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Aug 22, 2019 11 tweets 4 min read Read on X
Recife é uma das cidades nas quais o mito da democracia racial teve seu mais exuberante desempenho. Não podia ser diferente: aqui, um dos bastiões dessa perspectiva adocicada, Gilberto Freyre, nasceu. Na foto em PB, ele é servido por Manoel ("há muitos anos em nossa família")
é interessante observar os ecos dessa ideia tranquilizadora mesmo entre setores mais intelectualizados. há uma saudade das "tradições", ainda que elas guardem um forte sabor escravocrata. Um exemplo é o nome de um edifício de classe média no bairro da Torre, o SENZALA DO MEGAYPE.
Há outro clássico também: em Apipucos, terra de Freyre e da Fundação Joaquim Nabuco, há o motel Senzala, cujo logo é a bunda morena de uma mulher (em Porto Alegre, um motel com o mesmo nome tem a suíte Zumbi, na qual há grilhões para uso da clientela - mundonegro.inf.br/motel-senzala-…)
Há a Casa Grande Engenharia, a padaria Engenho de Casa Forte...
São espécies de materializações de relações sociais profundamente desiguais e difíceis de serem quebradas justamente pelo adocicamento histórico. Aqui, é comum ver casais nos restaurantes enquanto as babás cuidam do bebê.
Também é comum, ainda, o elevador de serviço e o "quarto de empregada". Paula Gomes e outras pesquisadoras fizeram trabalhos apreciando essa arquitetura da desigualdade cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?scr… e scielo.br/scielo.php?scr…
são na maioria das vezes mulheres negras, disponíveis todos os dias, inclusive aos domingos (como vemos na foto abaixo, feita por Sérgio Bernardo, na qual a família branca que vive à beira-mar, em Boa Viagem, surge feliz - e servida - em uma manifestação dominical pró JB)
Essas mulheres, como Manoel, o copeiro de Freyre, são "quase da família". Hoje cedo, no supermercado, vi uma senhora mandando a empregada pegar um ou outro item enquanto ela ia empurrando o carrinho. A moça, o cabelo vermelho, ficou constrangida quando viu que eu olhei a cena.
Fico pensando na perversidade dessas relações "amigáveis", calcadas na política da casa grande, frente a um cenário de desemprego. Elas tocam especialmente mulheres negras, cujos salários já são em média 30% menores ipea.gov.br/portal/index.p…
Conheço várias pessoas injuriadas com a regulamentação do emprego doméstico: deixaram de ter mulheres à sua disposição. "Você não precisa de uma para botar o seu café da manhã?", já ouvi. em cidades do interior, paga-se cada vez menos ao trabalho das diaristas (R$ 50 em caruaru)
Enfim, ainda reverbera aqui a moça andando rápido pelos corredores do pão de açucar levando mantimentos para sua patroa. Não sei se é a reatualização do freyriano "branca pra casar, mulata pra fuder". Mas é, certamente, o do "negra pra trabalhar". cargocollective.com/jonathasdeandr…

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Quando entrei na UFPE e depois na redação do JC, descobri que havia um menu de olhares muito específicos sobre a pobreza. Foram meus grandes primeiros contatos com pessoas de classe média mais alta ou pessoas ricas (1)
instagram.com/p/CYh2vwkLMRZ/…
Foi ambém o início de um aprendizado sobre como seria preciso, como jornalista, desarticular esse menu. Ele não era justo com as formas múltiplas de existência dentro dos ambientes de pobreza/classe média baixa (2)
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o tuíte desumano de @JanainaDoBrasil é a exposição da humanidade-sob-medida de uma generosa fatia da elite brasileira. nela, a pobreza ou a dependência química, por exemplo, são antes de tudo falhas morais. esse grupo olha tudo a partir de um salto que julga meritório. +
nele também morre a ideia de coletividade - ou seja, no limite, morre também a ideia de política. se moradores (= proprietários) e trabalhadores (=servem para alguma coisa) da região não aguentam mais pessoas dependentes, então podemos inferir que estas estão confortáveis ali +
estão, na desumanamente chamada "cracolândia", muito confortáveis em se situar no meio da merda, no meio do lixo, no meio da fome, no meio do nada. @JanainaDoBrasil atribui a cada um o fracasso pessoal. Não prestaram atenção nas dicas de Jesus enquanto coach. O Jesus de Janaína.
Read 4 tweets
Jun 29, 2021
Apesar de se vender como diversa, moderna e digital, a imprensa brasileira continua a espraiar toda uma sorte de racismos, aos moldes dos jornais do início do século 20. Falo sobre o tema e o caso Lázaro Barbosa na coluna nova no @TheInterceptBr

theintercept.com/2021/06/29/rit…
aqui, lado a lado, notícia divulgada pelo @Metropoles e manchete do Jornal de Alagoas de fevereiro de 1912. Em ambos, o pânico em relação ao não cristão, que, no Brasil, se relaciona fortemente às religiões de matriz afro-brasileiras.
um dos fatos mais absurdos foi a divulgação de fotos dos objetos do terreiro do pai de santo André Vicente como se fossem dos rituais praticados por Lázaro. Foi o próprio pai q fez a denúncia. As imagens feitas pela PM aparecem, por exemplo, na @CAPRICHO
capricho.abril.com.br/comportamento/…
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