Existe empate com gosto de vitória? Sinceramente não sei.
Mas certamente existe jogo com gosto de Flamengo.
O rubro-negro terminou a exaustiva semana das liminares com um sorriso no rosto. Não (apenas) pelo ponto conquistado, mas por um verdadeiro domingo de Flamengo.
Com todos os problemas, o Fla foi a campo um time de garotos.
Alguns completamente desconhecidos de boa parte da torcida. Há quem diga que “o time foi reforçado por quatro jogadores experientes”, mas a verdade é exatamente oposta. Eram sete moleques da base, a maioria estreando.
E o domingo foi todo deles. Entraram em campo contra um grande rival, colocaram a bola no chão e jogaram com toda a calma do mundo. Nada de bicões desesperados, de jogadores intimidados, de movimentações aleatórias… Para a surpresa de todos, o Flamengo jogou como um time.
Para falar do jogo, então, é preciso falar deles.
Primeiro, os mais “experientes”…
Lincoln e João Lucas ainda têm muito a evoluir, mas mostraram valor. Os dois não tinham missões fáceis, mas cumpriram muito bem o que foi proposto.
Ramon também já era conhecido de quem acompanhou o time no início do ano diretamente no Maracanã (ou pelo t.me/teofb7) e tem muito potencial. Foi muito sólido, tanto ofensiva quanto defensivamente. Criou muito pelo lado esquerdo, sempre com a bola no chão.
Guilherme Bala era mais desconhecido, mas fez todo rubro-negro abrir um sorriso largo logo no primeiro drible abusado. Talvez, o primeiro sorriso em alguns dias. Um sorriso de Flamengo.
Dentre todos, Natan e Otávio enfrentaram o verdadeiro teste de fogo. Zagueiro não pode errar, então nunca é fácil estrear no profissional. Ainda mais assim...
Mas os dois foram muito bem. Controlaram bem a área, se posicionaram corretamente, cortaram tudo pelo alto e se comunicaram o tempo todo. Como se não bastasse, foram muito, muito calmos na saída de bola.
As circunstâncias moldaram a partida, claro. A solidez defensiva do Flamengo também se deve à estratégia: diferentemente do que costuma acontecer, o time recuava e se defendia com muita gente próxima da própria área. Os zagueiros não ficavam expostos.
Soma-se a isso a incapacidade do time do Palmeiras em criar pelo meio, atrair para um lado e atacar o outro, de manipular o bloco de marcação, abrir espaços... Um time totalmente previsível.
Se engana, porém, quem acha que esse é um jogo fácil para os zagueiros. De fato, eles não precisavam jogar muito avançados, com espaço para cobrir às suas costas, mas enfrentaram um time com pontas rápidos buscando sempre as costas dos laterais e um centroavante mortal.
Com um bloco muito compacto fechando o meio, o Flamengo forçava o Palmeiras a avançar pelos lados e cruzar na área.
Com isso, apesar de pouco exposta nos espaços para cobrir, a zaga era forçada a jogar sempre no limite da concentração.
Otávio acabou sendo o mais exigindo, saindo no combate, controlando os pivôs e cobrindo as costas de Ramon. Foi seguro e ganhou quase todas as jogadas.
Natan também foi bem, mas talvez tenha se destacado até mais pela calma na saída de bola e pela ambidestria: o Flamengo jogava com uma rara dupla de canhotos, e o garoto mostrou absoluta desenvoltura pelo lado direito.
No único lance que os dois não seguraram, lá estava Neneca.
Não é exagero dizer que essa foi, até aqui, a defesa do campeonato.
Sério, reveja como o lance é todo perfeito. O cruzamento impecável de Viña, a movimentação imprevisível de Luiz Adriano, seguida por um salto extraordinário. Mesmo com a bola um pouco atrás, o centroavante consegue esticar o pescoço e cabecear para baixo, no canto, no contrapé…
Neneca ganhou o prêmio de craque do jogo e nos brindou com um depoimento lindo, profundo e sincero. Um depoimento para lembrar a todos nós o que é o verdadeiro futebol.
Nada de liminares, negociatas e interesses. O futebol é feito das histórias de Neneca, Natan, Otávio e cia...
O prêmio foi muito bem entregue. Simbolicamente, foi perfeito. Mas convenhamos: em geral, quando o goleiro é eleito o melhor em campo, se supõe que o time foi massacrado, que o goleiro teve que se virar para evitar cento e cinquenta gols certos.
Não foi isso que aconteceu...
Em campo, se viu um Flamengo seguro, jogando de cabeça em pé, batendo de frente e em alguns momentos até sendo superior ao Palmeiras.
Diferente do que todos esperavam, aliás. Lá pelos vinte minutos, o comentarista cravou: “o jogo AINDA está equilibrado”
Mas o panorama não mudou. Foi assim até o final.
Comandando tudo isso, Arrascaeta. É impossível falar do jogo sem falar da molecada e é impossível falar da atuação da molecada sem citar o uruguaio.
Pegou a faixa de capitão e, do alto dos seus 26 anos, se multiplicou.
O Flamengo jogou na formação “4-4-1-Arrascaeta”. O camisa 14 tinha liberdade total para se movimentar, com e sem bola.
Estava sempre perto da jogada, sempre oferecendo uma opção de passe, e fez todo mundo melhor.
Dobrava marcação no lateral, aparecia atrás dos volantes para oferecer um escape curto depois da roubada, passava pelo lado buscando o cruzamento e surgia na área para apoiar Pedro. Onipresente.
O papel do líder é esse: não apenas chamar a responsabilidade para si, mas apoiar aqueles a seu redor para que sejam melhores, para que entreguem tudo que podem.
O gol foi importante por mostrar um fator inesperado e fundamental: a força mental dos meninos, que não se desesperaram e foram para cima no lance seguinte.
Mas também destacou a importância do camisa 14. O ímã que existia entre ele e a bola.
O Flamengo não foi brilhante, mas não era dia de ser. Era dia de ser Flamengo. E foi. Jogou com segurança um jogo pra lá de desfavorável.
Por isso, o rubro-negro foi para a cama sorrindo, com aquela sensação de quem sabe, lá no fundo: “somos o Flamengo. Somos isso aí”
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Um pequeno país em um canto da Europa tem um peso surpreendente na forma como a gente pensa e sente o futebol. Saíram da Holanda algumas das ideias mais importantes para a nossa compreensão do esporte.
Se hoje falamos tanto em espaço no jogo, é muito graças aos holandeses.
Como já falei aqui, tive a honra e o privilégio de ser o tradutor do livro @Zonal_Marking, do grande Michael Cox, lançado em pré-venda na semana passada pela @EdGrandeArea.
O livro começa falando sobre a influência holandesa no futebol europeu do início dos anos 1990 através de seu principal clube — o Ajax — e de dois ex-jogadores e então treinadores — Cruyff e Van Gaal.
O mais interessante, no entanto, é o mergulho no modo de pensar holandês.
Por que o Flamengo goleia tanto? - PARTE 3: O QUE OS NÚMEROS DIZEM
Os números não são o jogo em si, mas ajudam a entender o que se passa dentro de campo. É preciso ter cuidado, colocar tudo em contexto, mas dá para entender muita coisa a partir deles. Vamos ao mergulho!
Dos 14 jogos disputados pelo Flamengo sob o comando de Renato Gaúcho, 7 foram pelo BR21 e 7 em competições de mata-mata (Libertadores e CdB). Como o time tem se comportado de maneira diferente, a ideia aqui é olhar para esses números de maneira separada.
Por que o Flamengo goleia tanto? - PARTE 2: PORTEIRA QUE PASSA BOI
Meu antigo professor de história tinha uma espécie de frase de efeito. Não importava o assunto que estávamos estudando, em algum momento ele sempre dava um jeito de dizer: "porteira que passa boi, passa boiada".
Nesta série, pretendo explorar por diferentes ângulos a rotina atual de goleadas do Flamengo. Na PARTE 1 (
), detalhei as mudanças de estilo trazidas por Renato Gaúcho até aqui. Hoje quero falar sobre os contextos criados dentro dos jogos.
O 4x0 em cima do Grêmio é um bom ponto de partida. No fim de um primeiro tempo bastante instável, o Flamengo perdeu Bruno Henrique por lesão e Isla recebeu o vermelho. Parecia um cenário terrível, se encaminhando para um segundo tempo sofrido.
Por que o Flamengo goleia tanto? - PARTE 1: CONTROLE E AGRESSIVIDADE
O assunto do momento é aquele: como o Flamengo consegue golear em jogos que nem parece estar dominando durante a maior parte do tempo?
Há muita coisa para falar, então decidi fazer uma série. Começa aqui!
De fato, é quase inacreditável.
Em 14 jogos desde a chegada de Renato Gaúcho, o Flamengo teve 12V 1E e 1D. Mais incrível que isso: fez 45 gols (3,2 por jogo) e sofreu 10 (0,71 por jogo)!
Das 12 vitórias, 8 foram por 3 gols de diferença ou mais.
É normal que um retrospecto como esse gere admiração, um certo choque e até mesmo confusão.
Primeiro, porque são números simplesmente altos demais. Quase impossíveis de se ver por aí — e de se manter no longo prazo.
Gabigol está imparável. Fez 7 gols nos últimos 5 jogos que disputou. Dois de pênalti (ele simplesmente não perde) e outros cinco gols com a bola rolando.
Todos seriam considerados fáceis. Mas será que são simples?
Além do segundo e do terceiro gol contra o Santos, há mais três nos dois jogos contra o Olimpia. Cinco gols depois da marca do pênalti, todos finalizados com apenas um toque! A marca de um artilheiro letal!
Em um mesmo lance, ele faz três, quatro, cinco movimentos. Sabe exatamente o momento em que o passe pode sair, sabe exatamente como os zagueiros tendem a se comportar.
Futebol não é sobre estar no lugar certo. É sobre chegar no lugar certo, na hora certa, do jeito certo.