Thread by @lucasmafaldo

O debate brasileiro ficou tão agressivo que as palavras perderam o sentido. Mesmo os tais especialistas parecem confundir quarentena, lockdown e distanciamento social.

Lockdown (travar uma cidade inteira) praticamente não foi usado até agora. As pessoas ficam dizendo que isso foi feito aqui no Canadá, mas eu discordo. Uma amiga ontem foi para o mecânico, amanhã uma construtora vem fazer uma reforma aqui em casa. Ontem caminhei...

.. por várias pessoas fazendo atividade ao ar livre, crianças brincando, idosos caminhando, jovens passeando com cachorro, namorando.

No máximo, isso pode ser considerado um "lockdown parcial": alguns serviços de fato foram fechados, mas outros continuam funcionando.

Distanciamento social é outra coisa totalmente diferente: são a adoção de hábitos para minimizar a transmissão (lavar as mãos, usar máscara, evitar aglomerações).

Esses hábitos só fazem sentido na AUSÊNCIA de lockdown. Afinal, você não precisa ficar lavando a mão ...

... compulsivamente se estiver trancado dentro de casa. O distanciamento social é um jeito de diminuir o potencial de contaminação enquanto a sociedade continua funcionando.

Além disso, há uma diferença entre incentivar a mudança de hábitos (por meio da comunicação pública) e...

... prender todo mundo que não adota esses hábitos imediatamente.

Além disso ser uma violação de direitos, a pressuposição é que as pessoas não são capazes de decidir quanto risco querem encarar. Isso faz tanto sentido quanto planejamento econômico central (nenhum).

Por fim, quarentena é ainda outra coisa diferente: isolar os infectados por tempo suficiente para a pessoa deixar de transmitir o vírus.

A quarentena é uma medida sanitária drástica, mas que faz sentido. Porém, para fazer sentido..

... ela precisa ser direcionada a apenas uma parte da população (aqueles suspeitos de estarem com o vírus). Ou seja, isso deveria ter sido feito antes, quando era possível encontrar essas pessoas.

Agora que já tem transmissão comunitária, só dá para voltar a esse estágio com...

.. testes em massa seguido de rastreamento para isolar os infectados (e todos que entraram em contato com eles) até retirar o vírus de circulação.

A ideia parece ótima na teoria, mas nem países ricos (como os EUA) ou com grandes sistemas públicos (como o Canadá) estão fazendo...

... isso, o que é um sinal que é impossível, ao menos no momento atual. Talvez algum desenvolvimento tecnológico novo torne isso possível, mas não vejo motivo porque esperar que um país com pouquíssima capacidade estatal, como o Brasil, seja capaz de voltar para esse estágio.

Logo, quando as pessoas falam em quarentena, elas estão falando em uma espécie de quarentena inversa: isolar os saudáveis.

Na teoria, isso poderia ter o mesmo efeito, mas aí a gente entrar em um problema de sustentabilidade: isso não dura muito tempo.

A quarentena dos infectados é possível porque o resto da sociedade continua funcionando, criando uma zona de isolamento sustentada pelos não-isolados (um hotel ou base militar, por exemplo, com perfeito isolamento, entrega de comida, visitas médicas com proteção, etc.).

A quarentena de toda a sociedade, obviamente, é impossível, pois a capacidade produtiva cairia para zero. O lockdown só dura enquanto houver poupança suficiente na sociedade (entendido aqui genericamente, como excedente em etapas anteriores da cadeia de produção).

Um lockdown parcial pode, evidentemente, durar mais tempo. Mas será sempre um processo de empobrecimento progressivo, com danos não-lineares no meio do caminho.

Cada país e cada extrato da sociedade tem uma quantidade diferente de gordura para queimar. Acho que faz sentido...

... usar esse tipo de medida com moderação, se for evitar um colapso hospital eminente, mas isso obviamente não é solução de médio-longo prazo (e, mesmo no curto prazo, deve ser considerado uma alternativa radical e de alto custo social).

Infelizmente, o debate brasileiro está totalmente surtado. Qualquer tentativa de mostrar a inviabilidade óbvia de certas medidas é tachado como "governismo" ou mesmo "defender o genocídio".

Do outro lado, quem está preocupado com os excessos das medidas sanitárias acaba....

... indo para o outro extremo, negando a seriedade do vírus e criticando medidas moderadas de distanciamento social.

Particularmente, acho que é uma questão de semanas até que todos os governos comecem a reabrir, por simples necessidade de evitar um colapso econômico, assim...

... como me parece que haverá novas ondas.

Mas acho também que a mortalidade será menor do que a opinião pública está imaginando (é muito mais fácil ter subnotificação de casos totais do que de mortos, por motivos óbvios).

O problema desse tipo de cálculo é que parece muito frio, mas a verdade é que todo cálculo epidemiológico é meio macabro, o que assusta quem não é da área.

É claro que toda morte é uma tragédia, mas agora não há mais alternativas simples. Não há um caminho óbvio que maximize..

... as vidas salvas.

No fundo, todo mundo concorda que é preciso salvar o máximo de vidas que for possível. A discordância é sobre qual é o melhor meio para fazer isso.

Desumanizar quem está vendo uma estratégia diferente empobrece o debate, diminui a coesão social e torna...

... a sociedade ainda mais incapaz de encontrar respostas equilibradas para a crise.