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Sep 20, 2020 14 tweets 4 min read Read on X
Jeff Holter (1914-1983) se alistou na 2ª Guerra como médico do Escritório da Marinha Americana. Estudando eletroencefalogramas, acabou criando o Holter que você conhece, mas que era bem diferente naquela época.

Hoje, contamos com os Smart Watches. Segue o fio 🧵 Image
O primeiro ECG ambulatorial da história veio da incapacidade de Holter de capturar ondas eletroencefalográficas, pelo intenso ruído. Holter mudou o local dos eletrodos para o tórax e conseguiu capturar a atividade elétrica cardíaca.

O primeiro Holter (foto de 1947) tinha 38 kg.
O Holter clássico dura 1-2 dias. Patches e loopers podem monitorizar o eletrocardiograma por até 30 dias. O monitor de eventos implantável (ILR, como o Lux, da foto, que tem 4,5 cm de comprimento e bateria estimada de 3 anos).

A pequena cirurgia pra implante dura segundos. Image
E agora, na onda dos devices de “saúde digital” ou “e-Health”, podemos ter, em nosso braço, uma ferramenta que detecta anormalidades do ritmo cardíaco, além de uma dezena de outras funcionalidades recreativas: os Smart Watches. Image
O atual foco do Apple Watch, p. ex., é a detecção de fibrilação atrial (FA), a arritmia mais frequente, muitas vezes assintomática até o momento em que ocorre um evento trágico, como um AVC.

Outras investigações podem ser feitas: palpitações e síncope (desmaios).
Na investigação do desmaio, um Holter só é capaz de dar o diagnóstico em 1-5% dos casos. No Looper de 30 dias, 15-25%. Com o ILR, esse número chega a 70%.

Em AVCs de fonte indeterminada (ESUS), o Holter encontra FA em 3-5% dos casos. O Looper de 30 dias em 30%.
O Apple Watch funciona de duas maneiras. A primeira é a fotopletismografia (FPG), que usa fontes de luz verde e sensores para detectar a passagem de sangue pelo pulso periférico e estimar a frequência cardíaca.
Isso cria um gráfico de tacograma (frequência/tempo). Image
A detecção de ritmo irregular inicia uma sequência automática de medições de tacogramas quando o usuário está em repouso. Se 5 de 6 tacogramas detectarem “ritmo irregular”, o usuário é notificado (watchOS 5.1.2).
Valor preditivo positivo comparado com ECG: 84% (Apple Heart Study) Image
A segunda é pelo ECG, criando uma derivação D1 entre um braço (traseira do relógio) e outro (dedo que toca a Digital Crown). Sensibilidade: 95%, especificidade 97%.

A imagem abaixo está no capítulo 3 do meu livro “Manual de ECG”: “o eletrocardiógrafo e os sistemas de derivações” Image
Por enquanto, o algoritmo do Apple Watch não consegue detectar outras arritmias, o que limita seu uso. E é classificado como “inconclusivo” em até 20% dos usos.
Ao mesmo tempo, o diagnóstico de FA por clínicos pode ser falso em até 60% dos casos (BMJ. 2007;335:380).
Como o uso dos Smart watches é mais frequente entre populações mais jovens e com bom poder aquisitivo (com probabilidade pré-teste mais baixa, portanto), a inferência bayesiana se torna um problema.
Os falsos positivos pode trazer ansiedade e investigações desnecessárias.
O uso difundido da ferramenta, ao mesmo tempo, pode personalizar o tratamento das arritmias de maneira mais fiel. E no futuro, com eventuais novos algoritmos, o Apple Watch (e outros) pode vir a servir como propedêutica não-invasiva da síncope e das palpitações.
Com os conselhos de um eletrofisiologista, o Apple Watch pode gravar 9 derivações (foi concebido para gravar apenas 1 das 12 habituais).
A acurácia dessa medida ainda é muito baixa (SMARTAMI trial, ESC 2020) para uma doença de tão alto impacto. Não é recomendado em larga escala. Image
Os dispositivos de saúde digital chegaram com força total nos últimos anos. E vão mudar a relação médico-paciente, por automatizar diagnósticos.
Mas o problema dos falsos diagnósticos sempre existirá, e talvez em maior escala.
Você está preparado pra essa mudança?

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Apr 10
É a queridinha da alta classe. É quase um símbolo de status. É também símbolo da perda de dignidade profissional.

Eu estou falando de uma grande picaretagem, um golpe tão bem aplicado que tem paciente que jura que melhorou com isso.

Entenda TUDO sobre “SOROTERAPIA” neste fio. Image
A reposição/aplicação de micronutrientes por via endovenosa não possui nenhuma boa evidência clínica de benefício.
Quando eu falo em “evidência clínica”, quero dizer algum estudo que se prestou a observar melhora do sintoma ou da doença dos pacientes.
Image
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Todas as afirmações dos defensores da soroterapia são baseada em ciência pré-clínica, que são estudos básicos de fisiologia e farmacologia, mas que não se prestam a observar melhora real em humanos.

No campo pre-clínico, o estudo de micronutrientes é promissor. Apenas promissor.
Read 23 tweets
Mar 7
Uma pesquisa daquelas que mudam tudo foi lançada hoje na New England Journal of Medicine.

Um grupo de pesquisadores italianos demonstrou, de maneira muito elegante, que micro e nanoplásticos podem estar associados a eventos cardiovasculares adversos. 🧵 Image
Em pacientes assintomáticos que iriam fazer endarterectomia de carótida entrariam no estudo. Sua placa depois era avaliada em microscopia eletrônica.
Além disso, o paciente seria seguido por vários meses para avaliar a incidência de eventos cardiovasculares adversos.
O que os pesquisadores queriam era comparar, ao longo do tempo, se quem tinha micro e nanoplásticos em sua placa de carótida teria um futuro com mais eventos: infarto, AVC ou morte.
Read 13 tweets
Feb 20
Nesta importante pesquisa, eu e meus colegas investigamos qual a acurácia diagnóstica de um dos sinais mais importante (se não “o” sinal mais importante) da Medicina:

O supradesnivelamento do segmento ST no eletrocardiograma para infarto.

E esse sinal erra. E muito 🧵 Image
Esse não parece um tema assim tão novo ou uma análise tão importante, afinal o “supra”, como é chamado o sinal, está aí desde sempre.

Na verdade, nossa pesquisa é inovadora, a começar pelo fato de que existe um forte viés no nome desta doença.
É que quando a comunidade médica aceitou nomear, lá nos anos 2000, uma doença pelo resultado do seu index test (“supra”), foi criado um viés de incorporação que varre para baixo do tapete os falso-positivos e os falso-negativos.

Vou explicar melhor: Image
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Feb 15
Ms. Bristol recebeu um xícara de chá e foi um tanto indelicada ao recusá-la porque o leite foi servido depois do chá. Segundo ela, o sabor seria diferente.
Quem lhe serviu o chá foi Ronald Fisher, um estatístico que decidiu testar isso.

Esse teste é usado até hoje em Medicina 🧶 Image
No experimento, conhecido como The Lady Tasting Tea, Fisher mandou preparar oito xícaras, quatro em que o chá havia sido servido antes e quatro em que o leite havia sido servido antes

A distribuição binomial calcula a probabilidade de sucessos em ensaios binários (sucesso/falha) Image
Fisher queria tirar o fator "sorte" ou "acaso" da jogada. É que uma ou outra xícara ela acertaria como acertamos cara/coroa. Mas qual a probabilidade de acertar todas?

Fisher calculou que essa probabilidade era de 0,14%. Image
Read 13 tweets
Dec 24, 2023
Davide Austori, zagueiro da Fiorentina na Itália, morreu subitamente.

Foi por causa da vacina?
Bem, acho que todos concordamos que não porque isso ocorreu em 2018.

Se mortes súbitas sempre existiram, por que muitos insistem em insinuar que as mortes súbitas foram por vacina? Image
Há duas respostas para a pergunta que fundamenta o fio.

A primeira é desconhecimento científico básico e envolvimento com terroristas anti-vacinais. Se tudo o que você lê no zap é isso, você tende a pensar que só existe isso.
A outra é mau-caratismo mesmo.
Se já havia mortes súbitas em jovens antes da vacinação para COVID, nós temos que ter metodologia para verificar se essas mortes aumentaram desproporcionalmente ao aumento da população e se podemos culpar as vacinas por isso. Image
Read 8 tweets
Nov 3, 2023
Ednaldo vai ao PS com tromboembolismo pulmonar e o médico não faz essa hipótese. Ao invés, pensa em síndrome coronária, e solicita uma troponina. Se este exame for positivo, a ele será dado o diagnóstico de “infarto sem supra”, mesmo que as coronárias sejam normais. Segue o fio.
Afinal, para o diagnóstico de IAMSSST, a troponina é o exame que define a síndrome. Isto gera um viés chamado “incorporation bias”.
O incorporation bias aumenta falsamente a sensibilidade e a especificidade de um teste, afinal, se o exame define a doença, quando haverá erro? Image
Neste cenário que eu demonstrei, a troponina aumentou por TEP. Mas, os médicos não pensaram em TEP.

O resultado desta troponina será ilusoriamente verdadeiro para sempre.
Detalhe: se esse paciente estivesse em um estudo, entraria na planilha do acerto.
Read 10 tweets

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