Bora falar sobre cozinhar, saúde, nutrição e genero? Meu fio sobre o assunto #NutriTwitter
Na epidemiologia nutricional descritiva dos padrões populacionais de consumo alimentar é bem conhecido o efeito de coorte geracional. Em geral, os mais velhos se alimentam melhor.
Dois indicadores importante neste diagnóstico: menor consumo de ultraprocessados e maior consumo de frutas,verduras e legumes.
Vários fatores podem explicar esse fenômeno. Um deles é a perda de habilidades culinárias. A construção social relacionada à distribuição do trabalho doméstico explica muito porque as gerações mais novas tem se afastado da comida de verdade.
Para muitas mulheres, abandonar as panelas é um ato de liberdade como tirar os sutiãs. Eu entendo a racionalidade do ato. A cozinha foi e é espaço de confinamento das mulheres, em especial das mais pobres. Quem pode fugir, fez a fuga. Isso foi um fenômeno geracional.
Foi bom para muitas mulheres. Só que não foi bom pra saúde humana, global e planetária. E a culpa não é das mulheres que foram estudar e trabalhar fora de casa. Ou daquelas que por trabalharem loucamente não conseguem cozinhar em casa.
A culpa é o sistema alimentar atual e de uma sociedade machista que resiste a incorporar a divisão estruturada do trabalho doméstico como desafio central para superação da igualdade de gênero e para a promoção da saúde.
Falo sempre do livro Cabilã e a bruxa, da Silvia Federici, porque ele me ajudou muito a pensar outras camadas sobre a relação entre gênero, culinária, alimentação e saúde.
Por uma lógica de organização do capital, apropriação e desmonetização do trabalho doméstico, há algumas décadas nós mulheres temos sido ensinadas a não valorizar os nossos saberes geracionais relacionados ao cozinhar.
Inclusive, a indústria dos alimentos ultraprocessados se apropria do legítimo discurso feminista para ganhar espaço no mercado. É conveniente vender praticidade sem colocar o dedo na ferida da desigualdade de gênero no trabalho doméstico relacionado à alimentação.
Hoje busco honrar as mulheres cozinheiras que me antecederam, sou grata aos saberes que elas preservaram e que tem se mostrado tão essenciais à saúde humana e planetária.
Defendo mais e mais o cozinhar como estratégia de promoção da saúde. Mas esse discurso e ativismo precisa vir acompanhado do debate de gênero e contra a exploração do trabalho feminino. Colocar o cozinhar como expressão do amor é uma forma de opressão.
Desigualdade*
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Farei um fio sobre aquele dado amplamente divulgado sobre a maioria de crianças que não come três vezes ao dia. É uma informação que vem do Sistema Nacional de Vigilância Alimentar e Nutricional - SISVAN do SUS. (1)
Mas antes de entrar no tecnicismo de quem trabalha e estudo base de dados populacionais, quero afirmar que a Fome voltou com tudo. E o mais cruel, sua volta se expressa primeiro e com força total nos pratos e nos corpos de nossas crianças. Não há dúvida sobre isso. (2)
SISVAN não é inquérito epidemiológico populacional, mas sim um sistema gerencial de informação em saúde. Tem muitos usos e potenciais para orientar o planejamento em saúde e monitor e avaliar impacto de programas. Já fizemos bom uso dele. Um exemplo. (3) aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/ferra…
Com o fim do Bolsa Família, sinto-me na obrigação de lembrar de um estudo que coordenei junto com colegas do MDS, em 2014. Mostramos o impacto positivo do programa no estado nutricional das crianças beneficiárias. Foram avaliadas mais 360 mil crianças de até 5 anos.
Integramos três bases de dados: Cadastro Único da assistência social, Sistema Nacional de Vigilância Alimentar e Nutricional do SUS e folhas de pagamento do Bolsa Família. Cerca de 2 milhões de dados anuais para o período de 2008 a 2012.(2)
O estudo mostra que houve redução na desnutrição crônica e que as crianças melhoraram o padrão de crescimento. Também vimos que o acompanhamento contínuo no SUS potencializa esse resultado, chegando a reduzir o risco de desnutrição em 51,4%. (3)
Vamos esclarecer uma coisa. Todos os atores sociais, individuais e coletivos, tiveram oportunidade de dar sua opinião sobre o Guia Alimentar para a População Brasileira em 2014. Consulta pública serve para isso, minha gente.
A nossa história está mais acostumada com lobby comercial e corporativo que tem canal privilegiado de diálogo e influência junto ao poder público. Então estranha quando uma política pública é feita de forma transparente e aberta a todos.
É público o relatório da análise da consulta pública do Guia. Tem até pesquisa científica que se debruçou sobre esse processo. É desonesto o discurso que não foram ouvidos.
Notas históricas sobre o termo “comida de verdade”. Um fio das lembranças que fui acumulando em minhas andanças.
Considero que o termo surge ou ganha força narrativa no seio do movimento social brasileiro voltado à luta pelo direito à alimentação adequada e saudável, nos debates do CONSEA.
O ano de 2014 foi um marco de acúmulo de um rico debate sobre políticas públicas para qualificação da alimentação no Brasil.
Que a compreensão que nos permite ver que a alimentação é mais que a ingestão de nutrientes, não nos limite as singularidades e necessidades individuais. #nutritwitter
Se não houver a compreensão que além do indivíduo existe a sociedade e um mundão de desigualdades e interseccionalidades, qualquer nova Nutrição será tão alienada como aquela baseada em nutrientes.
Se Nutrição não reflete sobre o sistema alimentar, a política e sociedade, ela nao se compromete com a alimentação enquanto direito social e mantém o status quo.
O debate sobre a essencialidade do trabalho doméstico no contexto da COVID19 (eu defendo não ser) deixa escapar o machismo daqueles que mandam as madames pegar nas vassouras, mas esquecem os senhores. Para eles limpeza e trabalho domésticos são responsabilidades femininas.
Também há o mesmo esquecimento de gênero quando apontam a revolta das madames em relação à regulação da profissão de empreg@ doméstico.
E que fique claro que minha crítica não é de natureza trabalhista, mas sim de gênero.