Você conhece a história de como o Michael Jackson e o Spike Lee precisaram negociar com o dono do morro e enfrentar a justiça brasileira pra conseguir gravar no Brasil? Se não, relaxa porque hoje eu vou te contar em detalhes aqui nessa thread 🧶
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Abaixo, minha última thread:
O ano era 1995 e o rei do pop, Michael Jackson, tinha uma visão ousada para seu próximo videoclipe, "They Don't Care About Us". A intenção era trazer à tona problemas de injustiça social e racismo, e, para tanto, ele queria filmar nas ruas de Salvador e no Morro Dona Marta, RJ.
No entanto, essa não seria uma tarefa fácil, considerando que algumas dessas áreas eram, na época, controladas por facções criminosas. Ironicamente, esse problema se torna ínfimo, já que seria mais fácil negociar com as facções do que com a justiça brasileira.
Com o lendário Spike Lee a bordo como diretor, havia sido dada a largada. Spike tinha uma ideia ampla de resgatar as origens de MJ e mostrar como questões de raça transcendem barreiras geográficas. Mas os principais políticos da época eram contra a vinda de Michael ao Brasil.
Na época, o Brasil era forte candidato a sediar as Olimpíadas de 2004 e eles tinham receio de que o clipe mostrasse uma imagem, nas suas próprias palavras, "errada" sobre o país.
Traduzindo: eles não queriam que o mundo soubesse que existe pobre no Brasil.
O secretário estadual da época, Ronaldo Cezar Coelho, pediu pro Ministério das Relações Ext. NEGAR o visto a MJ e Spike, sendo apoiado por figuras como o Pelé. Em resposta, Spike disse: "Ele pode ser o maior jogador de futebol do mundo, mas certamente não é o melhor político".
Mas Vera Machado, secretária de imprensa do Itamaraty na época, foi até a imprensa e disse: "Não está em cogitação negar qualquer pedido de visto ao cantor. Se ele vier ao Brasil, poderá entrar. Não se pode tentar esconder uma realidade que existe no País." Corretíssima, aliás.
O prefeito do Rio na época, Cesar Maia, então concedeu alvará pra gravação do clipe, mas logo o juiz da 5ª Vara da Fazenda Pública deferiu um pedido de liminar que suspendia a gravação, alegando que havia "uma situação prejudicial à imagem do Rio".
A situação = filmar uma favela
O Rio de Janeiro virou um caos. A decisão fez o prefeito brigar com o próprio governador, Marcello Alencar, que dizia que ele 'não tinha o direito de'ficar perto de crianças carentes', fazendo referência às denúncias de abuso que até hoje não foram provadas na justiça.
Parecia o fim, até que uma figura importante surge na história. José Luis de Oliveira, presidente da Associação dos Moradores da Favela Dona Marta, encaminhou um abaixo-assinado ao presidente FHC pra negociar a gravação do clipe de MJ.
(na foto, o presidente atual, José Mario)
Se dirigindo ao presidente, ele foi categórico: "O cachê do clipe vai contribuir para melhorarmos a creche e abrirmos o ambulatório. Se o governador não quer que os turistas vejam a pobreza, que ele jogue uma lona em cima das favelas ou então transforme o morro em Ipanema".
O plano deu certo e a autorização veio. Mas a Sony, cansada da complexidade, disse que o Rio de Janeiro estava fora dos planos, mas Spike Lee insistiu na ideia e disse que se fosse preciso ele ia pessoalmente falar com o dono do morro pra conseguir gravar.
E foi o que ele fez.
Spike Lee se encontrou com o líder do tráfico local, Márcio Amaro, mais conhecido como Marcinho VP. Apesar da tensão inicial, a reunião foi bem sucedida. Spike sabia o que estava fazendo. Um diretor de cinema negociando com o tráfico diretamente é o puro suco de Brasil, aliás.
Márcio concordou em permitir as filmagens, com a condição de que a equipe de produção não trouxesse a polícia para a área, uma exigência que Spike aceitou.
Mas quem não gostou muito disso foi a própria polícia, que direcionou críticas a Spike Lee.
"Ele pagou porque é otário. Deve estar acostumado a fazer isso lá nos Estados Unidos e fez aqui também", disse Hélio Luz, chefe da Polícia Civil na época. Spike respondeu: "Acho que fui muito esperto. Sua polícia não parece ter muita autoridade por lá". Uma máquina de respostas.
Michael não precisou enfrentar apenas o emaranhado político, mas também algumas opiniões... imbecis, no mínimo. O um dia cantor Lobão, famoso por suas falas reacionárias, atacou MJ: "Michael Jackson é um débil mental. Nem preto ele é mais, quanto mais um preto de favela", disse.
MJ precisou ir a público DE NOVO explicar didaticamente o que era vitiligo, mas todos os problemas burocráticos haviam saído do caminho. Era hora de embarcar no Brasil, e MJ fez questão de ir em voo comercial, obrigando a aeronáutica a fornecer 300 soldados para conter multidão.
A chegada de Michael a Salvador foi uma visão fora do comum. O astro foi recebido por uma multidão ensurdecedora de fãs chorando de alegria ao vislumbrar seu ídolo. Ele passou horas tirando fotos, dando autógrafos, segurando bebês, provando a comida local... uma loucura.
A maior parte dos artistas que vem gravar no Brasil raramente se importa em de fato participar da nossa cultura. Somos um mero atrativo estético. Mas você consegue sentir a conexão de Michael com as pessoas durante o clipe. Ele entrou em total sintonia com nossa cultura.
Gente, mas... e Salvador?
Apesar de trazer as partes mais simbólicas do clipe, Salvador foi o local mais fácil de se gravar. Digamos que tanto o governo quanto a população se mostraram bem mais receptivos do que no Rio de Janeiro (me dói, como carioca, admitir hehe)
MJ e o produtor marcaram uma reunião com os líderes de Salvador, explicando projeto e o significado de trazer um ícone global como Michael para a comunidade. A ideia foi bem recebida, e, sob a promessa de que a comunidade seria tratada com dignidade, a permissão foi concedida.
A gravação em Salvador aconteceu no coração do Pelourinho e representa os momentos mais simbólicos do clipe, como a equipe de bateria afiada, dançando no mesmo passo que o Michael, a mulher que fura o cerco para abraçá-lo e a sua hoje icônica camiseta do Olodum.
A produção então se mudou para o Rio de Janeiro. No Morro Dona Marta, MJ se apresentou em uma laje e, durante as filmagens, Spike e Michael tomaram cuidados para garantir que a representação da comunidade fosse respeitosa e autêntica. Destaco a excelente direção de cena de Spike.
O videoclipe de "They Don't Care About Us" foi lançado pro mundo em 1996 e se tornou um grito de protesto contra a injustiça social, a violência e a desigualdade, ofuscando completamente sua versão norte-americana
(continua 🧶)
O Morro Dona Marta, após a gravação do vídeo, teve uma melhora significativa em sua infraestrutura. Devido à atenção que recebeu, o governo implementou programas de melhorias no local, incluindo a instalação de um sistema de teleférico para facilitar o transporte dos moradores.
Em retrospecto, a missão de Michael Jackson e Spike Lee de gravar "They Don't Care About Us" no Brasil foi cumprida com sucesso. Eles transcenderam a ideia da própria música, usando uma arte de protesto para realmente causar um impacto prático.
A história da gravação de They Don't Care About Us é uma lembrança da capacidade da arte de provocar reflexão, questionar o status quo e mudar o mundo. E se uma coisa ficou clara nisso tudo é que Michael Jackson tinha razão: eles definitivamente não ligam pra gente.
🎬 Meu VideoDOC
Michael Jackson, Spike Lee e uma Missão Impossível no Brasil
Essa thread possui uma versão documental mais completa no YouTube, onde há mais imagens de arquivo e trechos que não deu pra colocar aqui. Se você é fã do MJ, é parada obrigatória porque tem muito making of! Aqui está caso queira assistir e se inscrever
E ÓBVIO, não ia terminar sem isso, né? THEY DON'T CARE ABOUT US, O VIDEOCLIPE!
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A cultura coach está matando pessoas. É preciso dar nome aos bois antes que algo ainda pior aconteça, e é o que faremos aqui.
No início deste mês, Bruno Teixeira, de 26 anos, perdeu a vida durante uma "maratona surpresa" promovida pela holding do coach Pablo Marçal 🧶
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Seguindo...
Se você não conhece Pablo Marçal, farei uma rápida apresentação: coach vendedor de curso condenado pela justiça que ano passado colocou 60 vidas em risco ao subir numa montanha sem preparo, quis se candidatar a presidente e neste mês teve um funcionário morto em seu evento.
Era 1995, e a Pepsi colocava no ar uma propaganda simples: junte pontos e troque por prêmios. Ao fim do comercial, algo chamou atenção.
Em tom humorado o narrador dizia que com 7 milhões de pontos a Pepsi daria um caça da força aérea. Uma piada... até alguém conseguir. 🧶
Numa manhã comum em 1995, os telespectadores americanos foram surpreendidos com uma propaganda peculiar da Pepsi. Uma campanha promocional chamada "Pepsi Stuff", onde os consumidores poderiam trocar pontos acumulados em tampinhas de garrafa por brindes da marca.
O anúncio mostrava um jovem estudante percorrendo um corredor que exibia uma variedade de prêmios: camisetas, bonés, óculos de sol, até chegar no final onde víamos estacionado um caça Harrier II, um jato militar avaliado em mais de $20 milhões de dólares.
Não se fala nisso o suficiente, mas o Syndrome, de Os Incríveis, é um dos vilões mais bem construídos e complexos da cultura popular.
Se duvida, segue a thread - vamos falar de arquétipos, narrativa, desenvolvimento de personagem e (como sempre) um pouco de filosofia 🧶
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Síndrome/Bochecha/Gurincrível foi um jovem admirador e pretendente a ajudante do Sr. Incrível. Cheio de sonhos e aspirações, ele idolatrava o herói e sonhava em um dia se juntar a ele. No entanto, suas esperanças são destruídas quando Sr. Incrível o rejeita de forma arrogante
"E assim eu soube que nada muda. Tudo fica como antes. A roda gira, volta após volta. Um destino ligado ao outro, um fio vermelho como o sangue, que liga todas as nossas ações"
Dark: o Eterno Retorno e a filosofia da dor e aceitação 🧶
Olha eu aqui de novo! Mais uma thread, dessa vez destrinchando uma série que tem um lugar gigantesco no meu coração: Dark. Essa aqui talvez seja longa, então se acomode, e caso queira conhecer outras threads, eu falei de um assunto parecido nessa aqui:
Quando eu assisti Dark pela 1a vez eu não fazia ideia do quanto ela mexeria comigo. Mas de todos os ensinamentos, o que mais me marcou talvez tenha sido o de que há coisas que simplesmente não podemos mudar. E lutar contra isso só causa sofrimento. O que fazer, então?
Imagine acordar todos os dias em um lugar inóspito onde todos tentam te matar. E o pior? você não tem ideia do que fez para merecer isso. Bem-vindos ao universo perturbador de White Bear, em Black Mirror ⬇️✍️
Aproveitando que Black Mirror retorna nesta semana, estou trazendo algumas threads analisando alguns dos meus episódios preferidos e falando um pouco de filosofia também. Se chegou agora e quer conhecer, segue uma outra thread:
White Bear é um episódio de Black Mirror sobre as fronteiras da justiça. Em que ponto ela se torna punição? Nele, acompanhamos uma mulher que acorda sem memórias, em um mundo onde ela é perseguida enquanto dezenas de pessoas filmam tudo com seus celulares.
“Imagine uma onda no oceano. Você a vê e sabe que é uma onda. Então ele quebra na areia e desaparece, mas a água ainda está lá. A onda foi apenas a forma que a água encontrou para estar ali naquele momento. Como nós.”
The Good Place: uma viagem filosófica pela condição humana 🧶
Cá estamos para mais uma thread, agora falando um pouco sobre como The Good Place explora as filosofias da moralidade, contratualismo, utilitarismo, e muito mais, ao mesmo tempo em que é deliciosamente cômica.
A premissa de "The Good Place" a princípio parece simples: Eleanor acorda no que parece ser o céu - ou "O Lugar Bom", que é como eles chamam. No entanto, há um problema - Ela foi uma pessoa terrível durante toda sua vida e acredita que foi enviada ao Lugar Bom por engano.