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May 13, 2021 22 tweets 7 min read Read on X
Clóvis Moura, Florestan Fernandes e os sentidos do 13 de Maio

Nesta mesma data, em 1888, a escravidão era abolida no Brasil. Perguntas rondam o evento. Qual a participação dos negros? Houve um abandono após a Lei Áurea?

Segue fio para pensar a partir de Clóvis e Florestan:👇🏾
A partir dos anos 50, ambos autores são fundamentais para romper com o modelo culturalista de interpretação do escravismo. Com isso, não só confrontam a visão da singularidade brasileira, "escravidão branda", como articulam uma perspectiva estrutural do fenômeno. 👇🏾
Em suas análises, o imbricamento entre raça e classe é central e os faz convergir em três aspectos.

1. O desenrolar do escravismo no Brasil está conectado ao desenvolvimento do capitalismo mundial. Acumulação no Norte global e escravidão negra são partes do mesmo sistema.👇🏾
Assim, a escravidão é base e determinante do que Florestan chama de "revolução burguesa" no Brasil, expressa na dinamização econômica, urbanização e desenvolvimento institucional em torno do ciclo do café. Ou seja, o núcleo da modernização nacional é a hiperexploração do negro.👇🏾
2. Clóvis e Florestan apresentam a população negra como dinamizadora da sociedade escravocrata. O negro é o grande responsável pela produção de riqueza do Brasil independente. Articula-se uma visão que o retira da penumbra histórica ou culturalista para alçá-lo a sujeito. 👇🏾
3. Ambos constroem uma interpretação materialista do mito da democracia racial. A ideologia nacional de "um país sem conflitos entre brancos e negros" surge para acomodar a arcaica ordem senhorial diante da desagregação da escravidão, entre o final do XIX e início do XX. 👇🏾
Bom, perfeito, mas e o 13 de maio, o que Florestan e Clóvis têm a dizer? Aí as divergências entre os dois surgem. E mais interessante do que vê-las apenas como mera cisa entre intelectuais, tais desacordos evidenciam modelos distintos de interpretação da formação brasileira. 👇🏾
1. A dinâmica da escravidão

Florestan elege como palco do processo político a sociedade civil liberal. São os entrechoques dentro da classe dominante, somados às dinâmicas econômicas, que definem as características e o devir da escravidão no Brasil. 👇🏾
Clóvis discorda radicalmente disso. Para ele, o verdadeiro núcleo da política no escravismo é o antagonismo estrutural entre senhores e escravos. São os processos de negação impelidos por quilombos, rebeliões e protestos negros que dinamizam e transformam a história do Brasil. 👇🏾
2. A Abolição

Para Florestan, a Abolição foi um "processo de branco para branco", dirigia pela elite do café e sem participação massiva dos negros. Esses, quando participaram, foram meros instrumentos dos brancos, sem projeto, ação coletiva e tomada de consciência. 👇🏾
Sem a participação negra e com coesão das elites, a transição do escravismo foi feita sem vacilos, com a elaboração de uma estrutura política que, ao mesmo tempo, abolia o trabalho escravo, mas favorecia os senhores do café, a exemplo do imigrantismo e do fomento agrícola. 👇🏾
Clóvis também discorda dessa visão. Para ele, as rebeliões negras sempre desgastaram a ordem social, criando fissuras de resistência, gerando prejuízo aos senhores e articulando o horizonte moral da liberdade. Assim, foram elemento constitutivo da derrocada da escravidão. 👇🏾
3. Pós-13 de Maio e a emergência do trabalho livre

Para Florestan, como o negro não participou decisivamente da Abolição, ele não adquiriu consciência, não aprendeu "a ter cabeça". Assim, a história andou para frente, mas ele continuou preso ao passado, à condição de escravo. 👇🏾
"Abandonados à própria sorte" e ainda presos mentalmente ao antigo sistema, os negros perderam na competição com os brancos europeus. Esses eram mais disciplinados, afeitos à poupança e moralmente aptos ao trabalho livre, sendo escolhidos, por essas razões, pelos patrões. 👇🏾
Essa diferença inicial no pós-Abolição, explicaria, para Florestan a desigualdade racial existente no Brasil do séc. XX.

Clóvis vai no caminho oposto. Os negros não "foram abandonados à própria sorte", pois houve a montagem de uma arquitetura estatal antinegra desde o XIX.👇🏾
O Estado brasileiro (com o imigrantismo, o eugenismo, a Lei de Terras, normas penais, gentrificações urbanas e etc.) agiu positivamente para excluir e massacrar o negro na transição e no pós-escravismo. Não houve a "ausência de Estado", mas sim a presença de um Estado racista. 👇🏾
Mais, diferentemente de Florestan, Clóvis aponta como o negro já estava integrado e apto a exercer os postos de trabalho existentes na sociedade brasileira. Inclusive, era mais capaz que o branco europeu. O que acontece é uma exclusão racialmente organizada entre o XIX e o XX. 👇🏾
Neste sentido, não é a incapacidade ou o abandono do negro no pós-13 de maio que explica a desigualdade racial no Brasil: é o racismo e a sua funcionalidade dentro do capitalismo.

Inclusive, Clóvis aponta como sociólogos ajudaram a legitimar esse processo: 👇🏾
Como se nota, há um pequeno desacordo na base. Para Florestan, o negro é sujeito histórico, mas apenas no âmbito econômico. Para Clóvis, ele é ator econômico e, sobretudo, político. Dessa divergência fundamental, emergem formas bastante distintas de abordar a nossa história. 👇🏾
Na data de hoje, retomar esses clássicos é de suma importância. Não só para lembrar, em tempos de modismos, que muita coisa importante sobre raça, classe, escravidão e modernidade foi escrita no Brasil, mas como elas continuam a balizar nossa memória histórica e senso comum. 👇🏾
Ademais, em tempos de centenário dos autores, com reedição de suas obras, é fundamental o resgate e o reavivamento do debate. Mas com senso crítico, especialmente numa país tão acostumado a reduções apologéticas ou interpretações superficiais, especialmente qnd se fala de raça.👇🏾
Ficou curioso é quer saber mais do assunto? A thread é baseada em artigo recém publicado, onde aprofundo a análise. O texto está em um dossiê maravilhoso sobre capitalismo e racismo. Recomendo muito!

revistas.marilia.unesp.br/index.php/RFM/…

Que siga o bom debate!

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