Eu gosto muito de brincar com as ideias da expectativa de progresso das pessoas. Via de regra, é uma ideologia tão poderosa que até Marx - sim, o próprio - caiu nela.
Pois é, pega lá o Manifesto Comunista, Marx novinho, todo o início do livro é ele louvando a burguesia, a classe que finalmente tirou todas as amarras da sociedade, substituindo elas por dinheiro.
Os laços comunitários do mundo pré-capitalista escondiam relações de dominação e exploração, mas somente o capitalismo ia transformar essa lógica, criando uma razão a parte de toda a vida social.
O que isso quer dizer?
Que, na Idade Média ocidental, por exemplo, o camponês trabalhava porque a ideologia dominante - a da cristandade - entendia que o trabalho era regenerativo do corpo e do espírito. Isso garantia o excedente para o clero e a nobreza viverem melhor que os camponeses.
Mas não havia prescrição lógica de como o trabalho deveria ser feito. Nos dias santos, muitos camponeses não trabalhavam. E quando trabalhavam, não viam necessidade de trabalhar mais do que precisavam, somente cumpriam suas obrigações.
Em termos marxistas, isso significava que o excedente era pequeno e, mais ainda, que não havia razão para aumentá-lo. Consequentemente, a produção de riqueza era baixa e, claro, a exploração do trabalho também.
As coisas complexificam quando olhamos para grandes impérios não-europeus. Sistemas de "parcela" e "jornadas" se difundiram fora da Europa, com camponeses assalariados, ou sistemas de reforma agrária comunais - ainda que hierarquizados.
Essa ideia de vidas comunais - mas não comunistas - nos quais o tempo da natureza é determinante da vida social talvez seja uma aberração hoje (alguém reclamou do horror que é ir dormir às 20h e acordar às 4h), mas é a forma mais básica de organização social.
Por conta disso, em 1853, Marx chegou a considerar que a imobilidade dos camponeses na Índia era algo "selvagem", que beneficiava o despotismo oriental. Anos depois, como mostra Kevin Anderson, Marx mudou sua forma de pensar. Mas as ideias de 1853 ainda perduraram nas esquerdas.
Sair do domínio da natureza e passar a dominá-la passa a se tornar a síntese possível, para superar, entre outras coisas, a doença e a morte. Em termos foucaultianos, para manter corpos saudáveis, sim, mas para a produção.
Dizer que hoje trabalhamos mais do que um camponês medieval é também dizer que vivemos mais que ele. As coisas andam juntas. Vivemos mais porque somos mais necessários para a reprodução metabólica da sociedade que vivemos.
Óbvio que ninguém quer viver menos, mas viver mais implicaria viver com mais qualidade. Nesse ponto, sim, é preciso dominar a natureza, nos termos de Marx. Mas esse domínio vem com a destruição dos laços comunitários e a alienação do trabalho. Como faz então?
Bem, a história da destruição dos laços comunitários é a história do longo século XIX, mas que respinga até hoje. É a história de quando você rasga uma calça, sai mais barato comprar uma nova do que mandar consertar o estrago.
A história da dissolução dos ofícios, da segurança alimentar local, da diminuição das famílias etc. Tudo isso tem como contrapartida o aumento da expectativa de vida, uma vida mais saudável, corpos mais dóceis e disciplinados.
Há uma invariável contradição na ideologia do progresso que fica evidente na sua historicidade. Nem sempre foi assim. Estamos melhores agora? Bem, nunca trabalhamos tanto, nunca tivemos tanta desigualdade em escala global e nunca consumimos tantos recursos do planeta.
Vivemos mais, nunca tivemos tantas mercadorias à nossa disposição, nunca tivemos tanta renda disponível globalmente... esses são também os frutos do progresso.
Apontar essa ambiguidade não deveria necessariamente te tornar um romântico ingênuo, ou um pseudo-iluminista de botequim. É simplesmente constatar aquilo que o próprio Marx entendeu: da dissolução do mundo, tudo aquilo que parece estável, é na verdade falso, limitado.
Inclusive o progresso.
Foram necessárias duas guerras mundiais, milhões de mortos, mais colonialismo e demais horrores, para as pessoas entenderem que o progresso era um fenômeno contraditório.
Que agora, que estamos perigosamente próximos da destruição de incontáveis recursos naturais - e da nossa própria existência - tenha tanto arauto do progresso por aí, é assombroso.
Será que só com uma destruição insensata a crítica dialética ao progresso pode sobreviver?
Para quem quiser ler mais, E.P. Thompson, Jean Tible, Kevin Anderson, Jaime Osorio, Marshall Berman e Ellen Wood são algumas boas indicações que tenho.
Literatura marxista, convém dizer. ;)
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