Estive fora e portanto só agora reparei que o debate sobre o pretenso "Tratado de Zamora" continuou. Não podendo responder a todos, deixo aqui uma thread com o que sabemos sobre esta questão🧵👇
Em Outubro de 1143, depois de ter passado por território português, o cardeal Guido de Vico, legado papal enviado à Península Ibérica para resolver várias questões de natureza eclesiástica e política rumou à cidade de Zamora, no reino de Leão.
Foi em Zamora, entre 4 e 5 de Outubro de 1143, que se reuniu com Afonso Henriques, que desde 1139 se apelidava de rei, e Afonso VII, rei de Leão, que desde 1135 se apelidava de imperador da Hispânia. O objectivo era sanar as relações entre os primos e promover o combate ao Islão.
Em Zamora, Afonso VII acabou por reconhecer o realeza de Afonso Henriques, mas não a sua independência. Pelo contrário, Afonso permanecia vassalo do imperador, o que acabava por ser prestigiador para aquele, que podia dizer - com razão - ser superior a meros reis.
Hoje sabemos que Afonso VII acabou por não conseguir exercer a influência que desejava junto de Afonso Henriques, e aquele acabou mesmo por tornar-se independente, num processo longo e complexo. 1143 é um acontecimento entre outros, e mesmo menos importante que 1139.
Resumindo, a 4-5 de Outubro de 1143, em Zamora, houve uma reunião que resultou num acordo, provavelmente oral, entre dois primos. Não houve um tratado escrito, tal documento não existe nem nunca existiu.
O documento que por aí circula como sendo o "Tratado de Zamora" é nem mais nem menos que a bula "manifestis probatum" de 1179, pela qual o Papado reconheceu a realeza de Afonso Henriques. O documento original está no Arquivo da Torre do Tombo.
E aqui se pode ver, no quadrado vermelho, o início de frase que dá nome à bula, prática comum às bulas papais (esta não é a única 'manifestis probatum', mas é a de 1179).
E como sabemos que em 1143 Afonso VII reconheceu Afonso Henriques como rei? Sabemo-lo através de dois documentos da chancelaria leonesa onde Afonso assinou como rei. Era uma prática comum figuras importantes validarem o conteúdo de documentos régios assinando-os.
Mas os documentos em causa nada mais nos dizem sobre a reunião de 1143.
Por em 1143 não existir um tratado, mas uma reunião entre dois reis, os historiadores apelidam este acontecimento de "Conferência de Zamora", um nome mais apropriado. E o resultado foi o reconhecimento da realeza de Afonso Henriques, mas NÃO da independência do seu novo reino.
E que historiadores se dedicaram a este tema? Apenas um dos mais importantes historiadores portugueses, José Mattoso, na sua magnífica biografia de Afonso Henriques (como nova edição recente).
E também Bernardo Vasconcelos e Sousa, no seu capítulo na "História de Portugal" coordenada por Rui Ramos. Sim, esse Rui Ramos, o conhecido historiador marxista #sóquenão. Isto não é uma questão de ideologia, de esquerda ou direita. É uma questão de rigor histórico. É simples.
E já agora, Herculano é um dos pais da historiografia portuguesa, mas a sua obra está muito desactualizada. Não tomemos como conhecimento histórico avançado uma obra de meados do séc. XIX, tal como não aceitariamos como tecnologia de ponta as máquinas a vapor.
E claro, celebrem e comemorem o que bem entenderem. Mas em termos de matéria histórica, tentem ter algum rigor. Quanto à data da fundação de Portugal, é à escolha do freguês. A História é mais complexa do que a nossa vontade de ter datas certas para comemorar. Fim de 🧵
• • •
Missing some Tweet in this thread? You can try to
force a refresh
No Portugal de meados do séc. XV, duas mulheres protagonizaram fugas da prisão dignas de um filme. Segue breve thread 👇🧵 1/9
1º caso: Lisboa, 1452.
Maria Vaz, acusada do homicídio de Nacim Fayam, está presa à guarda do carcereiro Francisco Anes. Certa noite, pede para ir "verter águas", pelo que é enviada às privadas ou latrinas, situadas numa elevação, acompanhada por um moço do carcereiro 2/9
Pelo caminho, a candeia que transportava apagou-se misteriosamente, obrigando o moço a regressar à prisão para a reacender. Maria Vaz, que planeara tudo, aproveitou a oportunidade para lançar um cordel com um prumo - para fazer peso- pelo fundo da latrina 3/9
Os jovens de hoje não querem trabalhar, edição séc. XV. Segue breve thread🧵
A 10 de Janeiro de 1440, com as cortes reunidas em Lisboa, os concelhos do reino expõem os seus problemas ao jovem rei D. Afonso V - de apenas 7 anos - e ao regente D. Pedro, em busca de solução 1/4
Ponte de Lima é apoquentada por um problema particular:
os filhos da gente do povo não querem trabalhar! Os malandros preferem ir folgar para os paços da nobreza, deixando os campos ao abandono. Por isso o concelho pede que os jovens do povo aprendam os ofícios paternos... 2/4
... e que tirem o cavalinho da chuva quanto a festas nos paços. O regente concorda e ordena que nenhum filho de lavrador seja levado para os paços sem autorização paterna. Acabou-se a brincadeira - pelo menos no papel, porque ordem dada não é necessariamente ordem cumprida. 3/4
É domingo, está sol, mas não resisto. É mais forte que eu. Defeitos do ofício de historiador. Vamos lá ao breve thread 🧵
A monarquia portuguesa não foi, obviamente, milenar. Foi fundada no séc. XII, mas a data concreta é muito discutível. Batalha de S. Mamede em 1128? Batalha de Ourique em 1139? Convénio em Zamora em 1143? Reconhecimento papal em 1179? Muitas datas, poucas certezas.
Durou longos séculos, mais que umas, menos que outras. Foi extinta em 1910, como todos sabemos. Hoje existem pretendentes ao trono. Mas será D. Duarte Pio o pretendente correcto? D. Manuel II deixou o trono ao ramo miguelista dos Bragança, mas aqui residem vários problemas...
A pena de morte é frequentemente caracterizada como um castigo medieval, ou seja, bárbaro. Mas será que os reis de Portugal executavam pessoas a torto e a direito?
Segue thread sobre crime e perdão nos finais da Idade Média, analisando alguns casos mais explicativos🧵👇1/15
Primeiro caso:
Em Abril de 1484, Gonçalo Lourenço, morador no termo de Silves, atacou violentamente um vizinho (Lopo Esteves) e a sua esposa, saltando-lhes ao caminho certo dia, montado a cavalo e de lança na mão, ferindo-os várias vezes. 2/15
De acordo com as vítimas:
“elle sopricamte saltara com elle, hindo em cima de hũu cavallo, e lhe dera tres feridas, a saber, hũua lamçada pellos peitos e outra pello pescoço e outra per hũu braço esquerdo, as quaees feridas lhe dera de prepósito” 3/15
Na documentação medieval abundam nomes e alcunhas engraçadas, por isso decidi mostrar-vos algumas daquelas com que me fui deparando nos documentos da Chancelaria de D. Afonso V (r. 1438-1481).
Esperando que gostem, segue thread👇🧵
Começamos, claro, pelos nomes mais sugestivos:
1) Pedro Afonso Caralhote, morador em Pombal em 1455.
2) Álvaro Fernandes Caralhote, residente no termo de Évora em 1468.
Alcunhas certamente bastante ilustrativas da personalidade dos visados...
Seguindo na mesma linha, temos:
3) Álvaro Martins Corno, escudeiro de Lamego em 1453.
4) João Afonso das Moças, marinheiro do Porto que em 1471 participou na conquista de Arzila. Claramente a inspiração para a ideia de que os marinheiros têm uma namorada em cada porto.