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Aug 28, 2021 27 tweets 9 min read Read on X
A experiência em Thompson
.
Aproveitando a data, pensei em falar um pouquinho sobre um dos conceitos mais importantes da obra de E.P. Thompson e como ele revigora a tradição marxista.
Lembram da frase do Manifesto? Toda história até hoje é a história da luta de classes? Pois é, todo marxista começa por aí.

Mas luta de classes, em Marx, é um termo abrangente. Claro, as classes lutam - e no capitalismo, somos cada vez mais reduzido a duas posições:
Burgueses ou proletários.

Como muito do movimento do pensamento marxiano foi desvendar a formação e transformação do capital na sociedade, a luta de classes virou uma espécie de axioma.
Tipo, é óbvio que tem luta de classes e é óbvio que é burgeses x proletários, mas como é que funciona? É tipo uma pelada, galera se encontra num campinho, com camisa x sem camisa?
(isso remete a uma questão mais densa do marxismo, eu sei...)

Aí, quando uma editora convidou o Thompson, professor de jovens e adultos e militante comunista (em vias de sair do PCGB) para escrever uma história da classe operária inglesa, ele pensou:
"Mano, mas como essa classe entrou em luta? Primeiro tiveram que esperar o capitalismo ficar desenvolvido pra depois lutar? Tiveram que esperar a vanguarda dizer que agora era hora de luta? Como milhões entenderam que não eram da mesma classe que outros?"
De fato, todo mundo esperava que uma história da classe operária na Inglaterra tivesse relacionada ao movimento cartista, de 1832. Thompson volta mais pra trás e remete a 1790, que é quando pela primeira vez, os trabalhadores ingleses começam a expressar uma...
...linguagem própria para se definir como classe.

Mas essa linguagem não era na forma de movimento social ou sindicato (consideradas suas formas mais bem acabadas). Ela era cruzada por várias outras tradições, inclusive religiosas.
Ou seja, dialogava com o que eles viviam.

Em outras palavras, a classe não nasceu pronta, ela foi se tornando agente do seu próprio "fazer". Não veio intelectual, partido, ou movimento que disse: ó, agora você é classe operária.
Foi o contrário, foram os sujeitos que criaram essa linguagem de classe que criaram suas formas de expressão e consciência específicas (como sindicato, partido, movimento etc).

E isso tudo remete a um termo: EXPERIÊNCIA!
O constitutivo da classe trabalhadora não foram as relações de produção ou as forças produtivas no abstrato, mas sim como os sujeitos entendiam isso a partir do que viviam.

Entendiam não porque um teórico tirou da cartola a teoria que ia salvá-los...
...mas porque eles viviam e sentiam o capitalismo em sua origem. E porque percebiam que sua linguagem, seus costumes, seus hábitos, não eram suficientes para dar explicação para aquele novo tipo de exploração que vivenciavam.
Exploração inclusive é a chave. Porque durante muito tempo rolou uma disputa entre historiadores e economistas pra saber se a Revolução Industrial tinha sido "boa".
Historiadores diziam que era ruim, pois olhavam para acidentes de trabalho e outras estatísticas. Economistas diziam que era boa porque olhavam estatísticas sobre expectativa de vida.
Nesse quiproquó, Thompson olha para como os trabalhadores enxergaram suas próprias experiências na época e, mais do que positivo ou negativo, eles ressignificaram todo o seu mundo.
A gente pode dizer que a linguagem não era adequada, que era arcaica, cheia de influência religiosa ou messiânica, que não era revolucionária. Massssss...eles viveram essa época e nós não.
Porque eles tinham que interpretar aquele novo mundo, que jogava milhões de pessoas nas mãos de uma entidade impessoal (o "mercado") e que obrigou todo mundo, homens, mulheres, velhos e crianças a venderem seu tempo e seu trabalho para simplesmente ter o mínimo para sobreviver.
É, portanto, na experiência vivida que as relações produtivas se concretizam, tanto quanto é na experiência vivida que o amor se concretiza. E como não tem classe sem sujeitos, não tem amor sem amantes.
A luta de classes, dessa forma, não é um chamado de batalha, em que os exércitos se perfilam um de frente para o outro, mas sim, luta constante, ora aberta, ora velada, onde os sujeitos realizam a grande síntese marxiana.
Interpretam o mundo e agem sobre ele em unidade indissolúvel. Concreto pensado em seu movimento histórico e dialético. Pode não ter formato revolucionário, vanguardista, mas é a consciência de classe na sua forma mais absoluta, como produto da própria classe - ...
...que ao longo do tempo, vai se tornar também heterogênea e inclusive revolucionária.

Tudo, no final das contas, gira em torno da experiência. E isso é um vínculo direto com Marx. O concreto só pode ser concreto porque se sente como tal.
O açúcar só tem gosto doce porque assim eu provo. A explicação química da doçura do açúcar não precede a experiência do doce, tanto quanto a do fogo não precede a queimadura.
O impacto que isso tem na história é imenso (esse livro de Thompson, até um tempo atrás, era a obra mais citada na historiografia brasileira). Mas é seu impacto político que acho mais potente.
Significa que qualquer projeto político invariavelmente precisa estabelecer uma relação dialógica com o que as pessoas vivem, sentem, experimentam. Sem isso, é só abstração, só metafísica e pouco materialismo.
A teoria revolucionária é importante, claro. Mas sem ser dialógica, ela é só abstração, ininteligível na maioria das vezes. É essa ponte entre o vivido e o pensado que as novas linguagens, hábitos e culturas de classe se desenvolvem.
A aposta cega em uma vanguarda, seja na retidão de sua linha política, seja na sua moralidade, é sempre um voto de desconfiança sobre a experiência das classes populares. E é aí, e não na teoria, que reside o centro nevrálgico da consciência de classe como fenômeno histórico.
E é isso. Leiam Thompson e tomem umazinha em homenagem ao E.P. que ele merece.

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