Se ninguém perguntou até agora,eu pergunto:
Oq diabos seria esse “mecanismo da gangorra” da última thread(m… — #FísicaThreadBR (e obrigadíssimo pelo elogio =D) curiouscat.qa/nickfismat/pos…
O tema de hoje é o mecanismo de gangorra (seesaw mechanism) pra massas de neutrinos. Eu vou voltar essa discussão mais pros lados da thread que eu fiz há uns dias sobre Teorias de Grande Unificação
Falar de neutrinos envolve falar de Física de Partículas, que é uma das muitas áreas da Física que mistura Mecânica Quântica e Relatividade Restrita. Então vamos começar falando um pouco de Mec Quântica Relativística
Ali pelo começo/metade do século XX, o pessoal tava tentando juntar MQ e Relatividade Restrita, duas teorias TOP do começo do século, de um jeito que fizesse algum sentido
Um dos primeiros passos desse processo foi obter a chamada Equação de Klein-Gordon, que é essa equação aqui
Esse \phi (a bolinha cortada) representa a função de onda de uma partícula: grosso modo, é um número complexo que depende da posição e do tempo e que se vc calcular o módulo ao quadrado dá a densidade de probabilidade de encontrar a partícula
Ok, vamo falar em língua de gente
Essencialmente, é uma função que te permite calcular a probabilidade de encontrar a partícula em um certo lugar e em um certo instante
A Equação de Klein-Gordon é relativística, mas a gente também tinha uma versão não-relativística: a equação de Schrödinger
Esse d/dt (com d esquisitio) e esse triângulo ao quadrado da Eq de Schrodinger tão meio escondidos dentro do d^2 que tinha na Eq de Klein-Gordon (vou chamar de EKG, já que somos íntimos)
Mas tem uma diferença problemática
Aquele d^2 da EKG tá ao quadrado, enquanto o d/dt de Schrödinger não tá
Esses d e d/dt são derivadas: eles representam a variação do que quer que elas estejam derivando com relação a alguma coisa. Na EKG, com relação ao espaço-tempo como um todo (o espaço tá no triângulo da Eq de Schrödinger). Na eq de Schrödinger, o d/dt se refere ao tempo (t)
Em Schrödinger, você deriva com relação ao tempo uma vez. Na EKG, deriva duas vezes
Isso é um problema
Quando você deriva uma vez só, pra resolver a equação você precisa fornecer uma condição inicial: como o sistema começou?
Em Schrödinger, você fornece só uma função \phi(x,0) (tempo 0) e tá feito. Dá pra resolver. A função de onda conta tudo sobre o sistema num dado tempo
Em KG, você tem duas derivadas, e por isso precisa dar duas funções. Geralmente a gente vai dar \phi(x,0) e d\phi/dt (x, 0), por exemplo. A função e o como ela tá mudando logo no começo (como se fosse, >>>a bem grosso modo<<<, a posição e a velocidade iniciais)
Isso é uma diferença brutal entre Schr&odinger e KG: em Schrödinger, a função de onda diz _tudo_, mas em KG você precisa dar a função de onda e algo a mais
Não gostei dessa história não. Vamo fazer alguma coisa diferente
Muito antes de mim, alguém bem mais esperto do que eu (não é difícil) ficou incomodado com isso e decidiu resolver. Esse era o Dirac
Ele propôs uma equação assim
Esse i é o mesmo da Eq de Schrodinger, o m é o mesmo das duas equações de antes (a massa da partícula), os d_\mu representam derivadas no espaço-tempo e esses \gamma^\mu são coeficientes que a gente precisa determinar
Essa é a forma mais geral que a equação poderia ter. Por enquanto, é só um chute tão amplo quanto possível
Então falta determinar esses coeficientes aí. Que diabos eles são?
Bem, números eles não podem ser. Se os \gamma^\mu fossem números, eles iam apontar em alguma direção no espaço-tempo, que ia ser privilegiada. Até onde a gente sabe, o Universo não privilegia nenhuma direção no espaço-tempo, então isso não pode ser
Brincando um pouco com a cara dessa equação (não vou entrar nos detalhes, mas essencialmente você quer mostrar que ela dá parecido com KG), a gente descobre que precisam ser matrizes 4x4
Brincando mais com essa equação e as matrizes 4x4, você eventualmente descobre que essa equação descreve muito bem os férmions: ela prevê que você tá estudando uma partícula que tem spin 1/2
Spin é momento angular intrínseco: dá pra pensar, a grosso modo, que é como se a partícula estivesse girando. Grosso modo pq a partícula é pontual e ponto não gira, mas ela se comporta de um jeito como se tivesse girando
Não vou dar muita ênfase no 1/2 pq ele não vai ser importante a nível de divulgação (a nível mais técnico, ele justifica toda essa discussão auhsaus), a menos do fato que 1/2 é diferente de 0
Bacana, a gente tem então a Eq de Dirac, excelente pra descrever férmions. Inclusive, é com ela mesmo que a gente estuda quarks, elétrons e cia. ltda., por exemplo
Fast forward em vários anos de Física, a gente descobriu que MQR na real é uma coisa bem esquisita e dá muito problema, eventualmente decidindo abandonar em prol do que a gente chama de Teoria Quântica de Campos. Os detalhes das diferenças ficam pra outro dia (me cobrem auhsaush)
Pra tentar vocês a me cobrar, MQR prevê o próprio fim: ela é inconsistente com as próprias previsões. TQC resolve essas inconsistências ao custo de muitas ideias novas (e interessantíssimas)
Em particular, em TQC a gente quase nunca lida com as coisas tentando resolver essa ou aquela equação. As técnicas ficam diferentes e é mais conveniente expressar a Física por meio de uma Lagrangeana
Eu adoro a ideia de Lagrangeana: é uma função que codifica toda a Física do sistema. Como as partículas se movem, como interagem e tudo mais. Quer colocar uma nova interação? Soma um termo!
A Lagrangeana que descreve a equação de Dirac é essa aqui
Esse \psi com uma barra tá relacionado ao \psi usual. É como se fosse o conjugado complexo (bem, é isso mesmo, mas tbm tem uma transposição de matriz e multiplica pela matriz \gamma^0 à direita (detalhes))
Dá pra escrever isso de um jeito mais conveniente
Lembra que eu comentei que o importante sobre spin pra gente era que 1/2 é diferente de 0? Pois é
A gente sabe que o férmion tá sempre "girando" com spin 1/2. Ele pode estar girando pra esquerda ou pra direita. A gente chama isso de helicidade
Se ele gira do mesmo jeito que os dedos da sua mão direita, onde o dedão aponta na direção que ele tá andando, a gente fala que é de mão-direita. Do contrário, mão-esquerda
Como isso depende de pra onde ele tá se mexendo, depende de referencial. Alguém que tá andando mais rápido que um férmion de mão-direita vai ver ele como sendo de mão-esquerda
Porém, a gente consegue definir um conceito parecido, chamado quiralidade, que não tem esse problema de depender de referencial, e ele coincide com a helicidade pra partículas sem massa
Tudo isso pra falar: a gente pode descrever em separado a parte do férmion que gira pra esquerda e a que gira pra direita
Aquele psi tinha 4 componentes (afinal, ele tava sendo multiplicado pelas matrizes gamma, que são 4x4). A parte esquerda vai ter 2 e a direita outras 2
Isso parece meio bobo, né? Pq alguém ia querer fazer isso?
De modo curto: porque as interações fracas (que são responsáveis por decaimentos e coisas do tipo) tratam férmions de mão-esquerda e de mão-direita de jeitos diferentes
As interações fracas gostam muito mais de férmions de mão-esquerda. Em particular, no Modelo Padrão, você tem um neutrino de mão-esquerda, mas o neutrino de mão-direita não interage com ninguém
No que tange o Modelo Padrão, ele essencialmente não existe
Dito isso, separando em esquerda (L = left) e direita (R = right), a Lagrangeana de Dirac vira
Os termos com as gammas e as derivadas descrevem como os férmions se mexem. A gente chama de termos cinéticos. O outro pedaço, que tem o m, é o termo de massa
A gente não vai mexer no termo de massa, então eu não vou ficar escrevendo ele. A gente tá interessado nesse pedaço aqui
A história não acaba aí. Eventualmente, o Majorana percebeu que a Eq de Dirac não era a única possibilidade pra descrever os férmions. Também dava pra tentar algo assim:
Hoje em dia essa aí é a Equação de Majorana. Esse \psi_c é um conjugado de carga do \psi: é trocar o férmion pelo antiférmion. Troca o elétron pelo pósitron, o quark pelo antiquark, o neutrino pelo antineutrino
Isso dá problema pra vários férmions: se o férmion tiver carga (como o elétron, os quarks, etc), o \psi e o \psi_c tem cargas elétricas diferentes, então não rola
Mas se o férmion for neutro...
Pro neutrino, essa equação pode funcionar muito bem! Comparando com a eq de Dirac, a gente vê que o termo cinético é exatamente igual, a única diferença é o termo de massa
Vale mencionar ainda que se \psi é de mão-esquerda, \psi_c é de mão-direita. Colocar o c troca a orientação
Dito isso, o termo de massa de Majorana vai ser assim
Esse C grandão é uma matriz que aparece na definição do \psi_c. Dessa vez eu escrevi o c em cima por conveniência (na real eu esqueci de conferir a consistência da notação antes de postar o tweet de antes, mas detalhes)
No caso, essa equação aí é pro neutrino de mão-direita, que não aparece no Modelo Padrão (\psi_L^c é de mão direita). Tbm dá pra escrever pro de mão-esquerda (só tirar os c dos \psi), mas o mecanismo de gangorra que eu quero mostrar não usa isso
As fórmulas tão ficando complicadas, então vamos dar uma pausa e lembrar um pouco das coisas de Grande Unificação que eu falei na outra thread
O mais importante era: dá pra enfiar o Modelo Padrão dentro de uma teoria maior baseada num tal de grupo SU(5) - que a gente discutiu bastante
Além disso, dá pra enfiar o SU(5) dentro de uma teoria maior, com o SO(10)
O que eu não contei é que quando você coloca o SU(5) dentro do SO(10), você consegue colocar todos os férmions do Modelo Padrão, mas sobra um lugar vazio pra alguém que não interage com SU(5)
E quem não interage com SU(5) e a fortiori não interage com o Modelo Padrão??
O neutrino de mão-direita!
Como em SO(10) apareceu um neutrino de mão-direita, a gente pode colocar uns termos dele no meio da Lagrangeana
É como eu tinha falado: quer colocar uma interação nova? Põe um termo a mais!
No caso, a gente quer dar massa pro neutrino. Podemos escolher entre Majorana, Dirac ou só misturar os dois =)
Como o neutrino de mão-direita não interage com ninguém, a gente consegue colocar um termo de Majorana igual o que eu escrevi agora há pouco
Esse vai dar uma massa que a gente vai denotar por M. Como ele é "transparente" pro SU(5), essa massa tem que ser por volta da energia em que o SU(5) vale. Olhando na thread de antes, isso é pelo menos umas 10¹¹ vezes a massa do bóson Z
Além disso, a gente pode usar o neutrino de mão-direita pra colocar uma massa de Dirac, m, no neutrino. O termo de Dirac quebra a simetria SU(2) x U(1). Isso é um jeito desnecessariamente complicado de falar que m tem que ser perto da massa dos quarks e léptons
Por completeza, a massa do elétron (que é um lépton), é por volta de m_e ~ 5.6 x 10⁻⁶ M_Z (ou seja, bem mais leve que o bóson Z)
O que importa é: m é leve, mas perto da massa do elétron, enquanto M é pesado pra caralho (tipo, PESADO MESMO)
Massa de Majorana pro neutrino be like:
Juntando os dois termos, a gente fica com uma expressão assim pro trecho de massa de neutrinos da Lagrangeana
Vc tem ali as massas de Dirac, m, e a de Majorana, M. O h.c. no final quer dizer "Eu sei que o que eu escrevi é um número complexo e devia ser um número real. Soma o conjugado pra resolver esse problema" (é mais fácil escrever h.c. do que o conjugado)
Dessa vez eu escrevi \nu ao invés de \psi pq a gente tá interessado só nos neutrinos mesmo
A matriz no meio descreve como são as massas dos neutrinos. Se ela fosse diagonal, o neutrino (1 0) ia ter a massa no canto superior esquerdo e o (0 1) ia ter a do canto inferior esquerdo. Porém, ela não é diagonal
Isso é mais uma vez a história da superposição. Eu discuti isso em um contexto um pouco diferente na outra thread de neutrinos
Pra conseguir ler as massas dos neutrinos, a gente precisa achar quais são as setinhas diagonais que correspondem a estados com massa definida. Os neutrinos de mão-esquerda e direita não tem massa definida. Os neutrinos de massa definida não tem mão definida
Se você fizer as contas, você vai descobrir que, como M >> m, os neutrinos com massa definida respeitam isso aqui
O primeiro estado de massa definida, \nu_1, é uma setinha diagonal que tá QUASE deitada. Na prática, é essencialmente um neutrino de mão-esquerda. A massa é da ordem de m^2/M
O segundo estado, \nu_2, é uma setinha diagonal que tá QUASE em pé. É essencialmente um neutrino de mão-direita. A massa é da ordem de M
Agora lembra que m era leve e M era pesadão? Isso quer dizer que m^2/M é MUITO leve. Extremamente leve
Assim como os neutrinos de mão-esquerda que a gente observa na natureza
Por outro lado, M era super pesado, e portanto o neutrino de mão-direita tá saindo muito pesado dessa história
Isso explicaria porque a gente não vê neutrinos de mão-direita dando sopa: eles são muito pesados, e você precisa de muita energia pra ver partículas pesadas
Em particular (hehe), os experimentos que a gente tem chegam a cerca de 100 M_Z e olhe lá. O neutrino de mão direita precisaria de pelo menos 100 000 000 000 M_Z
É. Falta um pouco
Isso é (um exemplo de) o que a gente chama de mecanismo de gangorra (seesaw mechanism): você tem um neutrino super pesadão que deixa o outro super levinho
Claro, uma coisa importante: essa explicação de pq a gente não vê o neutrino de mão-direita, pq o neutrino é tão leve e tudo mais é só uma hipótese. Isso tudo ainda é um problema aberto em Física de Partículas e o que eu tô mostrando é só um dos jeitos que você pode abordar
Outras opções são colocar só a massa de Dirac (faz M=0 naquela matriz), só a de Majorana (m=0), colocar um termo de Majorana pro neutrino de mão-esquerda (troca aquele 0 da matriz por um M_L) e por aí vai
Qual opção tá certa? Ninguém sabe. Já faz uns vinte e tantos anos que a gente sabe que os neutrinos tem massa, mas até hoje a gente não faz ideia de como são essas massas
E é aí que você entra ;D
Por fim, vou deixar aqui minhas referências principais pra essa thread. Como usual, os acertos são deles, os erros são meus
Mecânica Quântica Relativística
Essa parte na real eu fiz de cabeça, mas vou deixar uma sugestão de leitura
- Langacker, P. The Standard Model and Beyond (Boca Raton: Taylor & Francis, 2017)
- Zee, A. Quantum Field Theory in a Nutshell (Princeton: Princeton University Press, 2010)
~TQC eu tbm fiz de memória, mas o Zee é uma referência excelente
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A few years ago my dad was asking me whether I learn things about how a car works and stuff like dad (I'm a physicist and mentioned I was studying Mechanics)
Nowadays I think my parents and brother kinda know what I do, tho
I eventually described to them beginning with "I try to figure out what things are made of and why do they fall" and them kept adding more and more detail until I described the general idea of my MSc project
~"the general idea of", because me and my advisor still haven't written the details lol
Eu tô há uns dias pensando sobre isso e acho que, de maneira um pouquinho precipitada, eu já quero revisitar meus antigos planos e ver no que eles deram (como se eu já não tivesse feito isso sem tweetar asuhausahsua)
Já acreditou em Deus? Se sim, por que e quando deixou de acreditar? — Eu cresci evangélico e tive alguns momentos extremamente religiosos ao longo da vida. Até hoje eu acho que carrego alguns dos valores de Cristo em m… curiouscat.qa/nickfismat/pos…
Assim, eu gosto da visão de que ateísmo não é só sobre se deus existe ou não, mas sim sobre se vale a pena adorar a um deus
Em termos de teoria dos jogos, você só tem a ganhar se acreditar em deus. Se ele existe, você obtém felicidade eterna no paraíso, se não existe você tem apenas um incômodo finito. Se você não acredita, paz finita se não existir, danação eterna se existir
Nunca quis ser jogador de futebol ou algum outro esportista? — Acho que já passou pela minha cabeça algumas vezes, mas nunca de um jeito muito profundo curiouscat.qa/nickfismat/pos…
Tipo, eu tenho TOC. De tempos em tempos eu desenvolvo uma obsessão temporária com alguma coisa (acho que um termo genérico pra descrever é fogo de palha). Já teve algumas vezes que esse interesse obsessivo teve algum tipo de esporte como objeto e nessas épocas eu pensei +
sobre a possibilidade de virar atleta ou algo do tipo