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O Tráfico de Africanos Escravizados e a Constituição do Brasil

Todo semestre passo para os meus estudantes esse vídeo de 20.528 viagens negreiras catalogadas, produzido pela revista Slate. Ao meu ver, são os melhores dois minutos para entender a formação social brasileira. 👇🏾
a. Demografia.

Diante do extermínio indígena, que reduziu drasticamente a população nativa, a colonização portuguesa da América se faz por meio de um repovoamento africano. Os números são impressionantes e dão a escala do fenômeno, muitas vezes não dimensionado por nós. 👇🏾
Como aponta @alencastro_f, de cada 100 pessoas que chegavam no Brasil até 1850, 87 delas vinham nos porões de navios negreiros (!!).

Dos cerca de 12 milhões de africanos transportados forçadamente para a América, 45% tinham como destino o Brasil (aproximadamente 5 milhões). 👇🏾
b. Economia política

Na toada de Alencastro, o vídeo aponta para a centralidade que o tráfico negreiro tem como base do Brasil. Ou seja, não são somente a escravidão e o grande latifúndio elementos constitutivos do Brasil, mas também o comércio de seres humanos. 👇🏾
Esse comércio permite a formação de uma elite de identidade brasileira e não mais portuguesa. Assim, ao invés de um comércio triangular, temos um comércio bipolar, no sentido Brasil-África, África-Brasil. Os subprodutos do latifúndio eram utilizados para comprar escravizados. 👇🏾
Vejamos: entre 1701 e 1810, 48% dos escravizados chegados na América portuguesa foram adquiridos pelas exportações de cachaça e tabaco. Mais da metade foram adquiridos com mercadorias brasileira. Em Luanda e Benguela, cerca de 90% das embarcações vinham do Brasil. 👇🏾
Como o @erahsfeliz alerta, vale pensar historicamente o impacto do álcool na destruição das vidas negras. A cachaça, fruto da grande lavoura escravista, não só foi a principal moeda de troca por escravizados, como penetrou na África, destruindo culturas e economias locais. 👇🏾
c. Forma estatal

Como se pode ver, o tráfico negreiro para o Brasil explode logo após a Revolução Haitiana, a qual gera uma suspensão do mercado de escravizados no Atlântico Norte. O Haiti não só recalibra a entrada de africanos, mas também o caráter do Estado brasileiro. 👇🏾
Como aponto no meu livro, a solução monárquica, os silêncios constitucionais sobre a cidadania e a escravidão e o pacto negreiro-escravista das elites, que fundam o Brasil independente, têm como base a manutenção do tráfico, por um lado, e evitar o Haiti aqui dentro por outro. 👇🏾
Diferentemente do que "boas mentes" vem pregoando por aí hoje em dia, o Brasil Império é um Império Negreiro. Esse é o núcleo da forma monárquica no Brasil. Isso explica não só a perpetuação da escravidão até o final do XIX, como o boom do tráfico entre 1820 e 1850. 👇🏾
Inclusive, como venho pesquisando e articulando no doutorado, essa é a chave para interpretamos a forma constitucional no Brasil e suas derivações teóricas e práticas até os dias de hoje: separação de poderes, força do executivo, concepção policialesca de cidadania e etc. 👇🏾
d. Forma jurídica

Boa parte dessas viagens para o Brasil foram feitas de maneira ilegal, tendo em vista que o tráfico de africanos estava proibido no país desde as primeiras décadas do século XIX - as "leis para inglês ver". 👇🏾
De novo Alencastro para mais duas questões:

1. Como a gestão da ilegalidade e o conluio da branquitude fundam a cultura jurídica nacional.

2. A grande maioria dos escravizados no Brasil desde o início do século XIX NÃO ERAM ESCRAVOS. A escravidão no Brasil foi contra legem. 👇🏾
Isso permite não só tensionar o senso comum de que a instituição da escravidão no Brasil foi "legal", mas também pensar como a acumulação capitalista no Brasil sempre foi feita por meio da violência e da ilegalidade.

Permite também ampliar a ideia de reparações e justiça. 👇🏾
e. Mundo do trabalho

O vídeo demonstra como a nossa classe trabalhadora, em geral, foi por longos séculos "produzida" fora do Brasil. Se somarmos o período imigrantista, o trabalhador brasileiro é um trabalhador estrangeiro do século XVI ao início do século XX. 👇🏾
Ou seja, o tráfico negreiro inaugura uma forma de constituição do mundo do trabalho. Isso explica não só a perpétua e profunda aversão das elites a esse setor, mas também os interesses econômicos na exploração e gestão dessa mão de obra. Importar trabalhador dava muito lucro. 👇🏾
f. Fenomenológico

Cada viagem apontada no vídeo durava entre 30 a 60 dias, com taxas de mortalidade chegando a 30%. O tráfico não é só economia e política, mas também uma experiência humana. Os números apontam que um continente foi transportado para o outro. 👇🏾
Como aponta Marcus Rediker, o navio negreiro é o primeiro artefato eminentemente moderno: máquina de guerra, prisão, veículo comercial e laboratório racial.

Um alemão, para ter consciência do seu país, deve, pelo menos uma vez na vida, refletir sobre Auschwitz. 👇🏾
Nós, como brasileiros, nunca teremos consciência do que é esse país sem refletir como deveria ser embarcar em um tumbeiro, deixando forçadamente o mundo conhecido em direção ao abismo, atravessado por um processo brutal de violência e desumanização. 👇🏾
Por isso é criminoso o silêncio sobre essa experiência e revolucionário o seu desvelamento, como os séculos que conectam, por exemplo, as tentativas de narrá-la e nomeá-la realizadas por escritoras como Maria Firmina dos Reis e Ana Maria Gonçalves.

O tumbeiro nos funda. 👇🏾
Ao meu ver, o melhor livro historiográfico sobre o tráfico de africanos escravizados no Brasil é "O Trato dos Viventes", do já citado Luiz Felipe de Alencastro. Boa parte dessa thread o tem como referência.
Acho que os números e a fenomenologia do tráfico também ajudam a entender a densidade do conceito de Améfrica Ladina de Lélia González: esse é um continente que não pode ser lido se não incorporamos chaves amefricanas. Na sua dureza, mas também nas suas utopias de liberdade.
Muita gente comentando sobre os EUA. De fato, para lá e resto da Am. Britânica, foram enviados cerca de 600 mil africanos raptados (5% do total). Quando a gente compara o quanto se debate escravidão e racismo por lá com aqui temos dimensão do problema do nosso silêncio. 👇🏾
Também serve como comparativo para pensar a profundidade da violência e a universalidade da escravidão no Brasil. O número elevado de viagens, além de moinho satânico do lucro negreiro, era oriundo da demanda por reposição de mão-de-obra. De escravidão benigna não temos nada. 👇🏾
Muito maneiro que várias pessoas estão pedindo o vídeo para passar em sala de aula e outros espaços. Felicidade imensa quando as threads geram esse tipo de compartilhamento. Segue o link para o vídeo direto no canal da Slate.

Algumas pessoas perguntaram sobre o meu livro que cito. É esse aqui:

amazon.com.br/Constitucional…

No site da Lumen, geralmente está mais barato, apesar do frete poder ser mais salgado: lumenjuris.com.br/historia-do-di…

E a dissertação, da qual ele é fruto: repositorio.unb.br/bitstream/1048…
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