combate ao Islão.