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"É com a cabeça enterrada no esterco que as sociedades moribundas soltam o seu canto do cisne". (Aimé Césaire) Professor. Pai do Pedro.

Jan 24, 2022, 15 tweets

Se tem um mês culpa que os historiadores precisam fazer é de ter ensinado para os jornalistas o termo "anacronismo".

De uma discussão metodológica sobre leitura de indícios do passado, o termo virou uma simplificação grosseira, do tipo: não posso julgar os Bandeirantes com os valores de hoje pois isso é anacronismo.

Bem, news flash para quem não é da História: desde a geração de Marc Bloch e Lucien Febvre, e já vai aí quase 100 anos, a gente aceitou que inescapavelmente proferimos julgamentos sobre o passado a partir do presente.

Tem duas linhas de discussão nesse ponto: a primeira, de que o julgamento de valor é, em certa medida inevitável. Ele pode ser contido por procedimentos metodológicos muitos, que vão desde a coleta de dados, sua interpretação e, até mesmo, a escrita.

Mas ele não é suspenso.

E isso não é coisa de marxista, não. É Weber. Então, assim, esse é o primeiro ponto da questão: os historiadores são sujeitos políticos, morais e, sua ciência inevitavelmente reconhece essa subjetividade.

E não, isso não é relativismo. Quem defendia isso, de novo, era Bloch.

Bloch determinou uma máxima interessante aqui: toda história é história do tempo presente. As perguntas que formulamos ao passado (ou aos vestígios do passado) são invariavelmente construídas no presente.

É isso inclusive que permite a história se renovar enquanto disciplina.

A galera estuda até hoje o Egito Antigo, Roma, Idade Média... novos vestígios surgem justamente a partir de novos olhares e novas perguntas sobre o passado.

E aí entra nossa discussão sobre anacronismo: como controlar o impulso de julgar o passado com os valores do presente?

Bem, entendendo que o presente não tem nenhum privilégio especial ao investigar o passado, que suas respostas são provisórias e que mesmo suas questões podem ser efêmeras.

De fato, boa parte do nosso ofício é justamente na dialética entre nossos valores em luta e os valores em luta do passado. Essas tensões são interessantíssimas, pois quebram tanto o empirismo quanto o relativismo mais ingênuos, exigindo uma constante crítica da disciplina.

Vamos falar dos Bandeirantes: não há nada de errado em analisar seus atos sobre a luz dos povos dominados, o que significa mergulhar nos julgamentos contemporâneos dos derrotados.

E esse tipo de comprometimento do historiador com os vencidos só é possível em nossos tempos.

(ou ao menos, com as ferramentas teóricas que temos hoje)

Não há nada de anacrônico em tentar entender processos violentos pela perspectiva dos subalternos. Na verdade, uma grande demonstração de anacronismo talvez seja o contrário.

Acreditar que os valores do passado eram somente os dominantes (que naturalizavam a violência contra os dominados) é uma forma de congelar no tempo uma cultura e uma sociedade a partir da sua concepção dominante. Ela é tirada de seu próprio tempo e de sua própria dinâmica.

Anacronismo, nesse caso, não é a "mistura das temporalidades", mas sim a negação do tempo na investigação do passado. Serve justamente para relativizar a violência no passado - e, muito possivelmente, legitimar ela no presente.

Um exemplo primário disso é a discussão sobre escravidão na África. Não é nenhuma surpresa que os críticos das cotas gostem tanto de argumentar que os africanos escravizavam africanos.

Para além da imprecisão, o anacronismo que serve justamente para negar o tempo e...

... relativizar as violências do presente.

Muito ao gosto de sinhôs e sinhás do nosso século XIX. Ou XXI.

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