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1. Considero esta uma das melhores crônicas que Nelson Rodrigues escreveu sobre esquerdistas, intelectuais e suas grotescas hipocrisias. É de lavar a alma.

"Preliminarmente, devo confessar o meu horror aos intelectuais ou, melhor dizendo, a quase todos os intelectuais. Claro
2. "que alguns escapam. Mas a maioria não justifica maiores ilusões. E se me perguntarem se esse horror é recente ou antigo, eu diria que é antigo, muito antigo. A inteligência pode ser acusada de tudo, menos de santa.

Tenho observado, ao longo de minha vida, que o intelectual
3. "está sempre a um milímetro do cinismo. Do cinismo e, eu acrescentaria, do ridículo. Deus ou o Diabo deu-lhes uma cota exagerada de ridículo. Vocês se lembram da invasão da Tcheco-Eslováquia. Saíram dois manifestos de intelectuais brasileiros. (Por que dois, se ambos diziam
4. "a mesma coisa? Não sei.) Contra ou favor? Contra a invasão, condenando a invasão. Ao mesmo tempo, porém, que atacava o socialismo totalitário, imperialista e assassino, concluía a Inteligência: — “O socialismo é liberdade!”. E ainda lhe acrescentava um ponto de exclamação.
5. "Vocês entendem? Cinco países socialistas estupravam um sexto país socialista. Este era o fato concreto, o fato sólido, o fato inarredável que os dois manifestos reconheciam, proclamavam e abominavam. E, apesar da evidência mais espantosa, os intelectuais afirmavam: — “Isso
6. "que vocês estão vendo, e que nós estamos condenando, é a liberdade!”.

E nenhum socialista deixará de repetir, com obtusa e bovina teimosia: — “Socialismo é liberdade!”. Bem. Se o problema é de palavras, também se poderá dizer que a burguesia é mais, ou seja: — “Liberdade,
7. "igualdade e fraternidade”. Mas o que importa, nos dois manifestos, é que um e outro se fingem de cegos para o pacto germano-soviético, para o stalinismo, para os expurgos de Lênin, primeiro, e de Stalin, depois, para os assassinatos físicos ou espirituais, para as anexações,
8. "para a desumanização de povos inteiros.

Se os intelectuais fossem analfabetos, diríamos: — “Não sabem ler”; se fossem surdos, diríamos: — “Não sabem ouvir”; se fossem cegos, diríamos: — “Não sabem ver”. Por exemplo: — d. Hélder. Bem sei que na sua casa não há um livro, um
9. "único e escasso livro. Mas o bom arcebispo sabe ler os jornais; viaja; faz um delirante e promocional turismo. E, além disso, vamos e venhamos: — nós estamos esmagados, obsessivamente, pela INFORMAÇÃO. Outrora uma notícia levava meia hora para chegar de uma esquina a outra
10. "esquina. Hoje não. A INFORMAÇÃO nos persegue. Todos os sigilos são arrombados. Todas as intimidades são escancaradas. D. Hélder sabe que o socialismo é uma bruta falsificação. Mas, para todos os efeitos, o socialismo é a sua pose, sua máscara e seu turismo.

O socialista que
11. "se diz anti-stalinista é, na melhor das hipóteses, um cínico. Os habitantes do mundo socialista, por maior que seja o seu malabarismo, acabarão sempre nos braços de Stalin. Admito que, por um prodígio de boa-fé obtusa, alguém se iluda. Não importa. Ainda esse é stalinista,
12. "sem o saber.

Bem. Estou falando, porque estive outro dia numa reunião de intelectuais. Entro e, confesso, estava disposto a não falar de política, nem a tiro. Eu queria mesmo era falar do escrete, o abençoado escrete que em terras do México conquistou a flor das vitórias.
13. "Logo percebi, porém, que a maioria ali era antiescrete. Já que tratavam mal a vitória e a renegavam, esperei que tratassem de simpáticas amenidades.

E súbito um dos presentes (socialista, como os demais) vira-se para mim. Há dez minutos que me olhava de esguelha e, fingindo
14. "um pigarro, interpela-me: — “Você é contra ou a favor da censura?”. Eu só tinha motivos para achar uma graça imensa na pergunta. Comecei: — “Você pergunta se a vítima é contra ou a favor? Sou uma vítima da censura. Portanto, sou contra a censura”.

Nem todos se lembram de
15. "que não há um autor, em toda a história dramática brasileira, que tenha sido tão censurado quanto eu. Sofri sete interdições. Há meses, proibiram no Norte minha peça Toda nudez será castigada. E não foi só o meu teatro. Também escrevi um romance, O casamento, que o então
16. "ministro da justiça interditou em todo o território nacional. E quando me interditavam, que fazia, digamos, o dr. Alceu? Perguntarão vocês: — “Nada?”. Se não tivesse feito nada, eu diria: — “Obrigado, irmão”.
(...)
Volto à reunião de intelectuais. Estava lá um comunista que
17. "merecia dos presentes uma escandalosa e diria mesmo abjeta admiração. Era talvez a maior figura das esquerdas. Comunista de partido, tinha sobre os outros uma ascendência profunda. Em torno dele, os demais assanhavam-se como cadelinhas amestradas. Um ou outro é que
18. "preservara uma sofrível compostura. E então o mesmo que me interpelara quis saber o que o grande homem achava da censura. Ele repetiu: — “O que é que eu acho da censura?”. Apanhou um salgadinho e disse: — “Tenho que ser contra uma censura que escraviza a inteligência”.

As
19. "pessoas se entreolhavam, maravilhadas. Quase o aplaudiram, e de pé, como na ópera. Um arriscou: — “Quer dizer que”. O velho comunista apanhou outro salgadinho: — “Um homem como eu jamais poderia admitir a censura”. Foi aí que dei o meu palpite. Disse eu. Que foi mesmo que eu
20. "disse?

Disse-lhe que um comunista como ele, membro do partido ainda em vida de Stalin, não podia sussurrar contra nenhuma censura. Devia querer que o nosso governo fizesse aqui o Terror stalinista. Devia querer o assassinato de milhões de brasileiros. Não era assim que
21. "Lênin e Stalin faziam com os russos? E ele, ali presente, devia querer a interdição de intelectuais nos hospícios, como se doidos fossem. A Inteligência que pedisse liberalização tinha que ser tratada como uma cachorra hidrófoba. Mao Tse-tung vive de Terror. Vive o Terror.
22. "Mao Tse-tung é Stalin. Lênin era Stalin. Stalin era Stalin. Quem é a favor do mundo socialista, da Rússia, ou da China, ou de Cuba, é também a favor do Estado assassino.

Fiz-lhes a pergunta final: — “Vocês são a favor da matança do embaixador alemão?”. Há um silêncio. Por
23. "fim, falou o comunista: — “Era inevitável”. E eu: — “Se você acha inevitável o assassinato de um inocente, também é um assassino”. E era. Assassino sem a coragem física de puxar o gatilho. Parei, porque a conversa já exalava a febre amarela, a peste bubônica, o tifo e a
24. "malária. Aquelas pessoas estavam apodrecendo e não sabiam."

Nelson Rodrigues

Na sua crônica "Os que Propões um Banho de Sangue", escrita em 03/07/1970, ele mostra toda a sua ojeriza à classe com mais hipócritas por metro quadrado: os intelectuais esquerdistas. Criaturas
25. duais, que nas palavras defendem coisas lindas, numa ética angelical, mas que na prática são meras tietes de tiranos e relativistas para canalhas. Não defendem valores, apenas ideologias, agremiações e camaradas de caminhada; atacando a tudo que não se identifique com isso.
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