Bom dia. Prometi um fio sobre os desafios das manifestações de rua e a dificuldade da esquerda partidária compreender e se definir em relação à atual conjuntura. Lá vai.
1) As manifestações que iniciaram em 29 de maio são coordenadas por mais de 600 entidades que se reúnem ao redor da Campanha Fora Bolsonaro. São organizações do campo popular e de esquerda. Então, o primeiro passo é distinguir esquerda.
2) Temos uma divisão não explícita entre a esquerda que se vincula aos movimentos sociais e entidades da sociedade civil e a esquerda partidária. Esta divisão já existia em muitas organizações de esquerda (semi-clandestinas) desde os anos 1980. Havia divergências internas
3) A esquerda partidária brasileira fez um movimento gradual desde meados dos anos 1990, se afastando lentamente das ruas e se dirigindo privilegiadamente ao campo institucional. O lulismo reforçou esta escolha.
4) Alguns partidos de esquerda permaneceram com laços importantes com os sindicatos e entidades estudantis. Faz parte da tradição de frente de massas da esquerda brasileira há décadas. É daí que saíram grande parte da militância e dirigentes da esquerda.
5) Contudo, mais e mais o campo institucional passou a ser prioridade nas análises de conjuntura e agenda de toda esquerda partidária nacional. Até para criticar as escolhas de outros partidos de esquerda (caso, por exemplo, de Luciana Genro apoiando a operação Lava Jato)
6) A reforma trabalhista, em especial, quebrou uma das pernas da relação da esquerda partidária com o campo não institucional: os sindicatos. Centrais sindicais, um ano após a lei ser aprovada, perdiam mais de 80% de suas receitas. O campo institucional passo a ser vital
7) A prioridade no campo institucional tem um preço: a parlamentarização das direções. É comum encontrarmos, hoje, direções de partidos de esquerda quase exclusivamente parlamentares. Ora, parlamentar fala grosso, mas negocia e cede o dia todo (ainda que não fique público).
8) Mas, há uma outra esquerda, mais aguerrida, que negocia a partir da pressão das lutas sociais. Em muitos casos, é uma esquerda que está nos partidos, mas não prioriza o campo institucional. Outras vezes, nem filiada é. Se organiza em movimentos sociais, coletivos, entidades.
9) Nos estudos da área sindical no Brasil, há décadas são identificadas duas estratégias de legitimação das lideranças: a) sua capacidade de gerar resultados; b) sua capacidade de mobilizar a base e pressionar patrões e governos para aceitarem suas demandas.
10) Esta divisão, em certa medida, se reproduz na esquerda brasileira: a esquerda partidária que prioriza as negociações no campo institucional ou as eleições; e a esquerda que mobiliza e articula pressão da rua e das suas bases sociais a partir do conflito.
11) As mobilizações são, hoje, dirigidas por mais de 600 entidades que, em sua maioria, adotam o "mobilismo" (a pressão via conflito e mobilização da base social). Temos, então, uma ruptura ou contradição entre as "duas esquerdas": campo institucional X mobilismo.
12) Neste 2021, a mobilização de rua é muito distinta da que ocorreu em 2013. Agora, é visível nas ruas a predominância do vermelho. É a esquerda que comanda e organiza. Um avanço que traça um paralelo com o que ocorreu recentemente no Chile
13) No Chile, as mobilizações estudantis alçaram lideranças do partido comunista ao topo da cena política nacional. Era a esquerda nas ruas. E o Partido Comunista do Chile soube fazer a leitura mais correta. Cresceu e ganhou legitimidade pública.
14) Então, chegamos no atual momento. Amanhã, muitas entidades entregarão um "superpedido de impeachment" de Bolsonaro à Câmara de Deputados. À frente, entidades e partidos de esquerda. Também estarão liberais e direita, mas subordinadas à liderança da esquerda.
15) Em seguida, no dia 3 de julho, próximo sábado, as mais de 600 entidades liderarão mais uma vaga de manifestações "Fora Bolsonaro" em todo país. E repetirão a dose no dia 24.
16) A "onda" que começa a ser criada lembra algo de 2013, em que a cada semana centenas de cidades presenciavam muitos protestos e mobilizações de rua. Mas, agora, existe uma pauta e lideranças nítidas.
17) Temos, assim, dois desafios no momento. O primeiro, diz respeito às mais de 600 entidades que dirigem as mobilizações de rua contra o governo federal. Decidiram aumentar a pressão e diminuir o intervalo entre uma e outra mobilização. Portanto, apontam para a mudança
18) A ofensiva da Campanha Fora Bolsonaro sugere sua liderança nacional e tomada da agenda política do país. Não se trata mais de apenas protestos, mas, agora, de exigências de mudança. Estamos à um passo de construção de um cerco político contra o Centrão (vejam o card abaixo)
19) Se tal ofensiva prosperar, os partidos de esquerda serão obrigados a voltar às origens. E a agenda eleitoral de 2022 sai de cena. A direita passará a se movimentar para garantir os dedos. Não se sabe se entregarão algum anel.
20) Os partidos do campo de esquerda não estão preparados para enfrentar esta possível mudança de conjuntura, cujo antagonismo estará fundado na ofensiva das ruas. Este é o ponto a ser objeto das discussões políticas deste campo político neste momento. (FIM)
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