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"É com a cabeça enterrada no esterco que as sociedades moribundas soltam o seu canto do cisne". (Aimé Césaire) Professor. Pai do Pedro.

Sep 18, 2021, 14 tweets

Divulgação científica:

Algumas pessoas sabem, mas meu alter-ego vem orientando uma pesquisa sobre saques na região Nordeste entre 1979 e 1994. Orientei três alunos nesse projeto que se encerrou semana passada e olha, gostei muito do trabalho deles.

A gente partiu de um problema político e histórico: os anos 1980 são marcados por um contexto de hiperinflação que ocasionou saques em supermercados no Sul-Sudeste do Brasil. Tem teses e dissertações sobre o tema. O básico: carestia e decadência da ditadura.

No Sul-Sudeste, a explicação era sempre de ordem econômica: a inflação alta, a perda do poder de compra, quando vê, bum! Revolta popular e saque em supermercado.

Contudo, no Nordeste, não teve incidência de saques? E se teve, a hiperinflação era a causa?

Bom, pessoal foi fazer prospecção na imprensa e não só encontraram mais de 200 ocorrências de saques no período - chegaram a produzir um mapa com todas as localidades onde ocorreram saques - mas também fotos, depoimentos e as opiniões da própria imprensa.

O quadro é bastante complexo, mas resumindo toscamente, os saques no Nordeste eram vistos como consequência exclusiva da seca. Determinismo geográfico mesmo. Algumas palavras-chave ganharam destaque, como "flagelados" (chegamos a pensar na possibilidade do termo ser racializado).

O problema é que conforme as análises mudaram do quantitativo para o qualitativo, essa narrativa da imprensa foi sendo contestada. Primeiro, que a demanda principal era por trabalho - o que dialoga com a questão da SUDENE, das Frentes de Trabalho e do antigo DNOCS na região.

Segundo, que as mulheres tinham papel bastante ativo nos saques - que muito raramente eram violentos.

Terceiro, que a polícia da ditadura não tinha condições de reprimir esses atos, desde que eles seguissem um repertório cauteloso de anonimato e multidão.

Quarto, que por vezes vereadores e políticos tentavam mediar a crise, mas os saques tinham seus próprios líderes, costurados a partir dos próprios eventos e da própria comunidade. O mais interessante, contudo, é que pela imprensa era muito difícil encontrar esses sujeitos.

(mas eles estão lá, afinal, alguém organizava diversas cidades para juntar um mutirão no sertão de Pernambuco para saquear uma cidade...esse trabalho organizacional quebra de vez a vitimização e animalização dos jornais)

Enfim, esses são alguns dos principais apanhados da pesquisa que, espero eu, renda alguns textos em breve.

O projeto sobre os saques na região vai recuar um cadinho mais no tempo agora e vai agora mergulhar no contexto da ditadura, 1964 a 1979.

A hipótese inclusive é de que talvez o saque na região Nordeste seja uma performance de luta social muito mais enraizada que no Sul-Sudeste, tão forte que, creio eu, nem a ditadura conseguiu sufocar.

Agora é ver se os novos pesquisadores vão confirmar essa hipótese, ou derrubar.

PS: Não tive tempo para pegar os prints da Hemeroteca da Biblioteca Nacional, então algumas imagens aí são do Memorial da Democracia e as outras foram tiradas pelos pesquisadores no NUT-SECA, da UFRN.

Esperamos consultar mais acervos físicos no futuro. :)

PS2: Para os pesquisadores não me cobrarem depois, mas eles acharam mais de 200 ocorrências, mas saíram convencidos de que tem muito mais e que os jornais não noticiavam - embora às vezes só a ameaça do saque já era suficiente pra ganhar uma manchete.

PS3: Foda-se, vou marcar eles, sim. A pesquisa é da galera, é justo que eles mereçam o crédito. :)

@__naIaura e o @hist_ric têm Twitter. O Thiago, que também participou da pesquisa, acho que não tem. Se tem, não me contou. 👀

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