- A SOMBRA DO CORVO -
prólogo
Acordou com o som metálico. A sombra lhe apontou uma bandeja. Com os dedos sujos e trêmulos, alcançou os objetos. Suspirou. Era hora.
Não comia há dias. O fedor pútrido da cela lhe enojava. Só tinha uma opção. Da bandeja, pegou o(a)
A mochila pesava. Abriu com urgência e enfiou logo na boca um punhado de alguma coisa que não sabia o que era. A sombra recolheu a bandeja.
O toque frio de um objeto metálico no meio do alimento despertou-o: uma chave. Destrancou a jaula e saiu. Com dificuldade seguiu para
A cada passo que dava pelo túnel, a jaula improvisada na caverna parecia lhe chamar de volta - liberdade? A descida era íngreme.
Os pés afundaram na água quando tudo ficou escuro. Uma pequena abertura emitia luz. Caminhou em sua direção, mas a profundidade aumentou.
Foi quando tropeçou em algo sólido, ainda na parte rasa, e caiu na água. A mochila boiou a sua frente levada por uma corrente. Ele então
A mochila desapareceu no escuro quando as mãos dele alcançaram uma extensão áspera. O coração disparou quando encontrou cinco dedos gélidos.
O esqueleto fardado se agarrava a um pequeno baú de madeira. Engoliu seco e
A pequena arca era leve. Na escuridão, não conseguia enxergá-la. Tentou abri-la, mas parecia trancada. Cogitou procurar a chave no esqueleto
Todo seu corpo tremeu quando um grito diabólico veio do túnel por onde havia fugido. Com lágrimas nos olhos ele
Grito se tornou mais agudo à medida que ele arrastou o cadáver para cima de si. Um barulho alto e repetitivo ecoava pelo túnel em uníssono.
Água voou por todos os lados quando a coisa o alcançou. Ele tremia, pelo frio e pelo medo. A voz parecia ser um coro do inferno.
A coisa se chocava furiosamente contra a rocha. Repentinamente, um silêncio perturbador. Foi quando sentiu algo subindo pela sua perna. Ele
Os segundos pareciam se arrastar enquanto o leve formigamento subia suas pernas. A coisa ainda estava lá fora? Então ele gritou.
Uma dor lancinante ferroou sua coxa. Imediatamente, o estômago veio lhe a boca e tudo girava. A consciência lhe esvaía. Foi quando ouviu.
Um grito bestial. Farfalhar. Foi arrastado no ar pela força invisível e lançado contra a parede, que ruiu abrindo uma passagem. Sem o baú,
Vacilava enquanto fugia. A abertura aos poucos se transformara em um largo túnel. De alguma forma, a criatura parecia não tê-lo seguido.
A passagem subia. Por vezes, teve a impressão de ouvir vozes pelas paredes. A umidade diminuía e frestas de luz invadiam o local.
Atingiu um salão de pedra de paredes com centenas de aberturas quadradas. Um sarcófago se encontrava no meio. O caminho bifurcava. Ele
Um ar gélido e desagradável passava pelas aberturas. Seu corpo inteiro arrepiou. As dimensões não pareciam ter mais que oitenta centímetros.
Mesmo com os feixes de luz que iluminavam a câmara, ele mal conseguia ver pelas maioria das aberturas. Analisou uma porção delas em vão.
Estava prestes a desistir quando ouviu um som baixo e indistinguível de uma delas. Intrigado,
Primeiro teve dificuldade de entender o que ouvia. O som ainda era baixo, embaralhado e repetitivo. Sentiu náuseas quando compreendeu.
Uma voz sombria e moribunda chegava pela abertura. Parecia alguma espécie de cântico ou oração. Não sabia dizer. Que diabos era esse lugar?
Por mais que tentasse, não conseguia discernir quaisquer palavras. Não enxergava nada na abertura. Avaliou que seu corpo cabia ali. Ele
Sentiu o gosto de morte na boca no momento em que entrou na abertura. Agora de corpo frio, a perna ferrada latejava com a fricção na rocha.
Os minutos se arrastavam enquanto ele esmagava e se desvencilhava de toda sorte de insetos e musgo. Não enxergava nada a sua frente.
A passagem abruptamente se tornou íngreme e ele deslizou pelo túnel. Atingiu o chão sob uma pilha de ossos numa câmara mal iluminada.
Grades selavam as passagens no entorno e o único caminho era iluminado por archotes. De lá, vinha o lamento que ouvira. Ele
O túnel parecia ter sido construído na rocha eras antes. Uma brisa fria cortava o ar. A perna pulsava e a pele coberta de ferimentos ardia.
A tocha em sua mão bruxuleava. Enquanto avançava, percebeu que sua chama enfraquecia - o oxigênio estava diminuindo. O cântico aumentava.
A antecâmara que abriu a sua frente era estreita. No canto, um tanque a frente de uma pesada porta de ferro. Notou também um alçapão. Ele
Um ar quente, carregado de um fedor podre, penetrou suas narinas, quase fazendo-o vomitar. Nauseado, ele desceu a escada de mão lentamente.
A chama do archote queimava violentamente. Respirar se mostrou uma tarefa difícil. O ambiente era pequeno e não tinha circulação.
A câmara terminava em um paredão de vidro translúcido manchado de carmesim. O cheiro fétido vinha de um cadáver estirado de bruços. Ele
Sentiu o gosto amargo de vômito quando virou o defunto. Marcas de grampos e costura sugeriam que ele já havia passado por uma autópsia.
Tinha profundas lesões e feridas em toda a pele. A boca aberta de maneira grotesca abaixo dos olhos estreitos era o retrato do medo e fúria.
Os dedos das mãos em carne viva na altura dos ossos indicavam de onde viera todo aquele sangue no vidro. Notou uma protuberância na pele.
Abaixo das costuras no peito, algum objeto se escondia sob a epiderme. O coração disparou quando ouviu um sussurro. Assustado, ele
A costura se rompeu com facilidade, revelando a carne podre do indivíduo. Uma mancha negra se fundia aos músculos atrofiados.
Teve que se segurar para não vomitar. Fechou os olhos e penetrou os dedos na massa decadente, encontrando um objeto frio. Puxou de uma vez.
O apito negro tinha um ar estranho. Era completamente liso, exceto por um número sete, gravado em baixo relevo. Ainda ouvia o sussurro. Ele
A respiração pesava. Sentia que o oxigênio da sala estava no fim, fornecido apenas pela abertura do alçapão. O archote ia se apagando.
A superfície translúcida ia clareando a medida que ele se aproximava. O sussurro ficava nítido. Foi a menos de trinta centímetros que viu.
De primeira não entendeu. Levou alguns minutos para distinguir a massa disforme do amontoado de cadáveres do outro lado, todos dilacerados.
No centro, uma criança nua apoiava a cabeça entre os joelhos, balançando para frente e para trás. Arrepiou. O teto tinha uma abertura. Ele
Balbuciou febrilmente algumas palavras para a criança macabra que balançava em transe. À princípio, nada aconteceu. Insistiu e gritou.
A figura então aquietou. O silencio perturbador fez com que a vontade dele fosse correr dali. Dos lábios da criança, um cântico macabro.
Inquieta, a criança gritava as palavras indistinguíveis. Levantou-se, pegou um corpo pelos cabelos e o arrastou em direção ao vidro.
Ele se sentia irremediavelmente atraído a ela. Não sabia explicar. Através daquela aura negra, algo parecia chamar seu nome. Ele
Com as forças que ainda lhe restavam, golpeou a base do archote na superfície do vidro. Uma, duas, três vezes. Nada. Na quarta uma rachadura
A fissura se abriu sob a mancha carmesim. A criança de ossos proeminentes e coberta de sangue arrastava lentamente o corpo em sua nudez.
O rosto era impassível. Olhos cinzas e vazios. Na quinta vez, aconteceu. Sem manifestar qualquer expressão, a criança arremessou o cadáver.
O crânio atingiu o vidro, aumentando a rachadura. Os gritos da criança eram bestiais. Ela se aproximava. A tocha se apagava. Ele
A criança avançava quando ele ergueu o braço para desferir o último golpe. Entendeu tarde demais quem ela era: já atingira o vidro.
Os raios da chama da tocha refletiam em todas as direções com os estilhaços, iluminando claramente o rosto frio da garota pálida. Tremeu.
No fim do golpe a tocha se apagou. A respiração pesava tanto quanto o coração. Lentamente sufocou sem oxigênio, até que tudo enegreceu.
Perdeu a consciência na escuridão da sala fria ao som dos gritos macabros da garota.
Mal podia acreditar que sua filha ainda estava "viva".
- FIM DO PRÓLOGO -
- CAPÍTULO UM -
a última vila
O carro sacolejava a medida que cruzavam a estrada de terra esburacada pelas chuvas torrenciais das semanas anteriores.
Planejaram por meses a viagem e cancelar não era uma ideia agradável, mas agora que tudo era terra e lama, se questionava sobre a decisão.
Apesar da sensação ruim, era um dos poucos finais de semana que tinha direito com a filha, e não queria decepciona-lá. Ela sorria alegre.
- Papai, estou com fome. - Pediu docemente.
Faltavam alguns quilômetros para que chegassem e havia apenas uma casa modesta por perto. Ele
- Hmm, vejamos se encontramos algo por aqui. - respondeu amavelmente.
Dirigia sem pressa e baixou o olhar para o console do carro.
Notas de farmácia e tickets de estacionamento se misturavam a embalagens, mas não encontrou nada. Baixou e procurou no porta-luvas.
Perdida, localizou uma barra de cereal. Com o movimento para alcançá-la, girou o volante. Um grito. Voltou os olhos para a estrada e freou.
Por pouco não acertara um espantalho. Espantalho? Tinha certeza que o vira na estrada, mas agora vislumbrava apenas a casa. Respirou fundo e
A garota comeu alegremente enquanto eles atravessavam o pedaço da estrada coberto por uma floresta. O céu tinha ares fúnebres e cinzentos.
De tempos em tempos, a figura vinha-lhe a mente. Se perguntava se a filha também havia visto. Será que imaginara? Um raio cruzou o céu.
Atravessou vários quilômetros em solitude quando pousou os olhos em barbas desgrenhadas e esbranquiçadas metidas em um casaco bege.
Com um sorriso amarelado, o homem olhava diretamente para ele em súplica.Não tardaria a chover e estava próximo de seu destino. Ele então
Agradeceu com olhos serenos enquanto entrava no carro.
Outro trovão tingiu o céu de cinza-azulado quando ele deu partida no motor.
- Vocês não são daqui. - Comentou após cruzarem uma antiga ponte de madeira. - Eu não chegaria nunca a vila sem a sua ajuda.
- Sua filha é adorável. - disse com olhos apáticos. - Orlando. Talvez você conheça minha hospedaria, Amarante. - Anunciou estendendo a mão.
Sem tirar os olhos da estrada, cumprimentou o senhor.
- Eu sou
- Essa é minha filha, Luana. Sou
- Hmm.. atrás de inspiração? - O senhor completou levantando as sobrancelhas. - Vila Malerna não seria o melhor lugar para isso.
Foi quando toda a ameaça que o céu fizera finalmente se concretizara. Gotas grossas atingiram o parabrisa como uma saraivada de pedras.
Aos poucos a estrada de terra ia virando um lamaçal. Luana encolhera-se no canto do banco de trás.
- Onde vocês vão ficar? - Perguntou.
Theodoro não se dava bem com perguntas. Na verdade, não se dava bem com pessoas. Orlando o encarava em curiosidade. A chuva engrossava. Ele
- Precisamos chegar logo. Se essa chuva engrossar, podemos ficar atolados. - Theodoro concentrava-se. O carro sofria para prosseguir.
- Há quanto tempo você disse que é dono da hospedaria? - Perguntou segundos antes de um relâmpago cruzar os céus metros à frente.
- Eu não disse. - Completou Orlando desconfiado.
Antes que ele pudesse continuar, se depararam com um tronco grosso bloqueando a estrada.
- Por aqui não vai dar. - Avisou Orlando. - Vamos dar a volta. - Apontou para uma trilha. - Conheço outro caminho. Falta pouco.

Theodoro
O carro balançava com os sulcos na terra escavada pela chuva. A trilha cortava parte do descampado. A distância notou a caixa d'água da vila
O caminho dava a volta pelas plantações dos produtores rurais, castigadas pelas águas torrenciais. Logo surgiu uma torre com uma cruz.
Os túmulos da igreja saudavam os transeuntes numa recepção macabra.
- Talvez fosse melhor a gente se abrigar na matriz. - Ponderou Orlando.
Theodoro não tinha certeza de quanto ainda faltava para chegar - ou se o caminho sequer levava até a vila. A chuva piorava. Ele
O mato recentemente cortado dava acesso fácil à trilha, apesar da chuva. A igreja decadente sofria com a pintura mofada e madeiras podres.
Theodoro checou Luana algumas vezes pelo retrovisor, amedrontada no banco de trás. Orlando indicou onde estacionar, na soleira da construção
Desceu do carro cobrindo a filha como pôde. Entraram ensopados. Velas tremeluziam com a brisa fresca. Um vulto baixo os observava do altar.
A figura murmurava. Um pedestal com um livro os saudava à porta. À esquerda, batidas fracas vinham de uma das portas. Abraçou a filha e
Atravessou as fileiras de bancos com cautela. Palavras ancestrais que ele desconhecia, mas que soavam familiares, alcançavam seus ouvidos.
Orlando encarava a chuva absorto, enquanto Luana se agarrava com firmeza às vestes de Theodoro. O vulto ergueu a cabeça, olhando fixamente.
As sombras das velas conferiam um aspecto ameaçador para o cenho do homem, que repentinamente encerrou suas preces com a aproximação.
- Há muito que não temos fiéis aqui, mas com os últimos acontecimentos... - disse com rouquidão - Padre Jeremias. Ficarão para o culto?
Ele
- Que últimos acontecimentos? - Theodoro puxou a filha para perto de si, preocupado.
Jeremias esfregou as mãos nas vestes.
- Não se preocupe. São apenas trivialidades autorizadas pela previdência. - Completou num tom abafado. - Ah! Brie! Finalmente!
Theodoro virou-se. Sob um manto bege sujo de terra, os músculos definidos da mulher se sobressaltavam. Os lábios grossos de Brie sorriam.
A mulher estava parada diante da porta anteriormente fechada. Orlando a encarava com curiosidade.
- Brie, ofereça água aos fiéis.
Após desaparecer por alguns instantes na sala atrás dela, a mulher retornou com uma jarra e um cálice, ambos de pura prata.
Theodoro
Theodoro aceitou o cálice, extendendo o braço ao sacerdote. Jeremias franziu o cenho.
- Desconfia das bênçãos divinas? - Sorriu malicioso.
Jeremias bebericou da taça sem Theodoro tirar os olhos dele. O padre voltou a oferecer a água, com ligeira irritação.
Luana tremia.
Com um sinal com a cabeça, Jeremias dispensou Brie, que voltou para a sala deixando uma trilha de barro no caminho e fechando-se no recinto.
Theodoro buscou por Orlando, mas este sumira. Os últimos raios de sol se projetavam por entre as nuvens acizentadas da tempestade.
- Recusará as bênçãos do senhor? - - Jeremias falava pausadamente. - E você, garotinha? Não vai beber?

Luana encarou o pai.
Theodoro
- Pagarás o preço por tua imprudência! - Bradou Jeremias.

Theodoro não ouvia. Já estava a meio caminho da porta quando o Padre gritou.
- VOCÊ NÃO PODERÁ SE ESCONDER DOS OLHOS! - A voz do Padre falhava.
Luana tremia segurando a mão do pai. Orlando não parecia estar dentro.
Theodoro puxou a filha pelo braço para a soleira da igreja. Um relâmpago cortou o céu, iluminando uma silhueta posicionada contra túmulos.
Havia alguém no cemitério, mas ele não tinha certeza de quem era. Seria Orlando naquela tempestade? O que estaria fazendo?
Theodoro
Se aproximaram dos sepulcros com cautela enquanto a forma se distinguia.
- Então ela não sobreviveu. - A voz era reconhecível.
Orlando tinha uma expressão soturna e olhava fixamente para uma das covas. A terra era clara e recém mexida como uma porção de outras.
- Jeremias assustou vocês, não é? - Disse calmamente. - Ele é inofensivo, mas pirou de uns tempos pra cá e aí todo mundo abandonou a igreja.
- Já podemos ir. - Comentou Orlando. A chuva afinava. - A menos que vocês queiram ficar para o culto.
- Vamos, papai. - Luana suplicou.
Theodoro
Theodoro estreitou os olhos com a pouca luz e a chuva que ainda caía.
"Tereza Carvalho". A data cravada precariamente na lápide era de hoje
Theodoro não sabia de quem se tratava, mas notou um ou dois nomes familiares entre as outras lápides, todas datando no máximo uma semana.
O mais perturbador, no entanto era inscrição. "Malum in se". Estava em todas elas. Como escritor, Theodoro estava familiarizado ao latim.
"Mal em si". Ele não sabia o que significava, mas um arrepio lhe desceu a espinha. Orlando esperava na porta do carro e Luana implorava.
Já era noite quando atravessou a estrada deixando a sinistra igreja para trás. Orlando convidou-os a passar a noite na hospedaria. Theodoro
Os raios prateados da lua tingiam as ruas irregulares de Malerma. A arquitetura barroca da estalagem era ao mesmo convidativa e misteriosa.
Luana dormia docemente no banco de trás. Theodoro gostaria de conseguir fazer o mesmo, mas duvidava que fosse capaz depois de tudo que vira.
Orlando foi na frente. Theodoro tirou a filha do carro com cuidado e o seguiu. Por alguns instantes pensou ter visto uma sombra no telhado.
- Estamos praticamente vazios. Você pode escolher onde querem ficar. Exceto pelo quarto 7. - Disse com olhos gentis.
Theodoro suspirou.
A pousada tinha aproximadamente vinte quartos, distribuídos em dois andares. Era silenciosa e Theodoro não vira ninguém. Ele escolheu
- Tenho algumas coisas para resolver, mas fiquem à vontade. - Respondeu Orlando quando Theodoro perguntou se poderia dar uma olhada por aí.
Luana esfregava os olhos enquanto o pai a arrastava pelos corredores empoeirados do segundo andar. Os quartos, na maioria simples, abertos.
Após explorar o andar inteiro, Theodoro constatou que tudo era ordinariamente comum. No primeiro andar, começou pela cozinha, vazia.
- Já é tarde. - Constatou.
Luana dava sinais de irritação. Avançou pelo térreo até ouvir um som agudo, como de um arranhão. Vinha do 7.
Apurou os ouvidos, mas não sabia o que era. A porta estava trancada e o resto do andar parecia comum, como o de cima. Theodoro decidiu por
[Desempate de 15 minutos]
Quando Orlando reapareceu, Theodoro perguntou por um quarto no primeiro andar. O idoso atendeu ao pedido alegremente e lhes concedeu um.
O cômodo era grande e arejado, ficava próximo a recepção e tinha uma grande cama de casal no centro. A janela dava para a rua. Número 6.
Pai e filha se acomodaram. Não levou muito para que Luana pegasse num sono pesado. Theodoro acordava de tempos em tempos. Tinha pesadelos.
Tremia de calor e frio. Suava nos lençóis brancos. Tossia. No meio da noite, ouviu um barulho lento e progressivo vindo da porta.
O barulho se tornava mais alto, mais urgente, mais apressado. Dotava de um certo desespero, como quem arranha. O som ganhou conjunto. Ele
De início, ele esperou. Luana dormia profundamente, inconsciente aos sons. Logo os arranhões se tornaram mais desesperados, afobados.
Quando ouviu um guincho do lado de fora abriu apressadamente a porta do quarto. O corredor escuro parecia deserto. Ou foi o que pensou.
Apressadamente coisas roçaram suas pernas, fazendo-o perder o equilíbrio. Coisas peludas. E essas coisas o encaravam, encolhidos no canto.
Os três gatos pareciam amedrontados. Ele se distraiu por alguns segundos antes de perceber que suas mãos estavam pousadas em algo molhado.
Sangue. O corpo de outro felino jazia estraçalhado. Miaram em uníssono ao choro de Luana quando algo bateu repetidamente na janela.
Ele
Sem nem pensar duas vezes, jogou seu corpo contra a entrada e desabou. Sua cabeça era um turbilhão. Gatos, túmulos, sangue, espantalhos.
Que dia. Que maldito dia! As pupilas em forma de fenda o encaravam acuadas embaixo da cama. O que inferno estava acontecendo ali? Inferno.
Miados, orações em latim. Choro. Laura. Laura? Batidas na janela. Repetitivas. Dotadas de uma calma e ritmo sufocantes. Perfurando o vidro.
Antes concentradas, agora se espalhavam. Variavam. Pra cima, pra baixo, no canto, no meio. Ganharam velocidade. Acompanhavam um farfalhar.
Então um estouro. Estilhaços voaram por todo lado. Ele se levantou num impulso. Um líquido quente desceu seu rosto quando algo lhe rasgou.
O pássaro negro passou por ele e avançou na garota paralisada de medo. Theodoro
As mãos atravessaram as penas rígidas da ave, encontrando a pele áspera por baixo. Homem e animal foram de encontro à parede num impulso.
A pele dos dedos feridos estrangulava o corvo, que revidava com suas fortes garras e bico, rasgando os braços e peito de Theodoro.
O pássaro se debatia e infligia seus golpes em direção ao rosto do escritor. Sangue e penas se misturavam no quarto. O animal guinchava.
Num último esforço, o bico do animal lacerou o rosto do homem e então desfaleceu estrangulado. Theodoro respirava pesadamente ensanguentado.
Os gatos guincharam e saíram pela janela quando Theodoro se levantou para avaliar a situação. Apavorada, Luana estava coberta de feridas.
Sangue cobria seus olhos enquanto se aproximou da filha. Foi quando ouviu. Um cântico macabro e sombrio vinha do lado de fora. Baixo.
A voz não parecia de homem. Também não parecia de mulher. Não parecia sequer humana. Então parou. Um arrepio atravessou sua espinha. Ele
Não pensou duas vezes antes de pegar a garota no colo e fugir. Nem se deu ao trabalho de olhar para trás quando os gatos devoraram o corvo.
O choque fora esmagador. Luana não se movia e mal parecia respirar. Theodoro colocou-a apressadamente no banco de trás e ligou o motor.
Cortou a névoa densa com dificuldade. Há todo momento sentia que estava sendo seguido. Por que diabos ele não havia ido direto para o irmão?
As feridas ardiam e o corpo doía. Luana tinha cortes profundos. A mãe da garota não o perdoaria quando a visse naquele estado. Então desabou
Lágrimas pesavam quando pensou que poderia ser privado de ver a filha novamente, após tanta luta. Então se deu conta que sentia fome e frio.
Era tarde da noite. O céu ameaçava cair em mais água. Preocupado, Theodoro decidiu seguir
Era difícil manter a calma. Theo checava a filha de tempos em tempos, mas ela continuava no mesmo estado catatônico. Mal piscava os olhos.
O carro atravessava a cidade sem muita dificuldade. Àquela hora da noite a cidade dormia. Pediu informação a um senhor e suspirou.
A vila não tinha hospital - era evidente. O mais próximo disso era um posto médico no centro com apenas um profissional de plantão.
Theo estacionou o carro ao lado de um Ford Galaxie transformado em ambulância - aquele lugar parecia perdido no tempo. Levou Luana no colo.
A médica era simpática. Levou a garota para exames. Theo estava exausto. A TV da cafeteria exibia um jornal no mudo. Urgente, avisava. Ele
A voz grave reverberou nas paredes descascadas da unidade de saúde.
- ...enquanto as tempestades continuam por todo o estado. - uma pausa.
- As autoridades ainda estão alarmadas com a onda de violência que dizimou a capital, enquanto as chuvas atrapalham o atendimento às vítimas
- Enquanto isso, os corpos continuam a se acumular, sem explicação. A onda parece ter se espalhado...
Uma luz. Um grito. Um aperto no peito.
No escuro completo, Theo tinha certeza que a voz era de Luana. O barulho do trovão veio em seguida. Ensurdecedor. Não enxergava nada.
A bateria do celular findava. Iluminou a sala com o visor. A senhora da cafeteria estava assustada. Ele
O coração disparado e as mãos trêmulas fizeram o instinto falar mais alto. Atravessou o corredor esbarrando em macas e equipamentos.
Começou como uma pressão forte o ouvido. Cambaleou até a parede. Tudo girava. Parecia que espadas perfuravam o crânio. Joelhos cederam.
Os olhos ardiam e sentiu um gosto podre na boca. Então um clarão. Uma sombra no fim do corredor. O som do trovão parecia físico. Sólido.
Se ergueu e tentou continuar. Barulho. Muito barulho. Alguma coisa gritava dentro da sua cabeça. Furiosamente. Violentamente.
A voz gritava sozinha, mas em conjunto. Estava ali e não estava. Não havia mais nada no corredor e de repente havia de novo. Ouviu Luana.
Quis destruir, queimar, torcer, partir, cortar, rasgar. Instinto. Pegou um bisturi. Sangue. O próprio braço. Repentinamente silêncio.
O terceiro grito de Luana. Não tinha forças. Sangrava. Segurava o bisturi que nem sabia como tinha conseguido. Precisava ir até ela.
Theo
Se arrastou com o bisturi em punho e o celular na outra mão. À cada quarto o coração disparava. Vazio. Vazio. Vazio. Um paciente. Vazio.
A unidade não era grande. As mãos tremiam de frio quando alcançou o final do corredor onde um vento gélido soprava. Então a encontrou.
A médica tinha cortes por todo o corpo e abraçava os joelhos no canto do quarto. Lágrimas vertiam descontroladamente. A cortina se debatia.
O vento soprava com fúria. O frio era inconcebível. A escuridão o saudava do lado de fora da janela. Ouvia de alguma forma o silêncio.
O silêncio era melodioso. Melodioso? Quando se deu conta, cantarolava mentalmente aquilo. Mas o que era aquilo? Não se lembrava.
A cama vazia, deslocada no quarto, na frente do armário. Deslocado. O buraco no peito parecia um abismo. Vazio.
E Luana?
Nem sinal.
Assustou-se quando algo se debateu no armário. Grande. Violento. Empurrava a porta e a cama com vigor. A mulher balançava a cabeça. Theo
Theo fraquejava ao passo que a poça de sangue se acumulava aos seus pés. O braço latejava. Precisou chamar a mulher três vezes.
Como quem desperta de um pesadelo, a médica começou a gritar. A coisa no armário reagiu, se debatendo insanamente. A cama se moveu um pouco.
- Marcela - leu o nome no crachá - Para de gritar e vem comigo. Rápido.
Então ela se recompôs. Encarava o braço ensanguentado com interesse
Instintivamente Marcela se pôs de pé e apoiou Theo nos ombros. Caminharam pelo corredor escuro. O celular dele chamava. Lana. Péssima hora.
A coisa no quarto fazia barulho atras deles. Theo se perguntava quantas pessoas ainda estavam ali.
- O que aconteceu com a minha pequena?
Perguntou com lágrimas nos olhos quando Marcela o empurrou para dentro de um quarto, barricou a porta e começou a fazer um curativo nele.
- Eu.. não sei. Tava muito escuro. Estavam por todos os lados. Quando vi ela já não tava mais lá. Você deveria atender isso...
Lana insistia
A chuva caiu com um peso assustador. As gotas pareciam pedras jogadas. Um estrondo do lado de fora. A coisa se libertara. Ele
Marcela e ele se jogaram contra a porta enquanto atendia o celular. Barulhos metálicos indicavam que a coisa derrubava objetos no corredor.
- THEODORO?! Graças a Deus! - achou estranho ouvir dela um tom de voz que não fosse de raiva, indiferença ou desprezo. - Graças a Deus.
- Vi na TV que bloquearam as estradas... Pelo amor de Deus, me diz que vocês não estão em Malerna. - Suplicava.
Ele engoliu seco.
Theo estremeceu quando alguma coisa se chocou contra a porta.
- Theo? Me diz pelo amor de Deus que a Luana está bem! - Implorava.
Outra pancada. Dessa vez mais forte. O celular foi jogado de suas mãos. Marcela tinha olhos desesperados. Ele
[N.A.: por limitações de caracteres, interpretem que mover para pegar o celular implica em deixar apenas Marcela segurando a porta]
O mais assustador era o silêncio. A coisa não emitia nenhum som, nenhum grunhido, nenhum grasnado. Era apenas o silêncio forçando a porta.
Theo podia ouvir Lana gritando do outro lado da linha enquanto ele e Marcela seguravam a porta - a tarefa se mostrava cada vez mais difícil
Um baque. Um relâmpago. Outro baque. Marcela tateou o chão em busca de uma arma. O terceiro baque. Theo arrepiou e segurou o bisturi.
O quarto baque. Um trovão. Uma rachadura na porta. Pedaços de madeira voaram por cima deles. Olhou pra cima. Encontrou olhos cor de sangue.
No quinto a madeira cedeu. No quinto o silêncio. Ensurdecedor. Sufocante.
Marcela instintivamente se colocou de pé. Theo estava paralisado.
No fundo da cabeça ouviu o grito de Luana. Foi quando acordou. Prostrou-se em defensiva ao lado da mulher. Encaravam a escuridão.
A atmosfera tinha peso, tinha densidade, tinha cor. Era profundamente negra. O celular chamou de novo e deixou o corredor na penumbra. Nada.
Que desgraça estava acontecendo? A tela apagou de novo, deixando os dois no escuro. Algo parecia respirar nas sombras. Seria impressão? Ele
Os dedos procuraram no escuro pelo objeto ao passo que ele tentava se manter em uma posição defensiva com o bisturi. Respirava pesadamente.
Sentia Marcela do seu lado. Nenhum dos dois falava. Theo sentia que se dissesse alguma palavra, a coisa perceberia que estavam ali.
De alguma forma se sentia protegido no silêncio e, ao mesmo tempo, preso. Exposto. Vulnerável. Escuro completo. Escutava, mas não ouvia.
Ar quente o revolveu quando alcançou o telefone. Ar quente que se movia. Tinha alguma coisa ali, sentia. Algo respirando em cima dele.
À qualquer momento esperava que olhos aparecessem no escuro. Que fosse atacado. Mas nada. Apenas a solidez do silêncio. Apenas a antecipação
Sentiu Marcela - esperava que fosse - se mover ao lado dele. Angustiada como ele. Presa como ele. A chuva caía. O visor acendeu com um SMS.
A sala vazia. Podia ouvir o coração de Marcela batendo dali. Podia ouvir o próprio coração batendo. Não era possível que não havia nada ali.
E foi quando ouviu, mais uma vez. A melodia sinistra. As vozes em uníssono cantando ao longe palavras que jamais deviam ser pronunciadas.
Um arrepio atravessou a espinha de Theo. Vinha do corredor. Segurava o celular com força. Ele
O rosto de Marcela na penumbra do visor era assustador. Theo precisou de coragem pra verificar o quarto. Irremediavelmente vazio.
Nada o esperava na porta. Nada espreitava ao lado. Nada os circundava. Apenas a sinfonia sinistra de tons baixos e lentos. Apenas as vozes.
Empunhava o bisturi trêmulo quando saiu para o corredor. Vazio. Sentia que a morte espreitava em cada canto, cada saliência. Vazio no peito.
Urgência tomava conta das suas batidas quando pensava em Luana. Precisava encontrá-la. O som parecia vir da recepção. Avançou.
A medida que se aproximava sentia náusea. Tontura. A melodia parecia correr no sangue, pulsar nas sinapses, asfixiar com a respiração.
A porta do centro estava aberta. Se aproximou com cautela. Marcela vinha logo atrás, cobrindo a retaguarda. O mesmo vento gélido soprava.
A barista da cafeteria jazia sob o balcão, imóvel. Se aproximou mais. Um aperto no estômago ao constatar a natureza da morte.
Todo o corpo tinha queimaduras horríveis. A boca e as vias aéreas estavam expostas em carne viva, cobertas de bolhas e sangue. Água fervente
Ingerida. Theo segurou o bisturi com ainda mais firmeza. A música se tornou mais alta. Mais clara. Mais rápida. Então viu.
Uma silhueta na porta. Uma forma, distinguível, mas irreconhecível. Imóvel. Como uma barreira. Marcela gritou segundos antes de vomitar.
A médica grunhia de dor no chão. Theo
Os gritos dela eram excruciantes. Ela se debatia enquanto Theo lutava para protegê-los. O estômago dele embrulhava e a cabeça girava.
A música entrava pelos ouvidos como agulhas finas, perfuram o tímpano, alcançando o cérebro. Ele também sentia dor. Dor nas vozes. Das vozes
Vozes novas e velhas. Quando Marcela parou de se mexer, ele se pôs a ouvir mais atentamente. O gosto amargo do vômito contido lhe veio.
Ele ouvia a respiração pesada dela. Ouvia a chuva. Ouvia as vozes. Ouvia trovões e o vento. Mas não ouvia nada. A figura, seria um fantasma?
Se agarrava fortemente ao bisturi. Ao alcance dos olhos, uma faca no balcão. Poderia alcança-la se quisesse. Queria. Precisava. Muito.
O cântico ressonava dentro dele. Torcia orgãos. Rasgava músculos. Quebrava os ossos. E colocava tudo de volta no lugar. Lentamente.
Foi a vez dele de sucumbir a dor. Deitou. As entranhas pareciam em fogo vivo. Sentia alguma coisa dentro dele. Era isso - tinha alguma coisa
Tinha que tirar a todo custo aquilo dentro dele - isso. Podia usar o bisturi. Podia rasgar a barriga ali mesmo e tirar aquilo dali.
Ao mesmo tempo não queria. Queria a faca. Queria cortar. Precisava cortar. Cortar Marcela lhe pareceu melhor. Sim. Dilacera-la em pedacinhos
Então a cabeça explodiu em dor e as vistas escureceram. Um vulto se moveu a sua frente. Um vulto pálido e desajeitado. Marcela.
Ela se levantava apoiando no balcão. Encarava a faca. Sim, a faca que ele tanto queria. A faca que agora ela tinha em mãos e empunhava feroz
A faca que ela apontava para ele. Ele fraquejava. Se arrastou para fora quando viu sentiu o perigo. Ela queria a faca. Ela queria corta-lo.
Se levantou com dificuldade apoiando na borda do balcão. Estava encurralado. A figura barricava a saída. Bastava para Marcela alguns passos.
Tinha uma bandeja ao alcance das mãos, mas segurava o celular e o bisturi. Podia se defender com ela, se quisesse. Theo
Errata: *perfurando.
Num movimento desajeitado, Marcela investiu contra Theo. A faca apontada em direção a sua cabeça. Ele tombou o corpo para o lado.
O gosto de ferro alcançou-lhe a boca quando a lâmina cortou-lhe a maçã do rosto. A dor serviu para fazer Theo despertar. Estava atento.
Teve poucos segundos para desviar do segundo golpe desferido na região do estômago. Marcela se movia hipnotizada. Então uma abertura.
A música não parecia nada além de um zumbido distante agora. No limiar dos olhos, a maça negra continuava bloqueando a porta, inexorável.
Quando Marcela se preparava para o terceiro assalto flexionando o cotovelo, Theo revidou se aproveitando da guarda baixa.
Sabia que o bisturi lhe concedia uma chance limitada de ataque, principalmente pelo seu alcance. Arriscado, mas era a última oportunidade.
A incisão no pescoço foi profunda. O líquido vermelho verteu sob as roupas brancas, sob a pele pálida e conferindo um aspecto assustador.
No passado, Theo jamais esperaria ser capaz de matar alguém. Ainda assim, o corpo inerte de Marcela estava ali, sob seus pés.
Não fora difícil como imaginara tantas vezes ao escrever suas próprias histórias. Na verdade, tirar a vida dela fora inesperadamente simples
E, até mesmo, agradável - agradável? Sim, agradável. Algo mudara, agora sabia. A parte difícil foi ver o desespero nos olhos dela.
O desespero de saber que Theo havia tido coragem de fazê-lo. O desespero de acordar de um pesadelo nebuloso com a dor apenas para perecer.
Mas ele não tinha tempo para nada disso. Não havia tempo para luto ou remorso. Luana. A chuva ainda caía pesada e um relâmpago cruzou o céu
Mesmo que por breves instantes, a luz fora o suficiente para que identificasse a identidade da sombra à porta. Sim, havia visto-o mais cedo.
A memória trouxe uma pontada no estômago. As feições amareladas, os olhos fundos e vazios e a postura intransponível e onisciente.
A boca costurada de forma bizarra e o revestimento áspero e sujo enfiado dentro de roupas negras e um chapéu pontudo.
O espantalho sustentava um sorriso macabro e disforme - como quem se diverte com a dor e a morte. A figura lhe trazia uma sensação horrível.
Precisava de ajuda. Lembrou do celular. Um porcento de bateria. Dezenas de chamadas de Lana. Um SMS. Seu irmão.
Três letras eram o suficiente. SOS.
Naquele instante ele teve a sensação de que Malerna seria a última vila que ele visitaria.
- FIM DO CAPÍTULO UM -
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