Quanto mais eu acompanho a cena política brasileira, mas eu percebo que o caminho que deveríamos nos aprofundar está na tradição rebelde, clandestina das rebeliões de povos que vivemos, sobretudo, no século XIX e início do XX. Elas guardam algo que seria fundamental hoje.+
Uma moral elevadíssima de um povo sujeitado pela escravidão, mas que se rebelava apesar de todos os riscos. Não existia nem esboço do estado de direito. A tortura, a degola, a execução em campo e o enforcamento eram a prática do Estado brasileiro contra seu povo.+
E como ousavam resistir diante de todos estes riscos? É que o mundo dos povos apesar de violentado, carregava suas cosmovisões como uma extensão do corpo até o território, as águas, as matas, os parentes, os seres que ali viviam. Esta sabedoria formavam a gente para a guerra.+
Ou seja, o colonizador impunha sua cultura com base na violência e os povos se subalternizaram diante do poder de fogo destes, mas não se pode dizer que acreditavam na palavra do colonizador, em suas tramas. A consciência da enganação da cultura branca era poderosa.+
Em silêncio (nem sempre) se costuravam resistências às mentiras coloniais. Uns iam via resistência sub-reptícia, outras planejavam aquilombar, outros uma rebelião... o certo é que se tramava contra o domínio, o poder. E hoje não tramamos mais. Hoje aceitamos as regras deles.+
Toda vez que renovamos nossa fé na eleição ou no STF estamos ao mesmo tempo desarmando a rebelião e aceitando a verdade do branco, do colonizador, do invasor, do escravizador. Toda vez que paramos de tramar, eles podem planejar melhor nosso cativeiro.+
A trama, a confabulação, o silêncio estranho dos subalternos é o que cria o receio de avançar com o domínio colonial. Quando os corredores sussurravam, os escravagistas temiam piorar as condições de violência, achavam que uma rebelião estava à espreita. Se preservava.+
Então eu vejo dois problemas centrais: o primeiro que não matemos a trama, a confabulação, uma estratégia de longo prazo para além das marés conjunturais que existem também para nos enganar; segundo que eles param de nos respeitar como sujeitos porque não há ameaça ao seu mando.+
Só que não estou falando para aquecer o coração de foquistas, amantes das armas e pessoas que confundam a tarefa revolucionária com a violência revolucionária. Estou falando para dizer, este conteúdo que era tramado tinha profunda conexão com a visão de mundo dos povos.+
Uma rebelião no engenho ou mesmo um Levante como os Malês tinham datas especiais que carregavam a sabedoria daquele povo. A inspiração da espiritualidade que forjou a revolução no Haiti é diferente daquela do Contestado, mas mobilizaram a libertação dos povos.+
Este conteúdo sutil, fino, espiritual, que está mais no campo das tradições populares foi o fundamento de muita luta. Ele existe ainda hoje - cada dia menos, é verdade - mas ainda é possível aprendermos parar erguer nossa trama, nossa confabulação que faz tremer o poder de cima.+
Essa é a linguagem que o poder mesmo enviando bons antropólogos para investigar não conseguirá decodificar, não conseguirá registrar em suas capturas de metadados, tampouco compreender os fundamentos. Quem raspou a cuia sabe o segredo, quem tira foto de satélite vê só a cabaça.+
Isto não é um apelo a abandonar o pensamento crítico que nos serva na luta contra o capitalismo. É sobre uma outra postura. É sobre um silêncio ameaçador. Sobre nos voltarmos para nós. Construirmos nossas formas de alçar a grande luta. Aprender com os mais velhos.+
Sobretudo aprender com as mais velhoa que as nossos mais velhas, a própria história. Se cabanos, Balaiada, Canudos, Palmares, os recantos contestados se rebelaram em conjunturas muito mais severas que a nossa... acho que temos algo que colher ali para fazer o medo mudar de lado.
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Vou fazer 38 anos esse ano. Minha luta política começou há 20 anos. Fazem exatos 21 anos que se repete a ladainha que se a gente não apoiar o PT a direita volta. São duas décadas de obliteração da crítica. Mas detalhe: sem nenhuma propositura de caminho de transformação radical.+
Nem a esquerda obliterada de crítica conseguiu erguer um novo caminho, tampouco os gestores da miséria (governos progressistas) conseguiram criar uma experiência fortalecimento político da classe trabalhadora. Não estou falando de política pública, mas de politização da base.+
Nessas duas décadas nós vimos a direita se militarizar, se organizar, estruturar novos caminhos políticos, produzir seus conteúdos e seus intelectuais, aprofundar a ação política ao ponto de tentar golpe. Do nosso lado restou a defesa da ordem. Eis o imobilismo político.+
A cura no coletivo. Uma vez no ápice do processo persecutório do governo bolsonarista, eu falei aqui que se tivesse que fugir, fugiria pra dentro do Brasil. Cada vez mais próximo de nossa gente. Hoje eu queria falar um pouco de cura através do coletivo de luta.+
Nos últimos tempos no meio de um processo interno muito sofrido, acabei desenvolvendo uma paralisia facial parcial (chamada Paralisia de Bell) no lado direito do rosto. Doença esquisitíssima, chata de lidar e conviver, sem muitas certezas sobre o período de cura.+
Depois daquele leve desespero e da certeza de que embora grave seria possível lidar com ela, veja... eu tomei todos os cuidados médicos e fisioterapêuticos. Mas vim pra uma comunidade, um território, ajudar minha gente um pouco e receber seu carinho, afeto, seu cuidado.+
Essa violência de Israel e o clamor por direito e justiça da Palestina lembra muito que esse tipo de violação é muito comum aqui. Nós vimos inumeráveis vezes o Estado atacar comunidades e os mecanismos de justiça ignorar o clamor enquanto o povo seguia sendo assassinado.+
O chocante do caso israelense é a disposição ao extermínio palestino com todas as câmeras voltadas para si, à luz do dia. E, bem, sabemos que só faz isso quem tem muito poder, costas quentes, e ataca gente tão desvalorizada que não valeria o sangue de gente solidária.+
Disso sabemos bem. Desde que organizações pretas começaram a falar de genocídio preto nas periferias, os organismos de direitos humanos vai de um "não exagere" até um "deixe disso, não é o momento". Afinal, são pretos na periferia. E ali a punição coletiva é a regra.+
Saiu minha reflexão sobre junho de 2013 no lançamento do @alamedainst . Eu partir da marcha contra o genocídio preto feita pela @reajanasruas para mostrar que nem toda marcha foi difusa e não acumulou politicamente. A gente precisa ir para além da conjuntura.+
Para fazer essa reflexão eu mostro que invés de ensinar ao povo, temos que aprender com quem está na luta ao rés do chão. E para isso convoco a experiência do comando vital da Reaja, Dra. Andreia Beatriz, com quem podemos aprender grandes lições.+
Algumas ideias para anotarmos:
- nem toda marcha de 2013 foi dispersa, excessivamente plural e com riscos de captura pela direita.
Como a direita capturaria o debate sobre o genocídio do povo preto? Havia ali programa, organização e base social sólida.+
Boa parte das grandes lutas populares no Brasil tiveram componente de religiosidade popular. E para mim o componente religião não é o aspecto principal. Eu vejo na experiência espiritual e na formação de uma nova conduta ética o mourão que as sustentava. Mas como estudar isso? +
Como historiador dá para ver o quanto é muito difícil acessar o conteúdo espiritual dessas grandes lutas e rebeliões. Outro dia tinha historiador preto negando a existência de Maria Felipa só para provar que tinha retidão metodológica ou coisa que valha. É complicado.+
E aí só vivendo algumas coisas para a gente ter a noção desses aspectos. Só a gente conhecendo as pessoas para ouvir as memórias, conhecer as práticas e ver como essas histórias e uma conduta espiritual e ética de superação seguem vivas ali e acolá na luta popular.+
Um dos maiores erros políticos do debate da reivindicação das identidades ancestrais (que ocorre mais entre nós negros) é que a busca por um passado glorioso pré-escravidão atlântica não tem tardado a reivindicar contra-exemplos de libertação dos povos. +
O caso da reivindicação do Egito ou Kemet é o mais emblemático, mas não é o único. Qual é a necessidade política de demandar que uma ocupadora, usurpadora, colonizadora seja representada como negra? Criar um lugar de representatividade na violação, na violência?+
Os zapatistas dão uma importante lição à essa respeito: "Nós zapatistas NÃO queremos voltar a esse passado, nem só, nem muito menos de mãos dadas a quem quer semear o rancor racial e pretende alimentar seu nacionalismo tresnoitado com o suposto esplendor de um império, o asteca,+