Jeff Holter (1914-1983) se alistou na 2ª Guerra como médico do Escritório da Marinha Americana. Estudando eletroencefalogramas, acabou criando o Holter que você conhece, mas que era bem diferente naquela época.
Hoje, contamos com os Smart Watches. Segue o fio 🧵
O primeiro ECG ambulatorial da história veio da incapacidade de Holter de capturar ondas eletroencefalográficas, pelo intenso ruído. Holter mudou o local dos eletrodos para o tórax e conseguiu capturar a atividade elétrica cardíaca.
O primeiro Holter (foto de 1947) tinha 38 kg.
O Holter clássico dura 1-2 dias. Patches e loopers podem monitorizar o eletrocardiograma por até 30 dias. O monitor de eventos implantável (ILR, como o Lux, da foto, que tem 4,5 cm de comprimento e bateria estimada de 3 anos).
A pequena cirurgia pra implante dura segundos.
E agora, na onda dos devices de “saúde digital” ou “e-Health”, podemos ter, em nosso braço, uma ferramenta que detecta anormalidades do ritmo cardíaco, além de uma dezena de outras funcionalidades recreativas: os Smart Watches.
O atual foco do Apple Watch, p. ex., é a detecção de fibrilação atrial (FA), a arritmia mais frequente, muitas vezes assintomática até o momento em que ocorre um evento trágico, como um AVC.
Outras investigações podem ser feitas: palpitações e síncope (desmaios).
Na investigação do desmaio, um Holter só é capaz de dar o diagnóstico em 1-5% dos casos. No Looper de 30 dias, 15-25%. Com o ILR, esse número chega a 70%.
Em AVCs de fonte indeterminada (ESUS), o Holter encontra FA em 3-5% dos casos. O Looper de 30 dias em 30%.
O Apple Watch funciona de duas maneiras. A primeira é a fotopletismografia (FPG), que usa fontes de luz verde e sensores para detectar a passagem de sangue pelo pulso periférico e estimar a frequência cardíaca.
Isso cria um gráfico de tacograma (frequência/tempo).
A detecção de ritmo irregular inicia uma sequência automática de medições de tacogramas quando o usuário está em repouso. Se 5 de 6 tacogramas detectarem “ritmo irregular”, o usuário é notificado (watchOS 5.1.2).
Valor preditivo positivo comparado com ECG: 84% (Apple Heart Study)
A segunda é pelo ECG, criando uma derivação D1 entre um braço (traseira do relógio) e outro (dedo que toca a Digital Crown). Sensibilidade: 95%, especificidade 97%.
A imagem abaixo está no capítulo 3 do meu livro “Manual de ECG”: “o eletrocardiógrafo e os sistemas de derivações”
Por enquanto, o algoritmo do Apple Watch não consegue detectar outras arritmias, o que limita seu uso. E é classificado como “inconclusivo” em até 20% dos usos.
Ao mesmo tempo, o diagnóstico de FA por clínicos pode ser falso em até 60% dos casos (BMJ. 2007;335:380).
Como o uso dos Smart watches é mais frequente entre populações mais jovens e com bom poder aquisitivo (com probabilidade pré-teste mais baixa, portanto), a inferência bayesiana se torna um problema.
Os falsos positivos pode trazer ansiedade e investigações desnecessárias.
O uso difundido da ferramenta, ao mesmo tempo, pode personalizar o tratamento das arritmias de maneira mais fiel. E no futuro, com eventuais novos algoritmos, o Apple Watch (e outros) pode vir a servir como propedêutica não-invasiva da síncope e das palpitações.
Com os conselhos de um eletrofisiologista, o Apple Watch pode gravar 9 derivações (foi concebido para gravar apenas 1 das 12 habituais).
A acurácia dessa medida ainda é muito baixa (SMARTAMI trial, ESC 2020) para uma doença de tão alto impacto. Não é recomendado em larga escala.
Os dispositivos de saúde digital chegaram com força total nos últimos anos. E vão mudar a relação médico-paciente, por automatizar diagnósticos.
Mas o problema dos falsos diagnósticos sempre existirá, e talvez em maior escala.
Você está preparado pra essa mudança?
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“There is no need to change the STEMI-NSTEMI paradigm. I never see false negatives.”
We published the article “The no false negative paradox in STEMI-NSTEMI diagnosis” in Heart (BMJ), and I’ll explain this paradox with a story: José de Alencar sees a patient with angina. 🧵
José de Alencar does not know, but this patient has a thrombus acutely blocking one of his coronary arteries. Unfortunately, there is no ST-segment elevation.
José de Alencar, therefore, classifies the patient as NSTEMI. Could he have done differently?
Since the patient has NSTEMI, José de Alencar does not activate STEMI protocols. If the patient were lucky enough to show the sign that defines the disease, treatment would occur within 30-120 minutes.
But he’s unlucky and will be treated hours or even days later.
Mr. Uzendu estava jogando basquete quando caiu no chão. Os amigos achavam que ele estava fingindo de desacordado. Mas ele acabara de ter uma morte súbita.
Esta é a forma com que morrem 13% das pessoas do planeta.
Eu sou cardiologista e vou ensinar a reconhecer uma morte súbita.
Talvez por vermos tantas mortes na ficção, tendemos a pensar que a morte súbita é o simples e abrupto fechar dos olhos e perda do tônus muscular.
Mas, na vida real não é nada parecido com isso.
Primeiro, pode parecer com uma convulsão.
Muitos casos de parada cardíaca se iniciam com uma fase de elevado tônus muscular. A pessoa fica dura.
Isso ocorre em mais de 60% dos eventos de cessação da irrigação cerebral por causa definitivamente cardíaca registrados ao vivo em Tilt Tests.
O médico pede troponina, exame cardíaco que detecta infarto, e dá positivo.
Diagnóstico: Infarto.
Na verdade, Ednaldo tinha embolia pulmonar.
Os médicos nunca descobrirão este erro. Segue o fio para entender “a armadilha da troponina”.
Quando digo que “os médicos nunca descobrirão”, eu não estou falando dos médicos que o atenderam, mas me refiro a qualquer médico. O erro não é apenas diagnóstico, mas COGNITIVO.
A gênese do problema está em um viés chamado “viés da incorporação”.
Este viés existe quando o resultado de um exame dá nome a uma doença.
Lembra que falei que troponina aumentada aponta para infarto? "Infarto” é definido pelo aumento da troponina associado a clínica compatível.
Perceba que a troponina é o teste e é a definição da doença.
You've likely seen the term "slow R wave progression" in an ECG report.
But, is there a link to prior infarction? Our team conducted a Scoping Review to explore this.
Here's what we found in our study at @JElectrocardiol 🧵
Regarding accuracy, there are 4 studies (the most "modern" from 1981). After that, no further studies.
The main researcher, Zema, showed Sensitivity of 85-90% and Specificity of 56-75%. But don’t celebrate yet. We found a major issue in this analysis.
Zema's studies have a severe research bias: a selection bias where only people with slow progression were included. None of Zema’s studies is suitable for testing exam accuracy, which would compare people with the test versus those without.
Você certamente já viu o termo “progressão lenta de onda R” em um laudo de ECG.
Mas, existe relação disso com infarto prévio?
Nosso time conduziu uma Revisão de Escopo (Scoping Review) para revisar exatamente isso.
Eis o que descobrimos em nosso estudo na @JElectrocardiol 🧵
Pra termos mais robustez na análise dos estudos, sistematizamos a pesquisa da seguinte maneira: um dos pesquisadores (Eduardo Amorim) fez o que chamamos de title + abstract screening. Ele selecionou artigos que falavam sobre progressão lenta de R em doença coronária.
Depois, todos os pesquisadores avaliaram os estudos selecionados por Eduardo, determinando seus desfechos (acurácia, prevalência ou prognóstico), suas populações, vieses, etc.
Esta Scoping Review seguiu o Protocolo Prisma-ScR, uma diretriz para estudos com esta metodologia.