Um show de horrores. Deu tudo errado em para o Flamengo em Quito. O resultado assusta, mas o desempenho é o mais importante e, infelizmente, talvez assuste ainda mais.
O ótimo Del Valle se preparou para uma partida histórica e conseguiu seu objetivo.
Há muito a ser dito...
Como normalmente acontece nessas goleadas, há dois jogos dentro de um. Duas derrotas em uma.
Até o segundo gol, foi uma derrota futebolística. Depois do segundo gol, veio a derrota anímica: a vaca foi pro brejo e o time simplesmente desligou.
A segunda normalmente ganha mais destaque, até pelas circunstâncias e pelo placar final, mas a primeira é mais importante.
Quem vê os melhores momentos pode até achar que o IDV achou dois gols soltos e matou o jogo. Não é verdade. O Fla foi superado desde o primeiro minuto.
A grande questão tática que Domenec precisaria resolver era em relação à saída de bola do Independiente Del Valle. Às vezes, o primeiro passe é o mais importante: quando a bola sai limpa lá de trás, desorganiza o adversário e chega limpa na frente.
Aí surge um dilema: na altitude, contra um adversário forte e bem preparado, valeria mais a pena usar uma marcação-pressão para tentar quebrar esse primeiro passe ou recuar para defender as zonas mais perigosas do campo?
Ainda com Jorge Jesus, o Flamengo sofreu com esse dilema na Recopa. Sem Gabigol, suspenso, JJ tentou neutralizar a saída com BH, Gerson e Diego marcando forte e em cima. Deu certo por 20 minutos, mas depois o time cansou e o jogo foi bastante complicado.
Domenec também optou por Diego ao lado de Everton Ribeiro, Arrascaeta, Gerson e Arão no meio. Mas, diferente do 4-2-3-1 usado nos últimos jogos, o time voltou ao 4-3-3 com um volante mais recuado e dois homens à sua frente.
Assim, espelhou a formação do Independiente Del Valle, que também vinha no seu 4-3-3 mais tradicional, com Pellerano, o capitão de 38 anos, descendo entre os zagueiros e organizando o time desde lá de trás.
Para neutraliar a saída de bola, então, Domenec defendia em 4-1-4-1 e usava Gabigol colado em Pellerano, Arrascaeta e Everton nos laterais, Arão cobrindo uma área no meio-campo e deixava uma função dupla para Diego e Gerson: pressionar o zagueiro e cobrir o meia.
Com isso, quando a bola chegava a Schuncke, o zagueiro pela direita, Gerson saía para dar combate. Quando passava a Segovia, Diego saía. E assim os dois iam revezando na pressão, indo e voltando como um iô-iô, cumprindo duas funções em uma só.
O problema óbvio dessa escolha tática é que, durante um curto tempo, abre-se uma janela de oportunidade boa demais para o adversário: o zagueiro livre com a bola e dois-contra-um entre as linhas.
E com o goleiro e um zagueiro livres, havia SEMPRE tinha uma opção fácil de passe.
Veja este lance: Diego sobe na pressão, a bola volta para o goleiro, ele recua. Percebe um adversário livre as linhas, avisa Gerson, que recua… Mas os dois continuam no meio do caminho e o problema persiste. Tem alguém livre no meio.
Isso aconteceu desde o primeiro minuto. O espaço estava lá. O Independiente Del Valle, no entanto, preferia forçar o jogo pelas pontas e pegava seus jogadores de lado marcados ou errava os lançamentos.
A escolha tática do Flamengo ainda tinha outro problema: piorava com o tempo. Na altitude, conforme Diego e Gerson cansavam, essa pressão ficava ainda mais lenta e descoordenada, acaba ficando frouxa e dando mais espaço por dentro.
Aos 11 minutos, o IDV encontrou o espaço por dentro, entre as linhas de marcação, pela primeira vez. A senha do jogo estava dada.
O futebol é um esporte complexo. É difícil dizer simplesmente que uma escolha foi ERRADA. O jogo é cobertor curto: toda escolha tem prós e contras.
Mas, nesse caso, dá pra afirmar categoricamente: a maneira como o Flamengo tentou marcar a saída do Del Valle foi um erro grave.
O Flamengo ficou com o pior dos dois mundos: não pressionava os zagueiros de maneira efetiva, filtrando o primeiro passe, e ainda deixava muito espaço nas costas do meio-campo. Se o IDV conseguisse aproveitar aquele espaço, já era.
Enquanto isso, o IDV dificultava a saída de bola do Fla. Quando conseguia sair por baixo, o time até ia bem, mas o tempo foi passando, o ar foi faltando e todo mundo começou a simplesmente errar. O Flamengo não saía.
Com isso, o jogo assumiu um ciclo que todo rubro-negro conhece, mas do lado do avesso. De certa forma, o Flamengo acabou provando do próprio veneno. O jogo tinha uma “seta”, e ela apontava para o gol de César.
Aos poucos, o IDV foi deixando de buscar os pontas e passou a explorar seguidamente o espaço pelo meio, entre as linhas do Flamengo. O espaço que sempre esteve lá.
Até o finalzinho do primeiro tempo, o IDV não ameaçou de maneira contundente. Deu apenas dois chutes perigosos de fora da área. Mas o caminho estava aberto. O Flamengo já era amplamente dominado. Com o cansaço da altitude, ia se tornando presa fácil.
Até que um lance junta tudo isso: dificuldade para sair, chutão, recomposição ruim, espaço entre as linhas, jogadores acelerando na hora certa e, pela primeira vez, finalização dentro da área. Receita completa. Gol.
Domenec disse na entrevista que o primeiro tempo foi equilibrado. É natural que ele queira “defender” o grupo e o trabalho, mas não houve nenhum equilíbrio ali. Antes do gol, o Flamengo passava aperto. Depois, deixou de existir um Flamengo em campo.
No segundo tempo, Domenec mudou a maneira de marcar a saída de bola. Passou a defender em 4-4-2, com Gabigol e Arrascaeta atrapalhando os três iniciadores das jogadas. Aparentemente piorou, mas é até difícil fazer um julgamento porque logo aos 3 minutos saiu o segundo gol.
Um gol bonito, mas completamente bizarro. Depois de Preciado fatiar o meio-campo, eram 5-contra-5, mas o IDV tinha todo tipo de superioridade possível. O Flamengo nem conseguiu pressionar a bola, tentar cobrir o chute. Nada…
E aí acabou o primeiro jogo dentro do jogo. Iniciou-se o segundo: um Flamengo já derrotado, fazendo força para se manter de pé.
Se existisse a opção “jogar a toalha” no futebol, ela seria usada ali.
Um pequeno país em um canto da Europa tem um peso surpreendente na forma como a gente pensa e sente o futebol. Saíram da Holanda algumas das ideias mais importantes para a nossa compreensão do esporte.
Se hoje falamos tanto em espaço no jogo, é muito graças aos holandeses.
Como já falei aqui, tive a honra e o privilégio de ser o tradutor do livro @Zonal_Marking, do grande Michael Cox, lançado em pré-venda na semana passada pela @EdGrandeArea.
O livro começa falando sobre a influência holandesa no futebol europeu do início dos anos 1990 através de seu principal clube — o Ajax — e de dois ex-jogadores e então treinadores — Cruyff e Van Gaal.
O mais interessante, no entanto, é o mergulho no modo de pensar holandês.
Por que o Flamengo goleia tanto? - PARTE 3: O QUE OS NÚMEROS DIZEM
Os números não são o jogo em si, mas ajudam a entender o que se passa dentro de campo. É preciso ter cuidado, colocar tudo em contexto, mas dá para entender muita coisa a partir deles. Vamos ao mergulho!
Dos 14 jogos disputados pelo Flamengo sob o comando de Renato Gaúcho, 7 foram pelo BR21 e 7 em competições de mata-mata (Libertadores e CdB). Como o time tem se comportado de maneira diferente, a ideia aqui é olhar para esses números de maneira separada.
Por que o Flamengo goleia tanto? - PARTE 2: PORTEIRA QUE PASSA BOI
Meu antigo professor de história tinha uma espécie de frase de efeito. Não importava o assunto que estávamos estudando, em algum momento ele sempre dava um jeito de dizer: "porteira que passa boi, passa boiada".
Nesta série, pretendo explorar por diferentes ângulos a rotina atual de goleadas do Flamengo. Na PARTE 1 (
), detalhei as mudanças de estilo trazidas por Renato Gaúcho até aqui. Hoje quero falar sobre os contextos criados dentro dos jogos.
O 4x0 em cima do Grêmio é um bom ponto de partida. No fim de um primeiro tempo bastante instável, o Flamengo perdeu Bruno Henrique por lesão e Isla recebeu o vermelho. Parecia um cenário terrível, se encaminhando para um segundo tempo sofrido.
Por que o Flamengo goleia tanto? - PARTE 1: CONTROLE E AGRESSIVIDADE
O assunto do momento é aquele: como o Flamengo consegue golear em jogos que nem parece estar dominando durante a maior parte do tempo?
Há muita coisa para falar, então decidi fazer uma série. Começa aqui!
De fato, é quase inacreditável.
Em 14 jogos desde a chegada de Renato Gaúcho, o Flamengo teve 12V 1E e 1D. Mais incrível que isso: fez 45 gols (3,2 por jogo) e sofreu 10 (0,71 por jogo)!
Das 12 vitórias, 8 foram por 3 gols de diferença ou mais.
É normal que um retrospecto como esse gere admiração, um certo choque e até mesmo confusão.
Primeiro, porque são números simplesmente altos demais. Quase impossíveis de se ver por aí — e de se manter no longo prazo.
Gabigol está imparável. Fez 7 gols nos últimos 5 jogos que disputou. Dois de pênalti (ele simplesmente não perde) e outros cinco gols com a bola rolando.
Todos seriam considerados fáceis. Mas será que são simples?
Além do segundo e do terceiro gol contra o Santos, há mais três nos dois jogos contra o Olimpia. Cinco gols depois da marca do pênalti, todos finalizados com apenas um toque! A marca de um artilheiro letal!
Em um mesmo lance, ele faz três, quatro, cinco movimentos. Sabe exatamente o momento em que o passe pode sair, sabe exatamente como os zagueiros tendem a se comportar.
Futebol não é sobre estar no lugar certo. É sobre chegar no lugar certo, na hora certa, do jeito certo.