Crimes Reais Profile picture
Sep 18, 2021 25 tweets 10 min read Read on X
O dia em que oito jovens foram assassinados por policiais: a chacina da Candelária.
Em julho de 1993, um grupo formado por mais de 70 crianças e jovens, com idades variando dos 6 aos 20 e poucos anos, utilizavam a frente da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, como local de descanso. Todos eram moradores de rua com dificuldades para sobreviver.
Na madrugada do dia 23 daquele mês, enquanto o grupo dormia em frente à referida igreja, cinco indivíduos adultos, ocupando dois carros com as placas cobertas, se dirigiram ao local. Ao chegarem, os sujeitos começaram a disparar contra os jovens indefesos.
Diversos garotos foram alvejados à queima-roupa. Dentre eles, apenas um não morreu na hora: o jovem conhecido como “Come-Gato”, que atuava como o líder do grupo. Ele foi levado ao hospital em estado grave, mas sobreviveu por apenas 4 dias antes de sucumbir aos ferimentos.
Os sobreviventes informaram que os perpetradores do massacre buscavam especificamente por Come-Gato no ataque. Os homicidas, então, sequestraram três jovens. Eles foram levados à região do Museu de Arte Moderna, no Aterro do Flamengo, onde foram alvejados.
Uma das vítimas levadas pelos assassinos sobreviveu à execução: Wágner dos Santos, de 21 anos, foi atingido por 4 disparos, incluindo um no rosto, mas resistiu. No total, oito meninos, entre 11 e 19 anos, dos quais seis eram menores de idade, foram assassinados.
Além disso, dezenas acabaram feridos. A artista Yvonne Bezerra de Mello recontou a ocasião. Ela informou que, naquela noite, deu “a três garotos uma ficha telefônica para eles me ligarem, se acontecesse alguma coisa.” Mais tarde, recebeu uma ligação: “Eles tão matando a gente!”.
Era o que gritavam alguns meninos ao fundo. Ao telefone, um deles requisitou: “Tia, vem pra cá. Estão nos matando”. Mello, que realizava trabalhos sociais com jovens necessitados, conta que chegou para ver os sobreviventes desesperados, correndo e sacudindo as crianças mortas.
As investigações evidenciaram que os executores eram policiais à paisana. A motivação? O PM Marcos Vinicius Emmanuel, que fazia a segurança de uma manifestação próxima à igreja, desconfiou que o Come-Gato escondesse cola de sapateiro, e o confrontou.
Após abordá-lo, uma discussão acalentada eclodiu e a PM acabou prendendo um outro jovem por suspeitas de que teria fornecido a suposta droga. Um dos garotos, revoltado com a prisão, teria atirado uma pedra numa viatura, e também foi levado à delegacia.
Lá, ambos foram liberados, pois, à época, o consumo de cola não era ilegal; contudo, uma parte do departamento decidiu punir os garotos de outra forma: promovendo uma chacina contra eles e as pessoas com quem conviviam e sobreviviam juntos.
Porém, há uma outra teoria que define uma motivação mais contundente ao massacre: na verdade, os policiais envolvidos, que integravam o 5º Batalhão da PMRJ, também atuavam na quadrilha operada no âmbito do regimento, que estaria envolvida com mortes por encomenda e tráfico.
Yvone de Mello afirma que essa foi a real razão da chacina: “Os policiais traficavam cocaína, e alguns dos garotos mais velhos os ajudavam”, e que, por conta de uma dívida, decidiram cobrá-la massacrando o grupo.
Na tarde daquele dia, um carro com alguns indivíduos não identificados passou em frente ao local em que os jovens se alocavam avisando que ocorreria um ato de ordem violenta ali após algumas horas, razão pela qual Mello deu seu número para que pudessem contatá-la do orelhão.
Inicialmente, foram indiciadas três pessoas pela consumação do massacre: dois PMs e um serralheiro. Todos responderam ao processo presos; contudo, foram inocentados três anos mais tarde, quando um dos envolvidos confessou o crime e acusou os outros participantes.
Nelson de Oliveira dos Santos assumiu sua participação e acusou os PMs Marco Aurélio Alcântara, Arlindo Afonso Lisboa e Marcus Vinicius Emmanuel, assim como o ex-PM Maurício da Conceição Filho, conhecido encarecidamente como “Sexta-Feira 13”.
Conceição Filho foi expulso da PM em 1990 por tortura e, em 1994, morreu em tiroteio com policiais durante sua participação num sequestro. Arlindo evadiu julgamento pela chacina e recebeu pena de apenas 2 anos pela posse de uma das armas usadas no crime.
Marco Aurélio foi condenado a 204 anos de reclusão. Nelson de Oliveira, que se entregou, após sucessivos recursos de sua parte e do Ministério Público, pegou pena de 45 anos – 27 pelas mortes e 18 pela tentativa de homicídio de Wagner dos Santos.
Ambos foram soltos por indulto judicial após cumprir 14 anos de pena. Marcus Emmanuel, por sua vez, foi apontado como o líder da operação e condenado a 300 anos de reclusão; todavia, foi solto após servir apenas 18. O MP recorreu para que não fosse beneficiado com o indulto.
O Superior Tribunal de Justiça retirou o benefício e requereu que fosse preso novamente; no entanto, ele permanece foragido desde sua libertação. Durante a investigação e os julgamentos, Wagner dos Santos, sobrevivente do massacre, foi a testemunha chave para a acusação.
Por essa razão, no ano seguinte à chacina da Candelária, Wagner foi vítima de novo atentado, ocorrido na Estação Central do Brasil, onde foi alvejado por mais quatro disparos. Novamente, ele sobreviveu, e foi colocado no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas.
Atualmente, ele permanece vivo e mora na Suíça, sob a proteção do governo, recebendo três salários-mínimos mensalmente. “Ele é cego e surdo de um lado do rosto e sofre de traumas severos”, contou sua irmã, criadora da Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência.
No ano de 2001, Yvone estimou que estimou que 39 das 72 crianças que dormiam na Candelária à época da chacina haviam morrido. Em 2013, pesquisa de grupos ligados à ONG Anistia Internacional informou que 44 dos jovens teriam morrido de forma violenta.
Em 2018, a atriz disse acreditar que quase todos os membros do grupo estavam mortos, e que teria perdido seu último contato com um deles, vítima de uma bala perdida. Inclusive, um dos jovens era Sandro Barbosa do Nascimento, que protagonizou o sequestro ao ônibus 174.
Após a tragédia, foi criado o movimento “Candelária Nunca Mais”, que realiza manifestações com o tema “Vidas Negras nas Ruas Importam”, que busca, entre outros objetivos, justiça social a jovens negros e pobres expostos à brutalidade policial, relembrando as vítimas da chacina.

• • •

Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh
 

Keep Current with Crimes Reais

Crimes Reais Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

PDF

Twitter may remove this content at anytime! Save it as PDF for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video
  1. Follow @ThreadReaderApp to mention us!

  2. From a Twitter thread mention us with a keyword "unroll"
@threadreaderapp unroll

Practice here first or read more on our help page!

More from @CrimesReais

Apr 30
Conselho Tutelar proíbe o ‘pastor’ Miguel Oliveira, de 15 anos, de pregar em igrejas. Image
Image
O adolescente de 15 anos, que se intitula missionário, foi proibido de fazer pregações em igrejas e nas redes sociais. A decisão foi tomada após reunião entre o Conselho Tutelar, os pais do jovem e o pastor Marcinho Silva.
Marcinho é presidente da Assembleia de Deus Avivamento Profético, denominação onde o adolescente atuava. A proibição, segundo informações, é por tempo indeterminado.
Read 5 tweets
Apr 29
Ele estuprava crianças, quebrava as mãos. Com uma faca, ele mutilava os dedos, amputava as mãos, os olhos, as orelhas e, por fim, as degolava ainda vivas. Pedofilia, estupro e assassinato: La bestia, um dos piores serial killers da história. Image
Image
Luis Alfredo Garavito nasceu em 25 de janeiro de 1957, em Génova — cidade localizada no sul de Quindío, na Colômbia. Fazia parte de uma grande família, sendo o mais velho dos sete filhos do casal Rosa Delia Cubillos e Manuel Antonio Garavito. Image
O rapaz cresceu em um ambiente muito pobre e violento, tendo sido criado de modo cruel pelo pai — que contava com o esteriótipo alcoólatra e agressivo. Aparentemente, o menino era vítima de violência física e psicológica por parte do mesmo, sendo constantemente abusado. Image
Read 20 tweets
Apr 27
Grupos se organizam para agredir o “profeta” Miguel Oliveira em frente à igreja. Image
O pregador Miguel Oliveira, de 14 anos, tem sido alvo de ameaças e protestos nos últimos dias, após a divulgação de práticas que geraram controvérsia dentro e fora da comunidade evangélica. De acordo com informações apuradas, a situação motivou a realização de manifestações em frente às igrejas onde o religioso ministra cultos, levando à necessidade de intervenção policial para garantir a segurança no local.
As tensões aumentaram após denúncias de que Miguel Oliveira estaria cobrando valores entre R$ 3 mil e R$ 30 mil para aceitar convites para pregar em outras igrejas. Também foi relatado que, durante os cultos, solicitações de doações via Pix no valor de até R$ 1 mil eram feitas aos fiéis. Outro episódio que contribuiu para a mobilização de críticas foi a alegação do pregador de possuir o dom da cura, após um culto em que incentivou uma mulher a abandonar as muletas e caminhar.
Read 4 tweets
Apr 17
A garota que foi sequestrada e ficou presa em uma caixa durante 7 anos: Image
Image
⚠️ ATENÇÃO: O conteúdo a seguir retrata violência sexual e tortura. Caso não se sinta confortável, recomendamos que não prossiga com a leitura.
Em 1977, nos Estados Unidos, pegar carona era algo comum. As pessoas naquela época viam isso como algo normal, já que casos de sequestro ainda não haviam chamado tamanha atenção ao ponto de se tornar um problema para a polícia e a segurança pública. Image
Read 32 tweets
Apr 11
Após aceitar ajuda de um desconhecido para trocar o pneu do carro, jovem é morta. Conheça o caso Mariana Bazza. Image
Image
Mariana Bazza era uma jovem de 19 anos, que estudava fisioterapia em uma universidade particular de Bauru. Image
Dia 24 de setembro de 2019, uma terça-feira normal na vida de Mariana, a jovem foi até a academia que frequentava, na Avenida José Jorge Resegue, conhecida também como Avenida do Lago, pela manhã. Ao sair, percebeu que o pneu do seu carro estava vazio. Image
Read 21 tweets
Apr 5
A misteriosa morte da família Pesseghini: teria um garoto de 13 anos sido o assassino? Image
Image
No dia 5 de agosto de 2013, o casal de policiais, Andreia Regina e Luis Marcelo, foi encontrado morto, ao lado do filho de 13 anos, Marcelo Eduardo Bovo Pesseghini. A avó do menino, Benedita Oliveira, e a tia-avó, Bernardete Oliveira da Silva, também foram alvos da chacina. Image
Segundo a denúncia realizada às 18h, cinco pessoas da mesma família teriam sido assassinadas dentro da própria casa, na Brasilândia, em São Paulo. O local não foi isolado e mais de 200 oficiais estiveram presentes na cena do crime. Image
Read 19 tweets

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3/month or $30/year) and get exclusive features!

Become Premium

Don't want to be a Premium member but still want to support us?

Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal

Or Donate anonymously using crypto!

Ethereum

0xfe58350B80634f60Fa6Dc149a72b4DFbc17D341E copy

Bitcoin

3ATGMxNzCUFzxpMCHL5sWSt4DVtS8UqXpi copy

Thank you for your support!

Follow Us!

:(