Um fio sobre a história da trombose venosa e pulmonar, dos anti-coagulantes, fazendeiros, venenos de rato…
Também um fio sobre porquê a Medicina deve ser repensada a todo momento. Segue os próximos tweets para entender.
A primeira descrição histórica de um caso semelhante a uma trombose venosa foi do jovem Raoul no manuscrito “La vie et les miracles de Saint Louis” de Guillaume de Saint Pathus de 1271.
Outro possível (obviamente enviesado) caso famoso, você deve conhecer: é o de Jesus Cristo.
No século XX foram descobertas propriedades anticoagulantes de algumas substâncias: a heparina e os antagonistas da vitamina K.
Esses últimos foram usados como veneno de rato por alguns anos até que se percebesse que a dose raticida não era tão tóxica assim para os humanos.
A Warfarina foi descoberta quando Ed Carlson, um fazendeiro cansado de perder seu gado para uma misteriosa doença hemorrágica, entregou um dos seus animais mortos para Karl Link. A pesquisa que deu origem ao fármaco foi financiada pela Wisconsin Alumni Research Foundation (WARF).
Em 1960, um clássico trabalho (Barrit e Jordan, Lancet) demonstrou que o tratamento com heparina e um antagonista da vitamina K demonstrou:
- 5 mortes em 19 pacientes não tratados
- 1 morte em 54 tratados.
Parece algumas "pesquisas" que vemos por aí defendendo remédio pra piolho?
O pontapé inicial começou com um estudo fraco:
- Pacientes não tinham o diagnóstico firmado de embolia.
- Randomização não foi descrita.
- Não cego, não placebo-controlado.
- Estudo interrompido precocemente.
"Ah, mas certamente outros trials vieram depois”, você diria.
Esse é o problema de quando o pontapé inicial é fraco e é aceito logo sem rigor pela comunidade médica:
- Os próximos estudos vão sempre partir do pressuposto (falso) que a droga funciona.
- Será anti-ético fazer novos estudos sem a droga.
- Nunca saberemos se funciona mesmo.
Talvez você esteja extrapolando minhas palavras pra o que alguns fazem com a cloroquina, tentando empurrar narrativas goela abaixo.
Eu mesmo já cheguei a ouvir que "estamos em um ponto em que é anti-ético não dar cloroquina” - é quando a mentira se tornará irrefutável.
E depois que se tornou anti-ético não dar um remédio não comprovado a um paciente com trombose, foi lançada em 2006 pela Cochrane a menor metanálise da história (risos): apenas dois estudinhos.
Que foram o quê? Adivinha? Isso mesmo, negativos: não houve benefício com a terapia.
Ao mesmo tempo em que não sabemos se a terapia realmente funciona estatisticamente, porque fomos roubados desse direito, sabemos:
- Um usuário a cada 12 apresentam algum sangramento.
- Um a cada 50 - 111 apresentam sangramentos graves com risco de morte.
Conclusões:
- A terapia é muito plausível e coerente.
- A observação de anos de prática médica é que parece funcionar, mas pode nos enganar (vieses de confirmação e do gato de Schrodinger).
- Não sabemos seu real risco x benefício.
- Deveríamos estudar isso versus placebo.
Apenas enfatizando: sendo indicação classe I para diversas populações em situações diferentes, EU faço e recomendo os meus residentes que façam sem extrapolações.
Só estou apontando que construíram o Burj Dubai sobre a fundação de uma casinha de dois andares.
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“There is no need to change the STEMI-NSTEMI paradigm. I never see false negatives.”
We published the article “The no false negative paradox in STEMI-NSTEMI diagnosis” in Heart (BMJ), and I’ll explain this paradox with a story: José de Alencar sees a patient with angina. 🧵
José de Alencar does not know, but this patient has a thrombus acutely blocking one of his coronary arteries. Unfortunately, there is no ST-segment elevation.
José de Alencar, therefore, classifies the patient as NSTEMI. Could he have done differently?
Since the patient has NSTEMI, José de Alencar does not activate STEMI protocols. If the patient were lucky enough to show the sign that defines the disease, treatment would occur within 30-120 minutes.
But he’s unlucky and will be treated hours or even days later.
Mr. Uzendu estava jogando basquete quando caiu no chão. Os amigos achavam que ele estava fingindo de desacordado. Mas ele acabara de ter uma morte súbita.
Esta é a forma com que morrem 13% das pessoas do planeta.
Eu sou cardiologista e vou ensinar a reconhecer uma morte súbita.
Talvez por vermos tantas mortes na ficção, tendemos a pensar que a morte súbita é o simples e abrupto fechar dos olhos e perda do tônus muscular.
Mas, na vida real não é nada parecido com isso.
Primeiro, pode parecer com uma convulsão.
Muitos casos de parada cardíaca se iniciam com uma fase de elevado tônus muscular. A pessoa fica dura.
Isso ocorre em mais de 60% dos eventos de cessação da irrigação cerebral por causa definitivamente cardíaca registrados ao vivo em Tilt Tests.
O médico pede troponina, exame cardíaco que detecta infarto, e dá positivo.
Diagnóstico: Infarto.
Na verdade, Ednaldo tinha embolia pulmonar.
Os médicos nunca descobrirão este erro. Segue o fio para entender “a armadilha da troponina”.
Quando digo que “os médicos nunca descobrirão”, eu não estou falando dos médicos que o atenderam, mas me refiro a qualquer médico. O erro não é apenas diagnóstico, mas COGNITIVO.
A gênese do problema está em um viés chamado “viés da incorporação”.
Este viés existe quando o resultado de um exame dá nome a uma doença.
Lembra que falei que troponina aumentada aponta para infarto? "Infarto” é definido pelo aumento da troponina associado a clínica compatível.
Perceba que a troponina é o teste e é a definição da doença.
You've likely seen the term "slow R wave progression" in an ECG report.
But, is there a link to prior infarction? Our team conducted a Scoping Review to explore this.
Here's what we found in our study at @JElectrocardiol 🧵
Regarding accuracy, there are 4 studies (the most "modern" from 1981). After that, no further studies.
The main researcher, Zema, showed Sensitivity of 85-90% and Specificity of 56-75%. But don’t celebrate yet. We found a major issue in this analysis.
Zema's studies have a severe research bias: a selection bias where only people with slow progression were included. None of Zema’s studies is suitable for testing exam accuracy, which would compare people with the test versus those without.
Você certamente já viu o termo “progressão lenta de onda R” em um laudo de ECG.
Mas, existe relação disso com infarto prévio?
Nosso time conduziu uma Revisão de Escopo (Scoping Review) para revisar exatamente isso.
Eis o que descobrimos em nosso estudo na @JElectrocardiol 🧵
Pra termos mais robustez na análise dos estudos, sistematizamos a pesquisa da seguinte maneira: um dos pesquisadores (Eduardo Amorim) fez o que chamamos de title + abstract screening. Ele selecionou artigos que falavam sobre progressão lenta de R em doença coronária.
Depois, todos os pesquisadores avaliaram os estudos selecionados por Eduardo, determinando seus desfechos (acurácia, prevalência ou prognóstico), suas populações, vieses, etc.
Esta Scoping Review seguiu o Protocolo Prisma-ScR, uma diretriz para estudos com esta metodologia.