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Associate Professor, Wayne State University, History/African American Studies. Opinions my own, do not reflect my employer.

Sep 15, 2020, 23 tweets

O grande historiador inglês Lawrence Stone uma vez escreveu que processos importantes são multicausais, e certamente foi o caso da abolição. É politicamente interessante para alguns entender a abolição como resultado do cristianismo e do Iluminismo, mas é mais complexo que isso👇

O texto acima é um resumo disso no meu próximo livro.
1) O cristianismo era a gramática através da qual as pessoas expressavam sua visão de mundo, então era usado para tudo, tanto pelos radicais defendendo a transformação social quanto pelos conservadores que queriam preservá-la.

2) Então o cristianismo dissidente pôde ser usado para criticar a escravidão, pelo menos desde o século XVII. A tendência dominante foi, porém, sua legitimação, aqui como no mundo anglo-americano. Vide os trabalhos de @historianess, @ktgerbs e Zeron.

3) A mesma coisa continua até o século XIX, só que de forma mais polarizada. Havia cristãos abolicionistas (geralmente de denominações não-dominantes), mas também pró-escravistas, no Reino Unido, e ainda mais nos EUA.
tandfonline.com/doi/abs/10.108…

Conclusão: o cristianismo foi importante para a abolição, mas também para a escravização! O islamismo também podia ser reinterpretado para a crítica à escravidão (Malês, Salvador, 1835), assim como a religiosidade centro-africana (Campinas, 1832).

A questão também é complexa no que se refere ao Iluminismo. Havia pensadores críticos à escravidão e mesmo ao racismo, mas também havia aqueles que lançaram as bases para um racismo mais sistemático, baseado em fatores biológicos e não religiosos. Então o legado foi ambíguo!

(As páginas são da Dorinda Outram).
Podemos dizer que o abolicionismo foi impulsionado PRINCIPALMENTE por ideias cristãs e iluministas?
1) Não, porque nenhum dos dois era monolítico, sendo adaptável aos interesses de quem os utilizava.
2) Não, porque ideias não movem a história.

Isto é, ideias não são irrelevantes, mas se inserem em contextos políticos, econômicos e sociais. O abolicionismo do cristianismo dissidente esteve ligado a uma série de fatores:
1) É possível que o avanço do capitalismo tenha gradualmente deslegitimado a coerção física (Eltis)

1b) Principalmente para trabalhadores que desenvolviam empatia para com os sofrimentos dos africanos escravizados em razão de suas próprias atribulações no início da Revolução Industrial.

2) O primeiro movimento abolicionista britânico fracassou. Nos mesmos anos, veio a revolta de Saint-Domingue em 1791: a massa de escravizados analfabeta e largamente africana não precisou do cristianismo ou dos jacobinismo (ao qual tinham pouco acesso) para valorizar a liberdade.

2b) As ideias revolucionárias circulavam em Saint-Domingue e foram apropriadas por brancos e livres de cor, mas é muito difícil encontrar seus ecos entre os escravizados, que teriam dificuldade de acessá-las. A religiosidade africana pode ter tido um peso maior, mas sem exagero.

2c) No final das contas, a experiência de 450 mil pessoas escravizadas, 300 mil delas traficadas da África, era suficiente para que elas valorizassem a liberdade! Os rebeldes no primeiro par de anos não tinha qualquer amor pela Revolução Francesa, aliando-se aos espanhóis.

2d) É exatamente como uma medida desesperada para atrair os revolucionários negros que os comissários franceses decretam a abolição em 1793 - e Toussaint e companhia passam para o lado deles porque é isso que querem! Os jacobinos decretam a abolição à reboque no ano seguinte.

2e) Aí sim há uma apropriação do discurso revolucionário, mas novamente como uma gramática, dentro dos objetivos dos próprios revolucionários, que é obter a liberdade (e, no caso dos líderes, manter o poder). Então, enfim, a Revolução Haitiana pouco deve ao legado ocidental.

3) A abolição britânica ganha força já impactada pela Revolução Haitiana, e ligada também à perda de importância econômica das plantations caribenhas para uma economia inglesa mais diversificada com a Revolução Industrial.

4) As ideias revolucionárias ajudam a impulsionar a abolição gradual em regiões das Américas em que a escravidão é menos importante, em grande medida por causa da participação negra nas guerras de independência.

5) A Grã-Bretanha adota uma política antinegreira para atender os produtores insatisfeitos das suas ilhas caribenhas e porque ela cumpria sua função de afirmar a hegemonia moral e política, ampliando o domínio sobre as rotas comerciais e lhe permitindo atuar como polícia do mundo

Já ficou muito grande, então vou só reforçar o ponto central: a posição predominante na historiografia não é de que o cristianismo e o Iluminismo foram os fatores centrais para a abolição. Inclusive legitimaram também a escravidão, e isso pelo menos até a Guerra Civil Americana.

Houve outros fatores econômicos, políticos e sociais num processo complexo, e em minha opinião eles têm prioridade. A luta social sempre teve um papel central. “Power concedes nothing without a demand” (Douglass) e isso foi verdade em todas as abolições. blackpast.org/african-americ…

E, claro, formas de trabalho compulsório continuaram nas colônias europeias na África e na Ásia até o século XX, sendo o racismo um elemento central do imperialismo europeu, com justificativas frequentemente cristãs e de base iluminista. Ideias são reinterpretadas a todo tempo!

Isso não significa que sinto “culpa pela minha história”, @JoelPinheiro85. O que faço é tentar entender o passado para iluminar o presente, e isso implica reconhecer a complexidade do passado e o papel central da luta para o avanço social (e isso, claro, é ideológico também). FIM

@threader_app compile

O primeiro fio do debate está aqui. Tem muitos outros nas respostas, ficou caótico mesmo. Novamente, peço desculpas aos que não consegui responder, foram replies demais.

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