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Hoje se deflagrou mais uma operação do DPF, dessa vez decorrente do inquérito das fake news, ou inquérito do fim do mundo, conduzido pelo Min. Alexandre de Moraes, para apurar fatos genéricos contra a honra dos ministros do STF. (1/28)
Muitos perfis comentam, com um certo grau de schadenfreude, que os alvos foram bem escolhidos, mas que o feito é maculado pela origem e pelo modo de condução. Há certa verdade nisso, mas nem toda a verdade. (2/28)
O problema principal é que a matéria da investigação pré-processual, no direito brasileiro, tem sido largamente ignorada pela doutrina e pela legislação, enquanto sua importância só cresce na prática. Aliás, é bom que seja dito que isso não é um movimento recente. (3/28)
Desde meados dos anos 1990, quando se regulamentou a quebra de sigilo telefônico, o processo penal consiste na validação dos elementos de prova produzidos antes mesmo do início da própria ação penal, sendo bem pequena a produção de prova inédita durante a instrução. (4/28)
Para entender a polêmica, é preciso situar o que se entende pelo sistema processual brasileiro – se acusatório, inquisitório ou “misto”. Já vou descartar essa última categoria de pronto, porque toda vez que se fala, em direito, em sistema misto, é para tapear quem lê. (5/28)
A realidade é sempre mais complicada do que a teoria. Então, podemos falar num sistema eminentemente acusatório, ou eminentemente inquisitório, mas tendo sempre em vista que qualquer modelo do mundo real é misto, tendo matizes de ambas as correntes. (6/28)
A diferença entre os modelos se dá pela separação de funções no processo penal. Quando dois órgãos distintos exercem a acusação e o julgamento, há modelo acusatório. Quando a acusação e o julgamento recaem sobre um único órgão, há modelo inquisitório. (7/28)
(Claro que existem outras divergências entre os dois, mas essa é a categoria central para a separação de modelos.) (8/28)
A Constituição de 1988 pretendeu instituir um modelo acusatório no processo penal. Não há passagem que o diga diretamente, mas é isso que se infere do art. 129, inciso I e do art. 144, § 1º, inciso IV e § 4º. (9/28)
Idealmente, cada um fica no seu quadrado: as Polícias instauram inquéritos e apuram fatos criminosos, o MP pega o produto da investigação e oferece denúncia, se for o caso, e o Judiciário julga a ação penal em suas várias instâncias. Isso seria o modelo ideal, acusatório. (10/28)
Só que a praxe (e, em alguns casos, a lei ordinária e até atos infralegais) alterou essa configuração. Não se perde de vista as Comissões Parlamentares de Inquérito ou as investigações feitas diretamente pelo MP. (11/28)
Complica mais ainda o fato de que não é apenas a Constituição de 1988 a regular os atos de investigação, mas também, e especialmente, o defasado Código de Processo Penal, de 1941, que, na matéria, ainda não sofreu reformas substanciais. (12/28)
Dito de outro modo, temos uma Constituição moderna, alinhada ao sistema acusatório, e um Código de Processo Penal de outra era, banhado em espírito e letra inquisitoriais. (13/28)
O Código oferece um papel de protagonismo do juiz, porque pode requisitar a investigação de crimes pela Polícia (art. 5º, II), pode mudar o crime previsto na acusação sem consultar o MP (art. 383), pode incluir fatos na acusação, mediante consulta ao MP (art. 384)... (14/28)
...e pode até condenar diante de pedido de absolvição pela acusação (art. 385). Mas a culpa não está só no velho Código. A Lei 9296/1996 (quebra de sigilo telefônico) dá poderes para o juiz quebrar sigilo telefônico sem provocação da acusação (art. 3º). (15/28)
A Lei 12.850/2013 (crime organizado) também confere ao juiz poderes de investigação de ofício (art. 16). Esse ranço da investigação conduzida pelo julgador persiste, ainda que não seja mais a regra geral. (16/28)
A instauração do inquérito no âmbito do STF se deu de ofício, o que é muito controvertido. O dispositivo invocado para validar a investigação é o art. 43 do RISTF, que fala em crime ocorrido na sede ou nas dependências do Tribunal. (17/28)
Nota-se uma clara ampliação do entendimento, para dizer que as notícias falsas produzem efeito no interior do Tribunal, o que não é o caso. A par disso, não se admite inquérito sem objeto definido, nem por prazo indeterminado. (18/28)
Por fim, Regimento Interno não suplanta nem a Constituição, nem o CPP, que são normas situadas acima e ao lado da norma regimental do STF. A condução das investigações não poderia estar nas mãos de autoridade judiciária, mas sim da Polícia ou do MP. (19/28)
Só que isso não é o mais relevante. É preciso destacar três outros argumentos: um referente à necessidade ou à dispensa do inquérito em matéria de processo penal; outro relativo à validade das provas no processo penal; e, por fim, a teoria das nulidades no processo penal. (20/28)
É consenso que o inquérito policial não é condição necessária para um processo penal. Se a prova de um fato criminoso for produzida por qualquer outro meio, e isso for o bastante para embasar a acusação, não há necessidade do inquérito. (21/28)
Dito de outro modo, se um inquérito é ilegal na instauração, mas produz provas colhidas validamente (com autorização judicial, sem tortura, etc.), essas provas podem e devem ser usadas para embasar a ação penal. (22/28)
Também o CPP permite a colheita antecipada e válida de provas antes do início da ação penal, nos termos do art. 155, parte final, e art. 156, I. Quando uma prova é produzida no curso da investigação, ela não precisa ser repetida após o início da ação penal. (23/28)
Por último, a teoria das nulidades, no processo penal, é outro capítulo do velho CPP que não passou por reformas desde 1941. Lá, simplesmente não se preveem nulidades em sede de inquérito policial. (24/28)
Mais: há entendimento de que só existem vícios processuais passíveis de nulidade após a instauração da ação penal. Tudo o que se passa no curso da investigação é convalidado pelo oferecimento da denúncia (25/28)
Notem que isso não é achismo, nem pensamento de advogado de acusação. É reflexo da jurisprudência do STF e do STJ. Em reforço, convido a conhecer os seguintes precedentes, entre todos: RHC 61.475 (STF), HC 554.922/SP e AgRg em RHC 74.574/SP (STJ), esses dois desse ano. (26/28)
Em resumo: o inquérito, mesmo que inválido na origem, produz provas que podem ser aproveitadas, na íntegra, para acusar e até condenar os envolvidos. Como não passa só pelas mãos do PGR, mas dos promotores de primeira instância, podem decorrer dele diversas ações penais. (27/28)
Não se trata de validação especial da prova produzida ilicitamente, o que seria outra história. Aqui, é dizer que a prova, se produzida corretamente, vale até mesmo se o inquérito não vingar, por vício de origem. (28/28)
Lembrando, por fim: isso aqui é uma opinião sobre o direito posto, não uma torcida ou um palpite. Vale recordar que o STF já foi instado quanto à legalidade do inquérito, e mandou seguir sem problemas. Daí minha tendência a crer que a prova vale, mesmo colhida desse modo.
Ideal mesmo seria a condução da investigação com o máximo de apreço pela regra ordinária da legislação processual, até porque isso afastaria de vez o espectro da dúvida. Mas não estamos lidando com o ideal, mas sim com o que está acontecendo de fato.
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