Clóvis Moura, Florestan Fernandes e os sentidos do 13 de Maio
Nesta mesma data, em 1888, a escravidão era abolida no Brasil. Perguntas rondam o evento. Qual a participação dos negros? Houve um abandono após a Lei Áurea?
Segue fio para pensar a partir de Clóvis e Florestan:👇🏾
A partir dos anos 50, ambos autores são fundamentais para romper com o modelo culturalista de interpretação do escravismo. Com isso, não só confrontam a visão da singularidade brasileira, "escravidão branda", como articulam uma perspectiva estrutural do fenômeno. 👇🏾
Em suas análises, o imbricamento entre raça e classe é central e os faz convergir em três aspectos.
1. O desenrolar do escravismo no Brasil está conectado ao desenvolvimento do capitalismo mundial. Acumulação no Norte global e escravidão negra são partes do mesmo sistema.👇🏾
Assim, a escravidão é base e determinante do que Florestan chama de "revolução burguesa" no Brasil, expressa na dinamização econômica, urbanização e desenvolvimento institucional em torno do ciclo do café. Ou seja, o núcleo da modernização nacional é a hiperexploração do negro.👇🏾
2. Clóvis e Florestan apresentam a população negra como dinamizadora da sociedade escravocrata. O negro é o grande responsável pela produção de riqueza do Brasil independente. Articula-se uma visão que o retira da penumbra histórica ou culturalista para alçá-lo a sujeito. 👇🏾
3. Ambos constroem uma interpretação materialista do mito da democracia racial. A ideologia nacional de "um país sem conflitos entre brancos e negros" surge para acomodar a arcaica ordem senhorial diante da desagregação da escravidão, entre o final do XIX e início do XX. 👇🏾
Bom, perfeito, mas e o 13 de maio, o que Florestan e Clóvis têm a dizer? Aí as divergências entre os dois surgem. E mais interessante do que vê-las apenas como mera cisa entre intelectuais, tais desacordos evidenciam modelos distintos de interpretação da formação brasileira. 👇🏾
1. A dinâmica da escravidão
Florestan elege como palco do processo político a sociedade civil liberal. São os entrechoques dentro da classe dominante, somados às dinâmicas econômicas, que definem as características e o devir da escravidão no Brasil. 👇🏾
Clóvis discorda radicalmente disso. Para ele, o verdadeiro núcleo da política no escravismo é o antagonismo estrutural entre senhores e escravos. São os processos de negação impelidos por quilombos, rebeliões e protestos negros que dinamizam e transformam a história do Brasil. 👇🏾
2. A Abolição
Para Florestan, a Abolição foi um "processo de branco para branco", dirigia pela elite do café e sem participação massiva dos negros. Esses, quando participaram, foram meros instrumentos dos brancos, sem projeto, ação coletiva e tomada de consciência. 👇🏾
Sem a participação negra e com coesão das elites, a transição do escravismo foi feita sem vacilos, com a elaboração de uma estrutura política que, ao mesmo tempo, abolia o trabalho escravo, mas favorecia os senhores do café, a exemplo do imigrantismo e do fomento agrícola. 👇🏾
Clóvis também discorda dessa visão. Para ele, as rebeliões negras sempre desgastaram a ordem social, criando fissuras de resistência, gerando prejuízo aos senhores e articulando o horizonte moral da liberdade. Assim, foram elemento constitutivo da derrocada da escravidão. 👇🏾
3. Pós-13 de Maio e a emergência do trabalho livre
Para Florestan, como o negro não participou decisivamente da Abolição, ele não adquiriu consciência, não aprendeu "a ter cabeça". Assim, a história andou para frente, mas ele continuou preso ao passado, à condição de escravo. 👇🏾
"Abandonados à própria sorte" e ainda presos mentalmente ao antigo sistema, os negros perderam na competição com os brancos europeus. Esses eram mais disciplinados, afeitos à poupança e moralmente aptos ao trabalho livre, sendo escolhidos, por essas razões, pelos patrões. 👇🏾
Essa diferença inicial no pós-Abolição, explicaria, para Florestan a desigualdade racial existente no Brasil do séc. XX.
Clóvis vai no caminho oposto. Os negros não "foram abandonados à própria sorte", pois houve a montagem de uma arquitetura estatal antinegra desde o XIX.👇🏾
O Estado brasileiro (com o imigrantismo, o eugenismo, a Lei de Terras, normas penais, gentrificações urbanas e etc.) agiu positivamente para excluir e massacrar o negro na transição e no pós-escravismo. Não houve a "ausência de Estado", mas sim a presença de um Estado racista. 👇🏾
Mais, diferentemente de Florestan, Clóvis aponta como o negro já estava integrado e apto a exercer os postos de trabalho existentes na sociedade brasileira. Inclusive, era mais capaz que o branco europeu. O que acontece é uma exclusão racialmente organizada entre o XIX e o XX. 👇🏾
Neste sentido, não é a incapacidade ou o abandono do negro no pós-13 de maio que explica a desigualdade racial no Brasil: é o racismo e a sua funcionalidade dentro do capitalismo.
Inclusive, Clóvis aponta como sociólogos ajudaram a legitimar esse processo: 👇🏾
Como se nota, há um pequeno desacordo na base. Para Florestan, o negro é sujeito histórico, mas apenas no âmbito econômico. Para Clóvis, ele é ator econômico e, sobretudo, político. Dessa divergência fundamental, emergem formas bastante distintas de abordar a nossa história. 👇🏾
Na data de hoje, retomar esses clássicos é de suma importância. Não só para lembrar, em tempos de modismos, que muita coisa importante sobre raça, classe, escravidão e modernidade foi escrita no Brasil, mas como elas continuam a balizar nossa memória histórica e senso comum. 👇🏾
Ademais, em tempos de centenário dos autores, com reedição de suas obras, é fundamental o resgate e o reavivamento do debate. Mas com senso crítico, especialmente numa país tão acostumado a reduções apologéticas ou interpretações superficiais, especialmente qnd se fala de raça.👇🏾
Ficou curioso é quer saber mais do assunto? A thread é baseada em artigo recém publicado, onde aprofundo a análise. O texto está em um dossiê maravilhoso sobre capitalismo e racismo. Recomendo muito!
Entre críticas e elogios, algo que tem passado ao largo dos debates sobre as indicações do presidente é de como a cultura jurídica brasileira ainda é constituída pela lógica da corte, dos medalhões, do puxa-saquismo e das relações pessoais. 👇🏾
Aqui não se trata de uma crítica moralista a essa dinâmica patrimonialista, em que as indicações ao STF e à PGR foram definidas a portas fechadas a algumas quadras da Esplanada, mas sim ao lugar funcional que ela ocupa na reprodução da nossa economia política senhorial. 👇🏾
Depois de anos de law fare, de Lava Jato e de golpes avalizados por ministros do Supremo (que hoje se apresentam como salvadores da democracia), pensei que haveria chance da esquerda retomar suas críticas históricas ao bacharelismo e ao estamento burocrático.👇🏾
Na Copa de 1938, encantados pelo futebol da seleção brasileira, os franceses disseram que os jogadores pareciam bailarinos. Leônidas da Silva, chamado de acrobata e malabarista pela imprensa européia, faria uma correção: não era balé, era samba. Miudinho. Pernada negra. Capoeira.
Aliás, a performance do Brasil na França, em 1938, é um daqueles momentos decisivos na construção do imaginário nacional. Gilberto Freyre se valeria dela para publicar o seu famoso texto "Football Mulato", talvez o artigo esportivo mais influente da nossa história.
Cinco anos depois da publicação de "Casa-Grande e Senzala", o futebol vistoso da seleção brasileira, praticado sobretudo por jogadores negros e "mulatos", seria uma comprovação das teses da mestiçagem, da harmonia racial e do caráter dionisíaco da sociedade brasileira.
Enquanto bolsonaristas fanatizados agridem ministros do STF e causam arruaça mundo afora, o senhor Dias Toffoli fala em passar uma borracha no passado (que ainda é presente). Não basta ser péssimo jurista, paraquedista profissional e néscio exemplar, tem que ser covarde também.
Há todo um campo de estudos e de intervenção política sobre como instituições e o direito devem lidar com o passado e crimes perpetrados por agentes de Estado. Naturalizar esse tipo de fala é legitimar o rebaixamento do debate público, fazendo da burrice negacionista senso comum.
E como típico de todo jurista a serviço do autoritarismo, encobre suas posições valendo-se da retórica ornamental e do discurso supostamente técnico, pois não tem coragem de se assumir publicamente
Nas análises sobre a ascensão da direita no Brasil, chama a atenção a ausência da consideração séria do fator racial e da nossa história profunda. Será que o passado escravocrata é capaz de reposicionar o olhar?
Segue o fio🧵👇🏾
A thread apenas levanta hipóteses e temas de diálogo. O intuito é colocar sob suspeita análises que tomam o Brasil como um país aparentemente nascido no século XX, que marginalizam o racismo ou que nos enxergam apenas como receptores de ideias e movimentos surgidos fora daqui. 👇🏾
1) Dinâmica escravista e base social
Como apontam Alencastro, Marquese e Parron, o caráter negreiro da escravidão brasileira travejou um tipo de sociedade particular, a qual atrelou a expansão da liberdade e da cidadania à expansão da escravidão. 👇🏾
Como estava conversando com @EvandroPiza hoje, não pensar a branquidade por trás dos atos criminosos dos bolsonaristas nas últimas 24 horas é mais uma evidência da nossa incapacidade de pensar a relação entre raça e autoritarismo no Brasil.
Identificação messiânica da "ralé branca" com seu "líder antissistema"; cruzamento de raça e região na radicalização do ressentimento; precipitação da concepção senhorial de liberdade no quase linchamento de um negro na véspera da eleição; patriotismo armado da casa-grande.
É fascismo. Mas, antes de tudo, é racismo, daqueles bem brasileiro. Brancos atacando quilombolas à beira da estrada deveriam nos dizer algo mais sobre o componente racial dos atos e, especialmente, dos sentidos do bolsonarismo - o que ele desperta e o que possibilita sua força.
Lula encerrou o discurso falando do Brasil como causa. Lembrou Darcy Ribeiro, que teria uma frase perfeita para essas eleições:
"Conheço bem o povo brasileiro. Posso dizer a vocês que não só a terra é boa como o povo é ótimo. O ruim aqui são os ricos, os 'bonitos', os educados."
O Brasil de Lula e Darcy é um Brasil maravilhoso. Que bom que ele está de volta, como também falado no discurso ontem.
Vira e mexe cito por aqui o texto dessa citação do Darcy. Chama-se "Universidade para quê?". De 1985, é o discurso para a posse de Cristovam Buarque como primeiro reitor da UnB democraticamente eleito após os anos de Ditadura Militar.