1. Será mesmo? Em primeiro lugar, felicitemos Miguel Matos por ter feito um notável trabalho, reunindo as citações jurídicas no conjunto da obra machadiana. Porém, a "prova" que imagina ter encontrado é antes sinal da astúcia machadiana. Siga o fio.
oglobo.globo.com/cultura/livros…
2. O capítulo que seria a "prova", "Embargo de terceiros" tem um título significativo, sugerindo maliciosamente um trio amoroso: é verdade, Miguel Matos tem razão! Mas, vamos ler o capítulo? E sem esquecer que vale a pena desconfiar do narrador, pois é só ele tem voz na trama.
3. Ora, em nota, o editor já destaca a questão do "embargo de terceiros". Não é nada novo na crítica machadiana. O mais importante: eis como o narrador casmurro, Bento Santiago, fala de si mesmo (me diga se essa pessoa é confiável!):
"Cheguei a ter ciúme de tudo e de todos. Um
vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança".
Associe essa confissão com outro momento de confissão do narrador no capítulo "Uma égua":
"A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta..."
4. Agora, reúna esta imaginação poderosa com aquele ciúme poderoso! O resultado? Fantasias contínuas de adultério. Vamos ler outro capítulo, "Dez libras esterlinas". Eis a arte machadiana! Leu? Leia de novo! Nesse capítulo, tanto se pode "justificar" a presença de Escobar na
casa do casal, quanto se pode pensar que a "traição" não foi fortuita, porém sistemática.
5. Como escolher entre as duas opções? Eis o pulo do gato: pela leitura minuciosa do romance, não se pode decidir! Há passagens que parecem sugerir a traição, mas há outras que mostram um
narrador neurótico, dominado pelo ciúme. O capítulo seguinte ao "Dez libras esterlinas" chama-se "Ciúmes do mar"! Em outra confissão do narrador:
"Os meus ciúmes eram intensos, mas curtos...".
6. Leia o último capítulo: a peça final de acusação! Veja como o narrador hesita:
"E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica..."
Se a solução pode ser qualquer uma, então, nada fica! O narrador-vítima-promotor-juiz-júri não dispõe de uma única "prova" incontestável: por isso escreve, para convencer-se a si mesmo. E nem isso consegue. Houve traição?
7. Aqui brilha o gênio de Machado de Assis: se o ciumento é aquele que não sabe, mas tem plena convicção, ele não pode senão fabular fantasias de adultério. O leitor de Dom Casmurro também não sabe, não pode saber com certeza! Machado inventou a forma literária do ciúme! GENIAL!
Share this Scrolly Tale with your friends.
A Scrolly Tale is a new way to read Twitter threads with a more visually immersive experience.
Discover more beautiful Scrolly Tales like this.