A primeira é sobre meu metiê mesmo, que é a História.
Desde que comecei a trabalhar com história da Ásia vi o quanto sou ignorante nas histórias de diferentes países. Mesmo os que conhecia um pouco mais, havia o que chamo aqui de...
..."buracos historiográfica", que aumentam ou diminuem de tamanho conforme o caso.
Os livros paradidáticos adiantam pouco e os didáticos menos ainda.
Pego um exemplo bobo, mas só para explicar: começamos o currículo escolar falando de civilizações antigas.
O Crescente Fértil ganha destaque e, em poucas aulas, percorremos alguns milênios na região, com destaque à Mesopotâmia, atual Iraque.
Tão logo são conquistados pelos persas, os mesopotâmicos somem da história para serem conquistados por uma sequência de povos.
Ganham algum protagonismo se, e quando, falamos do califado Abássida, nas aulas sobre o Islã. Mas a derrocada do califado acompanha um ocaso iraquiano, algo entre o século IX dc até o século XX, até Saddam Hussein.
Quem é professor sabe que é uma quimera estudar tooooda história, que dirá ensinar. Mas menos óbvio é dizer que as escolhas do que se ensina derivam de visões maiores sobre a história que compreendem noções bastante arcaicas sobre "universalidade".
Novamente, no plano do exemplo, o aluno de Ensino Médio que sabe quase nada sobre Iraque, pode ser capaz de remontar a história francesa desde a coroação de Clóvis até a luta pela libertação colonial da Argélia.
Ao menos a maioria dos livros didáticos subsidiam essa perspectiva.
Assim, o espaço do Congo, como o @sk_serge bem lembra, emerge como vítima inegável do Colonialismo belga. Os indescritíveis horrores ganham alguns parágrafos de destaque, por vezes até fotos das atrocidades.
Mas nada mais. Talvez Lumumba apareça depois. Mas difícil dizer.
Em livros mais atuais, o genocídio em Ruanda até ganha destaque nos capítulos finais. Mas seus desdobramentos posteriores no Congo ou mesmo em Ruanda não aparecem.
A "universalidade" da História é implacável e situa geograficamente os menos universais, inserindo-os...
...em notas de rodapé, sejam ele congoleses, argentinos, indonésios etc. Quando emergem, só podem emergir pelo seu triunfo (a luta anticolonial), mas jamais pelo que se constitui como seus impasses e seus fracassos - que nada mais são do que uma continuidade do colonialismo.
A outra camada, que não exclui a primeira, é a crítica que Serge faz à esquerda. No final, a ideia arcaica de "universalidade" nos assombra ao falar do Congo.
Por que? Porque ele se torna uma espécie de token para denunciar o imperialismo, mas rapidamente abandonado na hora...
...de encararmos os desdobramentos após os horrores de Leopoldo. E não é como se a esquerda estivesse ausente da história congolesa.
Não foi a Segunda Internacional a primeira associação a processar o governo de Leopoldo pelos horrores no Congo?
Patrice Lumumba, brilhante político e intelectual congolês, não buscou no marxismo parte da sua inspiração anti-imperialista?
Che Guevara não liderou uma missão no Congo, treinando guerrilheiros Simba?
Ainda assim, a esquerda não costuma reivindicar essas experiências. E, tanto pior, desconhecemos o brutal regime de Mobutu (e seu uso instrumental e caricato do pan-africanismo na República do Zaire). Desconhecemos o que foi a abertura do regime e suas mazelas atuais.
Para além da violência da xenofobia, relatada por Serge, até mesmo os mais atentos na geopolítica global parecem ignorar a importância estratégica da indústria mineradora congolesa - e como ela foi e é usada como garantia em empréstimos ao FMI.
Assim como os historiadores, as esquerdas não têm condições de saber toda a história do mundo, verdade.
Mas os "buracos historiográficos" padecem dos mesmos males: a crença nessa ideia de universalidade que se permite usar de qualquer história episódica ao redor do mundo para...
...poder formular uma grande síntese.
O problema é que, para além do episódio, aquelas pessoas continuam vivendo a história. E se usamos de forma tão instrumental o seu passado, até que ponto não estamos internalizando uma lógica colonialista?
Enfim, são duas reflexões que o texto do @sk_serge me provocou. Recomendo muito a leitura e espero que provoque o mesmo em mais gente.
PS: Para essas duas reflexões que montei aqui, não consigo formular nada agora exceto essas questões. Um dia quem sabe sai alguma coisa mais decente, mas por ora, leiam o Serge.
(e ignorem os jornalistas sabidinhos que dizem saber "alguma coisa", seja de Congo ou Haiti, plis)
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Dormi mal ontem por causa do horror do que houve ontem em Gaza, do massacre de civis que buscavam alimentos.
Parece que segundo os monopolizadores da memória do holocausto, não se pode fazer comparações com o nazismo.
Beleza. Vou lembrar do que houve na Índia, em 1919.
Nesse ano, os ingleses praticamente sepultaram todas as conversas com os líderes indianos para um plano de independência. E, tão logo a 1ª GM acabou, os ingleses promulgaram o Rowlatt Act, uma lei que permitia que o governo colonial britânico prendesse qualquer pessoa...
...suspeita de participar de qualquer atividade contrária ao governo colonial. E mais: elas sequer teriam acesso aos processos. Kafka é fichinha.
Na região do Punjab, ao longo dos meses de março e abril, uma série de protestos contra a lei deixaram os governadores e chefes...
É preciso que se diga uma coisa sobre negacionismo do holocausto.
Um dos maiores nomes críticos a esse negacionismo foi um historiador francês e judeu chamado Pierre Vidal-Naqet.
Vidal-Naqet escreveu, em 1987, um livro chamado "Os assassinos da memória", onde desfere duras críticas a acadêmicos e a imprensa por darem palco aos chamados intelectuais negacionistas.
Baseada numa falsa ideia de "arena pública", muita gente acabou abrindo espaço para negacionistas preferirem as maiores mentiras sobre a Shoah. E, em alguns casos, com o aval de intelectuais renomados (como Noam Chomsky, p. ex.).
Por ocasião do conflito, tenho tentado retomar leituras sobre movimentos israelenses e palestinos que lutaram contra o sionismo ao longo do século XX.
Um dos mais interessantes foi o Matzpen:
Durante a Guerra dos Seis Dias, o Matzpen se aliou com grupos palestinos para denunciar a guerra e exigir a "des-sionização" de Israel. A defesa era da criação de um Estado único e secular para árabes e israelenses.
Na verdade, nos anos 1960 e 1970, uma parcela significativa da esquerda israelense era anti-sionista. A Guerra dos Seis Dias foi determinante nesse sentido, mas os "rachas" entre a esquerda (inclusive os comunistas) era anterior.
Em 1967, as cortes israelenses criaram dois sistemas jurídicos distintos. A jurisprudência dos territórios ocupados é coordenada por tribunais militares.
Ontem eu postei um mapa que o Irgun divulgava sobre o projeto de Erez Israel, na década de 1930 - e que manteve-se fiel a ele em 1940.
Fui acusado de antissemitismo por isso. Mas antes de dar processo a rodo, vou dar aula de história.
A história do Irgun remete ao sionismo revisionista de Ze'ev Jabotinsky. Na formação do sionismo político israelense após 1917, Jabotisnky liderou um grupo de sionistas que contestava o pragmatismo de líderes como Ben Gurion.
Para eles, a Palestina deveria ser conquistada...
...militarmente. E isso implicava (nos anos 1930, ao menos) num governo militarista e autoritário. Jabotinsky era um grande admirador do fascismo italiano e de Benito Mussolini.
Mas para além da conquista da Palestina, Jabotinsky defendia a criação da "Grande Israel".
7 livros que fundamentaram as minhas concepções sobre a questão Palestina:
1) "A questão da Palestina", de Edward Said. Um livro inescapável. A partir da história da colonização israelense na Palestina durante os anos do mandato britânico, o autor mostra como a identidade palestina se construiu num "não-direito" à terra.
2) "The Palestine Nakba", de Nur Masalha. Infelizmente, sem tradução, mas um livro poderoso que retoma a importância de entender um projeto de História decolonial por meio da memória dos palestinos sobre a Nakba, a "catástrofe", ocorrida em 1948.