Marcos Queiroz Profile picture
Jun 17, 2021 13 tweets 6 min read Read on X
Lima Barreto, furtos de bicicleta e os inocentes de Botafogo

Negro e suburbano, vivendo o racismo institucionalizado da Primeira República, o escritor Lima Barreto tinha uma relação ácida com os bairros ricos e brancos do Rio de Janeiro. Entre eles, um em especial: Botafogo. 👇🏾
Bairro do mais recente e famoso ladrão de bicicletas do Brasil (o branco Igor Pinheiro), Botafogo expressava o descompasso da nossa modernização, esculpida no concreto urbano. Preto sai (para as periferias), branco fica (no centro e zona sul).👇🏾

Fonte: anpuh.org.br/uploads/anais-…
Nas obras de Lima, sempre houve a sagacidade de compreender como a urbanização implicou uma articulação entre classe, raça e território, na qual as remoções forçadas e a criminalização dos subúrbios aprofundou o estereótipo do negro como "bandido". Livres sim, mas subcidadãos. 👇🏾
A crítica à "epiderme do crime" salta em sua obra. No conto "O Moleque", Lima narra a aflição da mãe de um menino negro ao vê-lo com uma fantasia de diabo. Suspeita que o filho roubou a vestimenta. O racismo é chaga que não poupa as mais íntimas e puras relações. 👇🏾
No entanto, a criança tinha recebido a fantasia de diabo de presente, justamente para assustar meninos brancos que o insultaram de maneira pejorativa e racista.

A roupa era dele, mas os diabos eram os outros, sempre insuspeitos e ilibados aos olhos da paranóia brasileira. 👇🏾
Se negro é criminoso até que se prove o contrário, branco é sinônimo de inocência.

Em Clara dos Anjos, o antagonista é Cassi Jones, branco suburbano que comete uma série de crimes ao longo da história: estupro, assédio sexual, assassinato, abandono parental, extorsão e etc. 👇🏾
Na cidade, entre jornalistas e instituições policiais, todos sabem que ele é um criminoso inveterado. Até um livro com os seus crimes circula pelo Rio de Janeiro. No entanto, ele é branco. E branco não é criminoso. Mais: perante negros, branco não tem responsabilidade alguma. 👇🏾
Pegando o gancho da @Cecillia, Cassi Jones recebeu o mesmo tratamento dado pelo O Globo quando o suspeito é branco. Se é negro, é ficha corrida e o seu bairro um "bunker de criminosos". Se é branco, "relatório de vida pregressa". Chique, eim?👇🏾

Lima não se contentou com a análise dos vínculos entre território, raça e criminalização. Foi além e destrinchou o papel da imprensa na perpetuação do racismo e na exclusão do negro da cidadania. A saga de Isaías Caminha é relato vivo e atual do pacto branco da mídia. 👇🏾
Lima escreveu tudo isso no início do séc. XX. O Brasil acabava de sair da escravidão e estava em disputa o lugar dos negros na nação. Seríamos cidadãos ou não? Seríamos jogados no Quarto de Despejo? Ele interviu nesse momento e fez da literatura uma máquina de guerra. 👇🏾
Cerca de 100 anos depois, após presenciarmos o desenrolar e "desfecho" do roubo branco da bicicleta negra, com narrativas distorcidas e racistas da mídia, Lima Barreto nos interroga: o que mudou? Quando os brancos e suas instituições assumirão suas responsabilidades? 👇🏾
Como lembra @SueliCarneiro, o negro é suspeito a priori e cidadão a posteriori. Sobre nós, absoluta vigilância e ansiedade, que moldam cada hábito e instituição desse país.

O caso da bicicleta revela a continuidade do compromisso branco com o passado denunciado por Lima. 👇🏾
Para finalizar, lembrei de outro escritor:

"Eu nasci aqui há cerca 60 anos e não viverei mais 60 anos. Vocês sempre me pedem para esperar. Pediram isso aos meus pais e avós, a todos os meus parentes. Quanto tempo mais vocês querem para o que chamam de progresso?".

• • •

Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh
 

Keep Current with Marcos Queiroz

Marcos Queiroz Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

PDF

Twitter may remove this content at anytime! Save it as PDF for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video
  1. Follow @ThreadReaderApp to mention us!

  2. From a Twitter thread mention us with a keyword "unroll"
@threadreaderapp unroll

Practice here first or read more on our help page!

More from @marcosvlqueiroz

Nov 28, 2023
Centavos sobre as escolhas de Lula

Entre críticas e elogios, algo que tem passado ao largo dos debates sobre as indicações do presidente é de como a cultura jurídica brasileira ainda é constituída pela lógica da corte, dos medalhões, do puxa-saquismo e das relações pessoais. 👇🏾
Aqui não se trata de uma crítica moralista a essa dinâmica patrimonialista, em que as indicações ao STF e à PGR foram definidas a portas fechadas a algumas quadras da Esplanada, mas sim ao lugar funcional que ela ocupa na reprodução da nossa economia política senhorial. 👇🏾
Depois de anos de law fare, de Lava Jato e de golpes avalizados por ministros do Supremo (que hoje se apresentam como salvadores da democracia), pensei que haveria chance da esquerda retomar suas críticas históricas ao bacharelismo e ao estamento burocrático.👇🏾
Read 7 tweets
Nov 25, 2022
Na Copa de 1938, encantados pelo futebol da seleção brasileira, os franceses disseram que os jogadores pareciam bailarinos. Leônidas da Silva, chamado de acrobata e malabarista pela imprensa européia, faria uma correção: não era balé, era samba. Miudinho. Pernada negra. Capoeira. Voleio de Richarlison no segundo gol contra a Sérvia.
Aliás, a performance do Brasil na França, em 1938, é um daqueles momentos decisivos na construção do imaginário nacional. Gilberto Freyre se valeria dela para publicar o seu famoso texto "Football Mulato", talvez o artigo esportivo mais influente da nossa história. Manchete do texto Football Mulato de Gilberto Freyre.
Cinco anos depois da publicação de "Casa-Grande e Senzala", o futebol vistoso da seleção brasileira, praticado sobretudo por jogadores negros e "mulatos", seria uma comprovação das teses da mestiçagem, da harmonia racial e do caráter dionisíaco da sociedade brasileira. Capa do livro Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre.
Read 6 tweets
Nov 15, 2022
Enquanto bolsonaristas fanatizados agridem ministros do STF e causam arruaça mundo afora, o senhor Dias Toffoli fala em passar uma borracha no passado (que ainda é presente). Não basta ser péssimo jurista, paraquedista profissional e néscio exemplar, tem que ser covarde também.
Há todo um campo de estudos e de intervenção política sobre como instituições e o direito devem lidar com o passado e crimes perpetrados por agentes de Estado. Naturalizar esse tipo de fala é legitimar o rebaixamento do debate público, fazendo da burrice negacionista senso comum.
E como típico de todo jurista a serviço do autoritarismo, encobre suas posições valendo-se da retórica ornamental e do discurso supostamente técnico, pois não tem coragem de se assumir publicamente
Read 4 tweets
Nov 4, 2022
Escravidão e extrema-direita brasileira

Nas análises sobre a ascensão da direita no Brasil, chama a atenção a ausência da consideração séria do fator racial e da nossa história profunda. Será que o passado escravocrata é capaz de reposicionar o olhar?

Segue o fio🧵👇🏾
A thread apenas levanta hipóteses e temas de diálogo. O intuito é colocar sob suspeita análises que tomam o Brasil como um país aparentemente nascido no século XX, que marginalizam o racismo ou que nos enxergam apenas como receptores de ideias e movimentos surgidos fora daqui. 👇🏾
1) Dinâmica escravista e base social

Como apontam Alencastro, Marquese e Parron, o caráter negreiro da escravidão brasileira travejou um tipo de sociedade particular, a qual atrelou a expansão da liberdade e da cidadania à expansão da escravidão. 👇🏾
Read 26 tweets
Nov 1, 2022
Como estava conversando com @EvandroPiza hoje, não pensar a branquidade por trás dos atos criminosos dos bolsonaristas nas últimas 24 horas é mais uma evidência da nossa incapacidade de pensar a relação entre raça e autoritarismo no Brasil.
Identificação messiânica da "ralé branca" com seu "líder antissistema"; cruzamento de raça e região na radicalização do ressentimento; precipitação da concepção senhorial de liberdade no quase linchamento de um negro na véspera da eleição; patriotismo armado da casa-grande.
É fascismo. Mas, antes de tudo, é racismo, daqueles bem brasileiro. Brancos atacando quilombolas à beira da estrada deveriam nos dizer algo mais sobre o componente racial dos atos e, especialmente, dos sentidos do bolsonarismo - o que ele desperta e o que possibilita sua força.
Read 10 tweets
Oct 31, 2022
Lula encerrou o discurso falando do Brasil como causa. Lembrou Darcy Ribeiro, que teria uma frase perfeita para essas eleições:

"Conheço bem o povo brasileiro. Posso dizer a vocês que não só a terra é boa como o povo é ótimo. O ruim aqui são os ricos, os 'bonitos', os educados." Darcy Ribeiro e Lula sentados um ao lado do outro, olhando p
O Brasil de Lula e Darcy é um Brasil maravilhoso. Que bom que ele está de volta, como também falado no discurso ontem.
Vira e mexe cito por aqui o texto dessa citação do Darcy. Chama-se "Universidade para quê?". De 1985, é o discurso para a posse de Cristovam Buarque como primeiro reitor da UnB democraticamente eleito após os anos de Ditadura Militar.

fundar.org.br/universidade-p…
Read 5 tweets

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3/month or $30/year) and get exclusive features!

Become Premium

Don't want to be a Premium member but still want to support us?

Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal

Or Donate anonymously using crypto!

Ethereum

0xfe58350B80634f60Fa6Dc149a72b4DFbc17D341E copy

Bitcoin

3ATGMxNzCUFzxpMCHL5sWSt4DVtS8UqXpi copy

Thank you for your support!

Follow Us!

:(