(1) A campanha de abstinência proposta por Damares Alves dialoga diretamente com uma das maiores preocupações de pais e mães brasileiros que não leem Intercept e não conhecem Stalin: a sexualização dos filhos na infância.
(2) É um debate cheio de arestas, visto em larga escala como um problema nos serviços de atendimento como saúde, educação e assistência social, ao mesmo tempo em que coloca em cheque a efetividade das escolhas de pais muitas vezes pouco informados sobre sexo e sexualidade.
(3) Falar sobre educação sexual passa por questionar uma autoridade parental que combina violência e cuidado, vigilância e provimento, responsabilidade legal e reputação.
(4) O fenômeno da gravidez precoce, apesar de utilizado no singular entre especialistas, é bastante variável de contexto a contexto. A falta de informação para basear escolhas é um ponto importante, mas não o único, e mesmo ele deve ser questionado.
(5) As campanhas de prevenção da gravidez precoce existem, mas em geral chegam ao jovem como um assunto totalmente fora da sua realidade, quando não o transforma ainda em mais tabu.
(6) Às vezes não se trata de passar a informação, mas como passar, com qual intuito para cada público. Falar com pais, adolescentes e profissionais de saúde são coisas diferentes. Uma campanha de redução da gravidez precoce muda a depender do estado ou do tamanho do município.
(7) Mas também há a gravidez na adolescência que é planejada, pensada como um plano de vida que de certo modo emancipa jovens acostumados a serem tratados como incapazes e garante a eles alguma respeitabilidade.
(8) Além de todas as situações de violência sexual, frequentemente dentro de casa, em ocorrências que vão de abusos a ciclos de estupro.
(9) Durante o trabalho de campo, ouvi dois relatos sobre os ciclos, quando o pai ou padrasto estupra a filha, a engravida e passa a estuprar a criança nascida da relação. Em geral o bairro todo sabe e o silêncio é difícil de ser rompido.
(10) E também há o julgamento do entorno, dos vizinhos, dos familiares. A mesma noção de família tradicional responsável por excluir pessoas LGBTs de casa também julga e condena mães que não desempenham uma maternidade considerada ideal.
(11) Conversando em campo com diretores/as e pedagogos/as sobre gravidez precoce, a palavra que eu mais anotei no caderno foi "família desestruturada". Pois quando a família é estruturada, não acontece nem gravidez, nem homossexualismo (sic).
(12) A ideologia de gênero tem sido uma das ferramentas mais bem sucedidas da direita no Brasil. Ao disputar o sexo e o gênero no campo da política, oferece uma compreensão de mundo bastante útil para quem questiona se está sendo um bom pai ou mãe.
(13) Porque localiza as dificuldades sobre o sexo e a sexualidade como um elemento externo ao núcleo familiar e contrário a seus valores. Um mal, portanto, que vem de fora para dentro por contaminação, podendo, por consequência, ser combatido.
(14) A campanha de abstinência para jovens e adolescentes, pautada não em conhecimento científico, mas em crença e em fé, é um desenvolvimento da política de gênero deste governo e tem tudo para ser popular.
Mas, é claro, resolvemos tratar o assunto na piada.
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O Brasil está lotado de casos como o da menina de 10 anos. Em pesquisa de campo para mapear a circulação da ideologia de gênero no Brasil encontrei portas de banheiro masculinos em cidades do interior em que eram escritos como ocorriam estupros de menores em casa. (1)
Durante o trabalho de campo ouvi sobre os ciclos de estupro, quando o pai ou padrasto estupra a filha ou enteada, a engravida e passa a estuprar a criança nascida da relação. Em geral vizinhos e familiares sabem e o silêncio é difícil de romper. (2)
Em várias cidades em que os ciclos de estupro ocorrem também são pautados projetos de lei municipais de supressão do debate de gênero nas escolas e pressão de pais sobre professores e diretores. O problema sempre está fora do núcleo familiar, nunca dentro. (3)