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A interação entre o SARS-CoV-2 e o sistema imunológico humano: vantagens, desvantagens e consequências do ponto de vista da ativação ou inativação dos linfócitos - 🧶

Autora: Melissa Markoski (@melmarkoski)
Revisão: Mellanie F. Dutra (@mellziland) e Luciana Santana (@lucfsantana1812)

Fonte da imagem: crbm5.gov.br/imunologia-e-c…
Na semana que passou, a revista científica Science publicou mais três artigos referentes à resposta imunológica humana frente ao SARS-CoV-2, o novo coronavírus, causador da COVID-19. O primeiro estudo, do Instituto de Pesquisa Scripps (La Jolla, Califórnia),
pautou as bases estruturais da resposta de anticorpos ao vírus [1]. O segundo artigo, de grupo também norte-americano, da Escola de Medicina Perelman da Universidade da Pensilvânia (Filadélfia), evidenciou que o perfil imunológico de pacientes COVID-19 revela imunotipos (perfis)
distintos, e isso teria como consequência, diferentes implicações terapêuticas [2]. Para esclarecer, o imunotipo é um conceito recente, que remete ao balanço de tipos diferentes de células brancas (os linfócitos) que cada pessoa (ou grupos de pessoas) possui.
Por fim, o terceiro estudo, de pesquisadores da Universidade de Paris e do Instituto Pasteur, mostrou que a resposta inflamatória que, no geral, está agravada nos pacientes com a forma mais severa da COVID-19, está associada a uma baixa (e prejudicada) atividade da molécula
interferon, uma proteína que é produzida pelos linfócitos e que tem justamente o papel de inibir a replicação viral [3]. Assim, tentarei esclarecer o que esses três estudos apresentam, como se associam e,
principalmente, quais seriam as implicações dos achados à imunidade humana frente à COVID-19 e ao desenvolvimento de vacinas. Para “início de conversa”, vamos lembrar como se dá a entrada do SARS-CoV-2 nas nossas células e como isso ativa nossa resposta imune (Figura 1):
já no trato respiratório superior (cavidade nasal, faringe e laringe) e, mais fortemente, no inferior (traqueia, brônquios e alvéolos pulmonares),
o vírus “busca” receptores celulares (a enzima conversora de angiotensina 2, ACE2) para poder entrar nas células do hospedeiro e se multiplicar [4]. Isso acontece para diversos tipos celulares com os quais o vírus entra em contato,
mas as células do epitélio respiratório seriam as de primeiro contato. Porém, ao ser detectado e reconhecido como algo “estranho” ao nosso organismo, nosso sistema de defesa (o sistema imune) ativa suas células específicas, como os linfócitos B, que irão, entre outras atividades
produzir anticorpos para neutralizar e eliminar o novo invasor. Não é sempre que a resposta imune se dá dessa maneira, mas é a mais frequente no caso das infecções virais: uma resposta inicial e mais “genérica” (inata),
acompanhada de uma resposta mais específica e mais robusta (adquirida), e que ainda pode gerar a chamada “memória imunológica”. Entre o que é reconhecido pelos anticorpos, mais precisamente, por sua região denominada de “cadeia pesada”, que é codificada pelo gene IGHV,
há uma porção específica da proteína viral Spike (S), a principal do envelope do coronavírus, denominada de RDB (de receptor binding domain). Aqui, cabe ressaltar que o gene IGHV é capaz de gerar, após o processo de transcrição, um número bastante expressivo
de ácidos ribonucleicos (RNA) diferentes, o que, por consequência, também gera um número significativo de novas “cadeias pesadas” diferentes para os anticorpos, garantindo assim a variabilidade dessas moléculas. A variabilidade é o que permite que os anticorpos possam reconhecer
as diferentes partículas que são estranhas ao organismo. Frente a isso, o que o grupo do primeiro estudo referido acima mostrou foi que, entre 294 anticorpos contra o SARS-CoV-2 analisados, o mais frequente, contra o RDB, mostrava na sua cadeia pesada, a codificação IGHV3-53.
Os autores então estudaram a estrutura do cristal obtido para este anticorpo (cristalografia), removendo ou não algumas de suas partes, na presença do RDB. Assim, os pesquisadores constataram que esse reconhecimento bloqueia a ligação do vírus com a ACE2 (Figura 2),
o que vai de encontro ao que Barnes e seus colegas (2020) já haviam apresentado em outro estudo recentemente publicado [5] e já discutido aqui na Rede Análise COVID-19

redeaanalisecovid.wordpress.com/2020/07/06/a-p…
Além disso, de maneira bastante relevante, o grupo californiano também comprovou que estes anticorpos IGHV3-53, mesmo recém-sintetizados pelas células B, apresentaram alta força de neutralização, o que é promissor para o desenho de uma vacina.
Os autores ainda chamaram atenção para o conhecimento gerado através das estruturas cristalográficas dessas “porções” dos anticorpos e como ocorrem as ligações aos respectivos alvos virais, sendo importantes na busca de melhores respostas neutralizantes por parte dessas moléculas
Sabe-se que ao entrar em contato com os organismos estranhos ao nosso corpo, o sistema imune ativa suas células e moléculas e, conforme o tipo de interação, é desenvolvida uma memória imunológica. É o que acontece, por exemplo, no caso de quem contrai sarampo e se cura
ou faz a vacina para o tétano (imunização). O fato é que essa memória é a base da vacinação e é obtida através de linfócitos B e T de memória, células ativadas para responderem mais prontamente quando nosso corpo for novamente invadido por aquele determinado organismo estranho.
Com base nisso, o estudo conduzido por Mathew e colaboradores (2020) analisou 125 pacientes acometidos pela COVID-19, além de pessoas saudáveis, através de citometria de fluxo de alta dimensão [2]. A técnica que, assim como o nome, é bastante sofisticada,
é utilizada para fornecer com maior precisão os detalhamentos celulares, sendo capaz de mostrar os níveis de expressão de diversas proteínas no momento da análise [6]. Deste modo, além de avaliar diferentes populações celulares em uma amostra,
os dados ainda revelam quais as proteínas que foram induzidas perante um determinado estímulo. Bom, o que aconteceria quando as células imunes fossem então sujeitas ao SARS-CoV-2? Essa foi exatamente a pergunta feita pelos autores.
Para entendermos o que os autores apresentam e concluem, em um nível de profundidade um pouco maior, vamos relembrar quais são as populações de linfócitos: as células exterminadoras naturais (NK), as células B e as células T. As células T, por sua complexidade de função,
ainda possuem uma subclassificação que são as T auxiliares, T CD4; as T citotóxicas, T CD8; as T reguladoras, Treg; e as T de memória, podendo ser efetora, TEM, ou central, TCM. Enfim, são muitos os tipos celulares para responder aos agentes externos e, adicionalmente,
cada qual deles ainda conta com um vasto repertório de moléculas efetoras, seja para sinalizar, como para realizar algum tipo de ação (neutralização, toxicidade, indução de apoptose, recrutamento de outras células, etc.). Assim, ao analisarem todas as essas populações celulares
nos pacientes acometidos pela COVID-19, hospitalizados ou não, o grupo da Pensilvânia constatou que a presença e o número dessas células e das moléculas produzidas por elas geravam uma espécie de “classificação”, que são os imunotipos.
Por outro lado, os pesquisadores também observaram que esses perfis ainda se relacionaram a aspectos clínicos dos pacientes, evidenciando tipos celulares, mais ou menos abundantes, de acordo com a severidade da doença. Entre estes aspectos, os pesquisadores destacaram que a
presença de comorbidades (diabetes, hipertensão, doenças inflamatórias, etc.), que causam manifestações clínicas complexas, estava associada à contagem alterada dos linfócitos. Além disso, o estudo revelou que quando um determinado perfil celular estava ativado (com suas células
e conjuntos de moléculas relacionadas), ele também estaria relacionado ao grau de severidade da doença. Desta forma, analisando os diferentes marcadores (proteínas de superfície) das populações celulares, os autores mostraram, por exemplo, que alguns pacientes apresentaram uma
forte ativação e proliferação de células T CD4 e de T CD8 (essas últimas, quase à exaustão), denominando esse perfil de Imunotipo I; outros pacientes, com sintomas mais leves, apresentaram respostas de células T menos robustas,
mas a presença de células B de memória (Imunotipo II); e outros, por fim, exibiram quantidades de linfócitos quase indetectáveis, caracterizando uma linfocitopenia e sugerindo uma falha na ativação imune, o Imunotipo III (Figura 3). Entretanto, o primeiro perfil (Imunotipo I),
de alta ativação de células T, e também de baixa circulação de células TEM, estava associado aos casos mais severos. No segundo caso, Imunotipo II, a presença de células T CD8 de uma categoria específica (Tbet+) apontou que havia produção de interferon pelos pacientes e,
além disso, que havia produção de células B de memória. E, de forma adicional, a população de células B circulantes (aquelas que produzem os anticorpos, os plasmócitos) estava, em sua maioria, responsiva ao vírus (caracterizando a resposta humoral).
Esta última observação é particularmente interessante, pois este imunotipo se associa à produção do chamado plasma convalescente pelos pacientes que contraíram a doença e produziram anticorpos em resposta ao vírus.
Por fim, os autores do segundo estudo mencionado também observaram que a manutenção das populações das células T CD8, T CD4 e células B circulantes, durante a COVID-19, indica um período prolongado de elevação de resposta imune, em geral, no momento da internação ou, talvez,
uma falha em regular adequadamente essa resposta em alguns pacientes. Adicionalmente, essas observações coincidem com uma “resposta imune excessivamente agressiva” e/ou a “tempestade de citocinas”, que é frequentemente observada neste subconjunto de pacientes.
De fato, os autores do estudo também conferiram que os níveis de algumas citocinas, que são algumas dessas moléculas efetoras produzidas pelas células do sistema imune, estavam bastante elevados. No entanto, uma questão importante a ser destacada é que o estudo também auxilia
na identificação de pacientes que necessitariam um reforço imunológico (ou regulação) no tratamento da doença, resultando na proteção daqueles com resposta imunológica fraca.
Além disso, os pacientes que exibem os quadros mais severos e que podem apresentar altíssimos níveis (ou insuficientes) das células T produziriam moléculas efetoras ao combate ao vírus adequadamente?
O terceiro estudo que vem para adicionar mais dados a esta discussão “imunológica” focou sua análise na molécula do interferon, que conforme já mencionado (e bem estudado), é liberado pelas células T na defesa contra os vírus. Deste modo, o grupo francês realizou uma análise
integrativa, unindo aspectos clínicos e biológicos, e focada na resposta imune. Os pesquisadores associaram a identificação das células (imunofenótipo) com a análise da expressão de moléculas (transcriptoma) presentes no sangue e também dos níveis de citocinas produzidas pelas
células ao analisarem um grupo de 50 pacientes com a COVID-19 [3]. Quanto aos aspectos clínicos, os pacientes foram categorizados como moderados (15), severos (17) ou críticos (18). Corroborando o estudo anterior, o grupo francês também observou a linfocitopenia nos pacientes
severos e críticos, com grande decréscimo das populações de células NK e T CD8, principalmente, mas com permanência de células B. Mas a grande contribuição foi que esses pesquisadores também foram capazes de mostrar um alto índice de morte celular programada (apoptose)
das células T, onde os pacientes críticos e severos exibiram muita produção de moléculas que causariam essas mortes celulares. Por fim, os dados moleculares mostraram a diminuição dos níveis de interferon, o que é explicado pela ausência das células produtoras, os linfócitos T.
E, adicionalmente, os autores também observaram uma alta produção de moléculas inflamatórias, que acabam por interferir na resposta imune de maneira a desequilibrar o sistema. Uma observação que sustento após a leitura crítica destes estudos, extremamente bem conduzidos,
é a de que precisamos cada vez mais nos munir de ferramentas que nos permitam identificar os perfis celulares e moleculares dos pacientes acometidos não só pela COVID-19, em associação aos efeitos causados pela infecção viral, mas também por doenças ainda pouco caracterizadas.
Cada vez que um estudo consegue decifrar e responder (nem que seja nos mostrando a ponta do iceberg) a alguns desses tantos “porquês”, ganhamos um novo elemento no entendimento da complexidade de certos processos. Isso nos permite visualizar e compreender melhor a funcionalidade
de mecanismos frente às interações patógeno-hospedeiro, bem como, em também tirar melhores conclusões, apoiando as possibilidades para uma aplicação prática. Aqui, no caso, essa aplicação remete ao tratamento de uma doença com elevada taxa de infecção, transmissão e letalidade.
Referências

[1] Yuan M, Liu H, Wu NC, et al. Structural basis of a shared antibody response to SARS-CoV-2 [published online ahead of print, 2020 Jul 13]. Science. 2020;eabd2321. doi:10.1126/science.abd2321

science.sciencemag.org/content/early/…
[2] Mathew D, Giles JR, Baxter AE, et al. Deep immune profiling of COVID-19 patients reveals distinct immunotypes with therapeutic implications [published online ahead of print, 2020 Jul 15]. Science. 2020;eabc8511. doi:10.1126/science.abc8511

science.sciencemag.org/content/early/…
[3] Hadjadj J, Yatim N, Barnabei L, et al. Impaired type I interferon activity and inflammatory responses in severe COVID-19 patients [published online ahead of print, 2020 Jul 13]. Science. 2020;eabc6027. doi:10.1126/science.abc6027

science.sciencemag.org/content/early/…
[4] Samudrala PK, Kumar P, Choudhary K, et al. Virology, pathogenesis, diagnosis and in-line treatment of COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jul 16]. Eur J Pharmacol. 2020;173375. doi:10.1016/j.ejphar.2020.173375

sciencedirect.com/science/articl…
[5] Barnes CO, West AP Jr, Huey-Tubman KE, et al. . Preprint. bioRxiv. 2020;2020.05.28.121533. Published 2020 May 29. doi:10.1101/2020.05.28.121533

sciencedirect.com/science/articl…
[6] Saeys Y, Van Gassen S, Lambrecht BN. Computational flow cytometry: helping to make sense of high-dimensional immunology data. Nat Rev Immunol. 2016;16(7):449-462. doi:10.1038/nri.2016.56
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