Um investidor da Faria Lima descobriu uma doença rara que acomete 1 a cada 10 mil pessoas! A acurácia do exame é 99,9%.
Qual a probabilidade de ter mesmo a doença?
Não fique triste se respondeu 99,9%. A maioria dos médicos também acha. Mas está errado e eu vou te explicar no fio
A interpretação médica de exames é muito mais complexa do que se faz parecer pela Medicina mecanicista tradicional com seu binômio:
Positivo x Negativo.
Na verdade, a interpretação de cada exame individualmente deve ser:
Verdadeiro e falso positivo x verdadeiro e falso negativo.
Essa interpretação entre exames verdadeiros ou falsos em Medicina é um dos pilares da atuação médica (e de profissionais da saúde em geral).
Só que, por incrível que pareça, não é ensinada corretamente pelo currículo médico atual da maioria das universidades brasileiras.
Veja, por exemplo, essa enquete realizada pela turma do Meu Staff no Instagram:
Nela, 40% dos médicos e estudantes de Medicina responderam o mais óbvio e superestimado: 99,9%. Apenas 14% acertou.
E essa inabilidade para interpretar exames não é exclusiva da Medicina brasileira.
Em 2006, em uma aula sobre raciocínio lógico, Gigerenzer perguntou a 160 ginecologistas qual a probabilidade de uma mulher com mamografia positiva para câncer de mama ter mesmo câncer de mama.
Taxa de acerto de 21%.
Naquela ocasião, 47% dos especialistas superestimaram o exame.
De fato, o exame do nosso investidor tinha acurácia de 99,9%. Significava que ele detectava corretamente 99,9% dos doentes (a isso se dá o nome de sensibilidade) e também 99,9% dos sadios (a isso se dá o nome de especificidade).
Olhe no diagrama a seguir.
Um problema do raciocínio médico mecanicista e não baseado em evidências é achar que sensibilidade de 99,9% significa que há 99,9% de taxa de acerto caso o exame seja positivo.
Sensibilidade de 99,9% é uma taxa de acerto de 99,9% quando avaliamos APENAS OS DOENTES.
E no caso do nosso investidor, nós não sabemos nada além do fato de que ano passado ele certamente perdeu para a SELIC.
Não sabemos se ele é doente ou não, foi por isso que o exame foi feito: para descobrir.
Aliás, quase sempre é assim em nossa profissão, ou não?
E pra descobrir a probabilidade de ele ser doente ou não ANTES do exame, usamos a probabilidade pré-teste ou a prevalência da doença na população a que o paciente pertence.
Esse dado estava presente no primeiro tweet: 1 em 10 mil, ou 0,01%. Vamos ao diagrama.
A cada 1 milhão de pessoas, 100 são doentes e o restante sadios. Agora (e apenas agora) posso usar a sensibilidade e especificidade conforme definição delas.
99,% de 100 doentes é 99,9.
99,9% de 999900 sadios é 998900.
É simples multiplicação.
E agora vem a pergunta crucial: dado que o exame do nosso destemido investidor foi positivo, ele foi verdadeiro ou falso?
Perceba que, só de olhar, já se percebe uma chance muito maior de ele ter caído nos falsos.
Basta fazer uma simples proporção dos verdadeiros positivos com todos os positivos. VP / VP + FP. Isso dá 9%.
A probabilidade de ele ter mesmo a doença tendo esse super exame positivo é de apenas 9%. Um exame 99,9% acurado.
Bem vindo ao mundo real.
Daniel Kahneman, em seu livro Rápido e Devagar, faz diversas menções ao raciocínio aplicado neste tweet: o raciocínio bayesiano (“slow”).
A diferença dele para o raciocínio rápido e mecanicista é que, aqui, corretamente, usamos a probabilidade pré-teste na fórmula.
Um dos exemplos dados por Kahneman em seu livro é o de uma testemunha que viu um taxi azul atropelar uma pessoa.
Dado que 15% dos taxis são azuis e, nas circunstâncias daquela noite, a testemunha identificou corretamente 80% das cores, a probabilidade de ser azul é de 41%.
O raciocínio bayesiano (o raciocínio lento proposto por Kahneman) está em várias áreas das nossas vidas (desde justiça criminal até Medicina) e é proveniente do teorema de Bayes, que foi simplificado no livro Manual de Medicina Baseada em Evidências.
O jovem médico precisa entender urgentemente que sem raciocínio bayesiano, ele vai errar a interpretação de TODOS OS EXAMES que ler na vida.
Não é que ele vai errar de maneira binária, mas vai errar a estimativa da probabilidade, superestimando ou subestimando em muitos pacientes
Em vários posts, expliquei o raciocínio bayesiano e formas de usá-lo de maneira rotineira. Em meu livro, explico os pormenores da sua fórmula.
Uma maneira fácil de usar é com o site calculator.testingwisely.com
Agora que a probabilidade do paciente ter a doença é de 9,08%, devemos repetir o mesmo exame (o raciocínio bayesiano se retroalimenta). Se for positivo de novo, aplicando a mesma fórmula, passamos a ter uma probabilidade de 99,01% de ele ter a doença - agora sim estará confirmada
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Vamos brincar?
Imagine que você está infartando e o médico lhe disse que o tratamento é com a "CABEÇADA MÍSTICA", que consiste em bater a cabeça contra uma almofada especial que ele trouxe da Tanzânia. Natureba.
Você vai sobreviver? Escolha uma das probabilidades (ex: F6)
Este médico repetia coisas como "integrativo", "a medicina baseada em evidências é ultrapassada", "a minha experiência vale mais", "eu já tratei vários pacientes que sobreviveram".
A urna foi revelada: você sobreviveu (a bola escolhida era azul) ou morreu (vermelha)?
Com o tratamento moderno de infarto, a probabilidade de morreu caiu de 60% (60 bolas vermelhas) para aproximadamente 4% (4 bolas vermelhas).
Esta é a urna revelada, quando se trata corretamente o infarto. E aí, tratado pela Medicina séria, você sobreviveria?
“There is no need to change the STEMI-NSTEMI paradigm. I never see false negatives.”
We published the article “The no false negative paradox in STEMI-NSTEMI diagnosis” in Heart (BMJ), and I’ll explain this paradox with a story: José de Alencar sees a patient with angina. 🧵
José de Alencar does not know, but this patient has a thrombus acutely blocking one of his coronary arteries. Unfortunately, there is no ST-segment elevation.
José de Alencar, therefore, classifies the patient as NSTEMI. Could he have done differently?
Since the patient has NSTEMI, José de Alencar does not activate STEMI protocols. If the patient were lucky enough to show the sign that defines the disease, treatment would occur within 30-120 minutes.
But he’s unlucky and will be treated hours or even days later.
Mr. Uzendu estava jogando basquete quando caiu no chão. Os amigos achavam que ele estava fingindo de desacordado. Mas ele acabara de ter uma morte súbita.
Esta é a forma com que morrem 13% das pessoas do planeta.
Eu sou cardiologista e vou ensinar a reconhecer uma morte súbita.
Talvez por vermos tantas mortes na ficção, tendemos a pensar que a morte súbita é o simples e abrupto fechar dos olhos e perda do tônus muscular.
Mas, na vida real não é nada parecido com isso.
Primeiro, pode parecer com uma convulsão.
Muitos casos de parada cardíaca se iniciam com uma fase de elevado tônus muscular. A pessoa fica dura.
Isso ocorre em mais de 60% dos eventos de cessação da irrigação cerebral por causa definitivamente cardíaca registrados ao vivo em Tilt Tests.
O médico pede troponina, exame cardíaco que detecta infarto, e dá positivo.
Diagnóstico: Infarto.
Na verdade, Ednaldo tinha embolia pulmonar.
Os médicos nunca descobrirão este erro. Segue o fio para entender “a armadilha da troponina”.
Quando digo que “os médicos nunca descobrirão”, eu não estou falando dos médicos que o atenderam, mas me refiro a qualquer médico. O erro não é apenas diagnóstico, mas COGNITIVO.
A gênese do problema está em um viés chamado “viés da incorporação”.
Este viés existe quando o resultado de um exame dá nome a uma doença.
Lembra que falei que troponina aumentada aponta para infarto? "Infarto” é definido pelo aumento da troponina associado a clínica compatível.
Perceba que a troponina é o teste e é a definição da doença.
You've likely seen the term "slow R wave progression" in an ECG report.
But, is there a link to prior infarction? Our team conducted a Scoping Review to explore this.
Here's what we found in our study at @JElectrocardiol 🧵
Regarding accuracy, there are 4 studies (the most "modern" from 1981). After that, no further studies.
The main researcher, Zema, showed Sensitivity of 85-90% and Specificity of 56-75%. But don’t celebrate yet. We found a major issue in this analysis.
Zema's studies have a severe research bias: a selection bias where only people with slow progression were included. None of Zema’s studies is suitable for testing exam accuracy, which would compare people with the test versus those without.