1 fav = te conto algo que aprendi quando trabalhei, anos atrás, no sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro.
1. Trabalhei em duas unidades do sistema; a primeira no mítico Complexo de Bangu - que não tem mais esse nome, pois se chama Complexo de Gericinó. A mudança atendeu a uma reivindicação dos moradores do bairro, pois o nome antigo era um estigma - mas o estigma não descolou.
2. A segunda cadeia foi em Japeri. Na verdade, Engenheiro Pedreira, área rural de Japeri. Quando os presídios subiram não havia nada no entorno - e nada é nada mesmo. Com o tempo o entorno foi sendo ocupado por novos comércios e novos moradores - muitas vezes parentes de presos.
3. Bangu é gigante, surreal mesmo. No meu primeiro dia me perdi lá dentro. A minha unidade era a menina dos olhos da SEAP, modelo, penitenciária industrial. Os presos (alguns, não todos) trabalhavam para descontar um tempo da pena - e a fila de espera por uma vaga era gigantesca.
4. No meu primeiro dia fui apresentado ao diretor, aos demais técnicos (eu era do Serviço Social, mas trabalhamos juntos com Enfermagem, Psicologia e Direito, mas esse quase nunca ia) e aos "faxinas", presos que trabalhavam diretamente com a gente, em funções de secretariado.
5. Na minha primeira semana um preso pediu pra eu entrar com um chip de celular pra ele. Eu me fingi de maluco, ele percebeu e passou a me tratar com todo o respeito do mundo. E não, eu não o denunciei. Não sejam X9, nunca. É sério. É o que há de pior no mundo.
6. Uma vez um preso foi na minha sala dizendo que ouvira uma info trazida por visitantes de um colega de cela sobre a filha dele ter morrido. Eram da mesma cidade, os presos. Ligamos pro Conselho Tutelar e sim, a menina havia sido morta. Pela mãe.
6.1. O diretor da unidade é quem dá notícias do tipo (assim como o médico em um hospital; assistente social NUNCA comunica morte). Como eu tava no caso pedi pra estar na sala. Eu vi o brilho no olho dele se apagar assim que ele ouviu. Ele morreu em vida ali. Nunca vou esquecer.
7. Família é sagrada pro preso. É a conexão dele com o mundo livre, com a vida dele antes daquele inferno. Por isso não há rebelião em dia de visita, o clima é de profundo respeito, eles abaixam a cabeça quando o familiar de outro preso passa, enfim. E a mãe do cara é Deus.
8. No RJ, presos são divididos por facções, contrariando a LEP, que manda que a divisão seja feita por proximidade da residência - em tese pra facilitar a visita. Mas é RJ. Então era bem comum a família sair de Campos pra Bangu pra passar um dia com o preso. Uma vez por semana.
9. Quando eu falo "família" eu falo mãe, esposa, irmã... mulheres. Homem não visita pessoa encarcerada. Abandona mesmo, é um padrão. Inclusive é algo que tenho vontade de estudar melhor.
10. Um outro padrão é no encarceramento feminino: no RJ, mulheres são presas geralmente por tráfico, junto com seus maridos - ou traficando a mando deles. O cara não vai visitá-la por motivos óbvios, e nem solicita visita entre presos (sim, é possível).
11. Também por isso, mas não só, mulheres casam entre si nas unidades aonde estão presas. Uma vez eu perguntei numa entrevista se ela levaria o relacionamento pra fora da cadeia e ela "tá doido?, eu sou casada, gosto de rola, é que ficar sozinha aqui dá não". E não dá mesmo.
12. Falando nisso, fiquei responsável pelo processo de visita íntima na unidade onde trabalhava. Esse é um benefício dado a alguns presos que queiram passar um dia na semana, manhã e tarde, com a companheira (união estável, no mínimo). Mas isso era muita treta. Tipo, mesmo.
13. Pra usar o benefício, a companheira precisa levar exames atualizados e assistir palestras sobre DST/Aids. Isso na prática serve pra resguardar juridicamente o Estado de não ser processado caso ela seja contaminada pelo companheiro dentro de um prédio público.
14. Porque assim: lembram que ali em cima eu falei sobre presas que casam entre si? Então, sexo entre homens presos é comum - estupro nem tanto, mas também. Mas é tudo "na encolha". A incidência de DSTs nesse cenário é preocupante, e a chance de ele passar isso pra esposa existe.
15. Quando eu tava no sistema o processo, entre a entrada e o primeiro dia de uso do benefício, levava 45 dias pra ficar pronto, no mínimo. Já teve mulher de preso que ofereceu sexo pra que eu adiantasse eles na fila, e ofereceu abertamente, sem rodeios. "Podemos fazer aqui".
16. Eu de novo fingi que não entendi (se fazer de maluco salva vidas, inclusive a sua) e botei pra frente. Tempos depois descobri que ela, na verdade, era uma garota de programa contratada pela facção do cara pra visitar ele. Sim, tem dessas coisas.
17. Isso era fácil de burlar porque o documento pra comprovação do casamento era uma declaração de convivência marital, algo simples, assinatura do casal e de duas testemunhas. Ninguém checava nada, podiam escrever qualquer coisa ali e foda-se. Hoje confesso que não sei como é.
18. Quando o casal não tinha visita íntima, o pessoal dá um jeito: no dia da visita comum, quando todo mundo estiver no pátio, o casal vai pra um cantinho, geralmente uma cela vazia, e brinca ali. A gente chama isso de "ratão". E isso só acontece porque os agentes são coniventes.
19. Sem juízo de valor aqui, certo? Sexo é vida e é algo natural, necessário, fundamental. O "ratão" é proibido, claro, até porque o sistema precisa ter o monopólio das permissões pra funcionar, mas é cuzice demais imaginar que o ser humano não dará o jeito dele, ainda mais ali.
20. Falando em corrupção: só entra algo ilegal se o agente permitir. Drogas, celulares, armas, absolutamente nada passaria se o sistema realmente trabalhasse sério. A revista não é mal feita, o problema é o agente que finge que não viu algo e olha pro outro lado quando passam.
21. Dito isso, uma coisa: meus problemas na cadeia sempre foram com agentes. São violentos com os presos e violentados por um Estado que os trata mal. Fui ameaçado por um preso uma vez só, que voltou em 15 minutos pedindo mil desculpas. "Estava estressado". E como não ficar?
22. Batíamos de frente com os agentes porque eles não gostam de preso circulando - e pra ser atendido o preso precisa ir à nossa sala, solicitando isso pro guarda ou esperando o nosso chamado, que também passa pelo agente. "Porta boa é porta fechada", diziam.
23. Aí, pra agilizar o meu trabalho e o atendimento dos presos, eu pegava uma prancheta e ia na cela dos caras. Uma vez um agente me trancou lá dentro, não percebeu que eu tava ali. Mas os presos me trataram como um visitante deles, ofereceram água, biscoito, cama pra sentar.
24. Tem muita gente presa no Brasil por algo que não fez, sobretudo por causa de um sistema judicial racista e seletivo, e esse debate precisa ser feito. Mas quase todo preso se diz inocente, papo de 8 entre 10 detentos falam isso. Mas dá pra ver quando é real e quando é caô.
25. A cadeia massacra o preso. Mãos pra trás, silêncio e cabeça baixa o tempo todo. Descumprir isso gera sanções. A gente no Serviço Social pedia pro preso ficar à vontade dentro da nossa sala, sem seguir essa regra de merda. Isso ajudava a criar uma proximidade bem legal.
26. Fora que é uma pessoa humana ali, com direito à dignidade. Eu sei que isso parece óbvio (e é), mas nos tempos atuais isso precisa ser dito.
27. A penitenciária industrial onde eu trabalhei tinha várias fábricas: além da cozinha, que servia refeições inclusive para outras unidades, tinha também fábrica de pipas, de tijolos (um tijolo desenvolvido pela Coppe/UFRJ) e de placas automotivas, numa parceria com o Detran.
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O mesmo jurado de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, bailarino solista do Theatro Municipal, pediu mais agilidade a Claudinho e Selminha e reclamou do excesso de vigor de Matheus e Cinthya. Simplesmente não percebeu a diferença de estilos e escancarou a falta de critério. Desanima.
Uma jurada de Bateria canetou o Império Serrano porque os agogôs estavam muito altos. Os agogôs. Do Império Serrano.
"No tripé a alegoria do saci pererê parecia incompleta, faltava o pé (...)", diz a justificativa de uma nota da Portela.
Nós acordamos hoje pra vender o grande amor das nossas vidas graças aos bandidos que secaram o Vasco quase até o fim. É fácil identificar cada um deles, em lives diárias, ações judiciais e textos chorosos em redes sociais. A fauna é extensa. Esse, no fundo, é um dia muito triste.
Passamos do ponto de não-retorno há muito tempo. Do folclore em torno do bufão dos charutos à absoluta incapacidade do atual mandatário, passando pelo golpista otário que se acha malandro, onde nos perdemos de vez? Onde o Vasco deixou de depender apenas de si pra tomar jeito?
E como será daqui pra frente? Teremos paciência? Porque os resultados certamente não virão da noite pro dia. Os ladrões de outrora, donos de 30% do negócio, seguirão sentando à mesa. E, ainda que com menor peso, decisões importantes seguirão passando por quem nos trouxe até aqui.
Laíla foi o herói de toda uma aldeia, gente distante e miserável que era mal vista pela "cidade", mas que passou a ser respeitada por fazer samba. Por ser grandiosa. Por se atrever, com todo o respeito, a brincar no quintal das grandes. Laíla foi, enfim, o meu herói. Explico.
Foi a partir da Beija-Flor que eu e muita gente enxergamos que a grandeza era acessível. Era tudo muito duro, menos em fevereiro: ali éramos a corte negra rasgando a reta sagrada. E nossos heróis eram Pinah, Sônia, Neguinho, Joãosinho, Edmar e Juju, Claudinho e Selminha. E Laíla.
Laíla era o herói que eu, criança/adolescente, encontrava por Nilópolis em atividades mundanas: no mercado, na farmácia. Na rua. A imagem do homem duro, obsessivo e até grosseiro até vendia boas histórias, mas era uma meia verdade; a verdade e meia é que Laíla era doce. Amoroso.