Como é o assunto do dia, vou deixar aqui uma thread que inicialmente fiz em resposta a outra, sobre porque o Novo Marco Legal do Saneamento (PL 4162/2019) apresenta grandes riscos pro setor. Ponto de vista baseado na minha experiência em uma agência reguladora municipal. Segue:
Primeiro, importante saber que existem cidades em que a operação do sistema de saneamento é vantajosa economicamente para a prestadora (possui superávit). Em muitas outras, porém (cidades menores em geral), a arrecadação não cobre os custos (são deficitárias).
As concessionárias estatais possibilitam a operação nas cidades que tem déficit por meio do subsídio cruzado. Isso quer dizer que o "lucro" das grandes cidades sustenta a operação das cidades pequenas, que de outro modo não é viável. Além de mecanismos como as tarifas sociais.
Isso se dá em grande parte pelos contratos de programa com as estatais, em que o município (titular do serviço) transfere a outro ente federativo (as estatais) a execução do serviço.
Assim, o marco vigente permite a renovação desses contratos de programa sem necessidade de licitação. O NMS extingue os contratos de programa e o município passa a ser obrigado a fazer uma nova licitação, da qual podem participar empresas privadas.
Mas licitação não é bom, não traz transparência? Via de regra, sim. Mas os serviços de saneamento são cheios de peculiaridades: são serviços essenciais, constituem monopólios naturais, ganhos de escala etc. Por isso mesmo eles tem seus próprios meios de controle já previstos hoje
O que se prevê na prática com o NMS? Prestadoras privadas ganhando licitações nas cidades que trazem lucro, com preços que a estatal não consegue competir por causa do subsídio cruzado, e deixando as cidades que trazem prejuízo para o estado cuidar.
A consequência inevitável é a precarização do saneamento em boa parte do Brasil. Esse é apenas um dos pontos controversos. Existem outros - insegurança jurídica, risco à titularidade dos municípios.
A favor do NMS se argumenta que hoje se tem uma carta branca pra atuação dessas estatais. Não é verdade, pois como disse antes, já existem mecanismos de controle, na figura das agências reguladoras que devem fiscalizar as metas do contrato e definir valores justos para as tarifas
Porque estamos tão longe da universalização, então? Como quase tudo no Brasil, a aplicação do modelo tem falhas. O marco vigente é relativamente novo (13 anos) e as coisas aqui mudam devagar, né? Muitas cidades ainda nem tem agências, e as que existem precisam ser estruturadas
A solução sem dúvida passa pelo fortalecimento das agências. A resposta do PL a isso é incluir a ANA, até então uma agência de recursos hídricos (que não integram por lei os serviços de saneamento), como norteadora da regulação a nível nacional.
Existe muita incerteza em relação a isso, por ser um desejo das prestadoras privadas pela unificação da regulação (num país extremamente diverso de situações). Pra não mencionar a atual situação dos órgãos federais
Concordo que o marco legal precisa ser revisado e melhorado, por ex no que tange eficiência dos sistemas, mas entendo que essa proposta não atende. Ela reflete interesses das concessionárias privadas, que fazem lobby pela proposta desde quando ainda era uma MP do Temer.
Além disso, vai na contramão das tendências mundiais no tema. E essa visão aqui exposta não é só a opinião das estatais: órgãos como a associação das agências reguladoras (ABAR) e entidades de classe como a assoc dos engenheiros ambientais e sanitaristas (ABES) defendem o mesmo.
Pra finalizar nesse link tem uma reportagem excelente sobre a situação calamitosa do direito à água no Brasil e pra onde caminhamos: outraspalavras.net.blog/o-brasil-a-bei…
Independente da necessidade de revisão do marco e ações em prol da universalização, o NMS é perigoso para o setor. Suba pro início do fio para entender porque. #SaneamentoEBasico #aguanaoemercadoria #SaneamentoÉBasico
Em tempo: uma solução proposta para a questão do subsídio cruzado é a licitação em blocos de municípios superavitarios e deficitarios. Soluciona o problema? A meu ver também não é tão simples.
Primeiro que penso que no geral pode encarecer a tarifa: é só pensar que em um estado se tem poucos municípios com um bom superavit. Uma pesquisa simples mostra que em 2018, dos 5550 municípios só 500 tinham. Cada um deles só pode ficar em um bloco.
Segundo que se você tem em uma licitação uma empresa privada formando o preço pensando em um bloco com uma capital (são as que as privadas vão participar) e alguns outros municípios a pública pensando em manter centenas de pequenos municípios, a tal "competição" fica desleal.
E dependendo da distribuição dos blocos, e pela própria distribuição em várias prestadoras, pode se perder significativamente as vantagens dos ganhos de escala - característoca do setor essencial pra saúde financeira das companhias
Em suma tudo depende muito da composição dos blocos. E nisso entram muitos interesses e influências. O PL define um bloco como no mínimo 2 municípios não necessariamente contíguos, uma definição bastante ampla. A meu ver não representa muita garantia de que o subsídio funcionará.
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