Lima Barreto, furtos de bicicleta e os inocentes de Botafogo
Negro e suburbano, vivendo o racismo institucionalizado da Primeira República, o escritor Lima Barreto tinha uma relação ácida com os bairros ricos e brancos do Rio de Janeiro. Entre eles, um em especial: Botafogo. 👇🏾
Bairro do mais recente e famoso ladrão de bicicletas do Brasil (o branco Igor Pinheiro), Botafogo expressava o descompasso da nossa modernização, esculpida no concreto urbano. Preto sai (para as periferias), branco fica (no centro e zona sul).👇🏾
Nas obras de Lima, sempre houve a sagacidade de compreender como a urbanização implicou uma articulação entre classe, raça e território, na qual as remoções forçadas e a criminalização dos subúrbios aprofundou o estereótipo do negro como "bandido". Livres sim, mas subcidadãos. 👇🏾
A crítica à "epiderme do crime" salta em sua obra. No conto "O Moleque", Lima narra a aflição da mãe de um menino negro ao vê-lo com uma fantasia de diabo. Suspeita que o filho roubou a vestimenta. O racismo é chaga que não poupa as mais íntimas e puras relações. 👇🏾
No entanto, a criança tinha recebido a fantasia de diabo de presente, justamente para assustar meninos brancos que o insultaram de maneira pejorativa e racista.
A roupa era dele, mas os diabos eram os outros, sempre insuspeitos e ilibados aos olhos da paranóia brasileira. 👇🏾
Se negro é criminoso até que se prove o contrário, branco é sinônimo de inocência.
Em Clara dos Anjos, o antagonista é Cassi Jones, branco suburbano que comete uma série de crimes ao longo da história: estupro, assédio sexual, assassinato, abandono parental, extorsão e etc. 👇🏾
Na cidade, entre jornalistas e instituições policiais, todos sabem que ele é um criminoso inveterado. Até um livro com os seus crimes circula pelo Rio de Janeiro. No entanto, ele é branco. E branco não é criminoso. Mais: perante negros, branco não tem responsabilidade alguma. 👇🏾
Pegando o gancho da @Cecillia, Cassi Jones recebeu o mesmo tratamento dado pelo O Globo quando o suspeito é branco. Se é negro, é ficha corrida e o seu bairro um "bunker de criminosos". Se é branco, "relatório de vida pregressa". Chique, eim?👇🏾
Lima não se contentou com a análise dos vínculos entre território, raça e criminalização. Foi além e destrinchou o papel da imprensa na perpetuação do racismo e na exclusão do negro da cidadania. A saga de Isaías Caminha é relato vivo e atual do pacto branco da mídia. 👇🏾
Lima escreveu tudo isso no início do séc. XX. O Brasil acabava de sair da escravidão e estava em disputa o lugar dos negros na nação. Seríamos cidadãos ou não? Seríamos jogados no Quarto de Despejo? Ele interviu nesse momento e fez da literatura uma máquina de guerra. 👇🏾
Cerca de 100 anos depois, após presenciarmos o desenrolar e "desfecho" do roubo branco da bicicleta negra, com narrativas distorcidas e racistas da mídia, Lima Barreto nos interroga: o que mudou? Quando os brancos e suas instituições assumirão suas responsabilidades? 👇🏾
Como lembra @SueliCarneiro, o negro é suspeito a priori e cidadão a posteriori. Sobre nós, absoluta vigilância e ansiedade, que moldam cada hábito e instituição desse país.
O caso da bicicleta revela a continuidade do compromisso branco com o passado denunciado por Lima. 👇🏾
Para finalizar, lembrei de outro escritor:
"Eu nasci aqui há cerca 60 anos e não viverei mais 60 anos. Vocês sempre me pedem para esperar. Pediram isso aos meus pais e avós, a todos os meus parentes. Quanto tempo mais vocês querem para o que chamam de progresso?".
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Entre críticas e elogios, algo que tem passado ao largo dos debates sobre as indicações do presidente é de como a cultura jurídica brasileira ainda é constituída pela lógica da corte, dos medalhões, do puxa-saquismo e das relações pessoais. 👇🏾
Aqui não se trata de uma crítica moralista a essa dinâmica patrimonialista, em que as indicações ao STF e à PGR foram definidas a portas fechadas a algumas quadras da Esplanada, mas sim ao lugar funcional que ela ocupa na reprodução da nossa economia política senhorial. 👇🏾
Depois de anos de law fare, de Lava Jato e de golpes avalizados por ministros do Supremo (que hoje se apresentam como salvadores da democracia), pensei que haveria chance da esquerda retomar suas críticas históricas ao bacharelismo e ao estamento burocrático.👇🏾
Na Copa de 1938, encantados pelo futebol da seleção brasileira, os franceses disseram que os jogadores pareciam bailarinos. Leônidas da Silva, chamado de acrobata e malabarista pela imprensa européia, faria uma correção: não era balé, era samba. Miudinho. Pernada negra. Capoeira.
Aliás, a performance do Brasil na França, em 1938, é um daqueles momentos decisivos na construção do imaginário nacional. Gilberto Freyre se valeria dela para publicar o seu famoso texto "Football Mulato", talvez o artigo esportivo mais influente da nossa história.
Cinco anos depois da publicação de "Casa-Grande e Senzala", o futebol vistoso da seleção brasileira, praticado sobretudo por jogadores negros e "mulatos", seria uma comprovação das teses da mestiçagem, da harmonia racial e do caráter dionisíaco da sociedade brasileira.
Enquanto bolsonaristas fanatizados agridem ministros do STF e causam arruaça mundo afora, o senhor Dias Toffoli fala em passar uma borracha no passado (que ainda é presente). Não basta ser péssimo jurista, paraquedista profissional e néscio exemplar, tem que ser covarde também.
Há todo um campo de estudos e de intervenção política sobre como instituições e o direito devem lidar com o passado e crimes perpetrados por agentes de Estado. Naturalizar esse tipo de fala é legitimar o rebaixamento do debate público, fazendo da burrice negacionista senso comum.
E como típico de todo jurista a serviço do autoritarismo, encobre suas posições valendo-se da retórica ornamental e do discurso supostamente técnico, pois não tem coragem de se assumir publicamente
Nas análises sobre a ascensão da direita no Brasil, chama a atenção a ausência da consideração séria do fator racial e da nossa história profunda. Será que o passado escravocrata é capaz de reposicionar o olhar?
Segue o fio🧵👇🏾
A thread apenas levanta hipóteses e temas de diálogo. O intuito é colocar sob suspeita análises que tomam o Brasil como um país aparentemente nascido no século XX, que marginalizam o racismo ou que nos enxergam apenas como receptores de ideias e movimentos surgidos fora daqui. 👇🏾
1) Dinâmica escravista e base social
Como apontam Alencastro, Marquese e Parron, o caráter negreiro da escravidão brasileira travejou um tipo de sociedade particular, a qual atrelou a expansão da liberdade e da cidadania à expansão da escravidão. 👇🏾
Como estava conversando com @EvandroPiza hoje, não pensar a branquidade por trás dos atos criminosos dos bolsonaristas nas últimas 24 horas é mais uma evidência da nossa incapacidade de pensar a relação entre raça e autoritarismo no Brasil.
Identificação messiânica da "ralé branca" com seu "líder antissistema"; cruzamento de raça e região na radicalização do ressentimento; precipitação da concepção senhorial de liberdade no quase linchamento de um negro na véspera da eleição; patriotismo armado da casa-grande.
É fascismo. Mas, antes de tudo, é racismo, daqueles bem brasileiro. Brancos atacando quilombolas à beira da estrada deveriam nos dizer algo mais sobre o componente racial dos atos e, especialmente, dos sentidos do bolsonarismo - o que ele desperta e o que possibilita sua força.
Lula encerrou o discurso falando do Brasil como causa. Lembrou Darcy Ribeiro, que teria uma frase perfeita para essas eleições:
"Conheço bem o povo brasileiro. Posso dizer a vocês que não só a terra é boa como o povo é ótimo. O ruim aqui são os ricos, os 'bonitos', os educados."
O Brasil de Lula e Darcy é um Brasil maravilhoso. Que bom que ele está de volta, como também falado no discurso ontem.
Vira e mexe cito por aqui o texto dessa citação do Darcy. Chama-se "Universidade para quê?". De 1985, é o discurso para a posse de Cristovam Buarque como primeiro reitor da UnB democraticamente eleito após os anos de Ditadura Militar.