Marcos Queiroz Profile picture
Jan 17, 2022 20 tweets 7 min read Read on X
O lixo vai falar, e numa boa.

Thread recente conectou o fato das pessoas jogarem lixo na rua a uma suposta destruição da identidade nacional causada por professores de história marxistas. Vish, pesado, eim. Mas será?

E se o lixo pudesse falar, o que ele diria sobre o Brasil? 👇🏾
Bom, bora para um pouco de história. Antes de haver saneamento básico no Brasil, por cerca de 300 anos, eram escravos os responsáveis por coletar urina, fezes e dejetos nas casas das cidades brasileiras. Como todo trabalho degradante, ele era delimitado pela escravidão.👇🏾
Tais trabalhadores eram chamados de tigres, pois o conteúdo carregado nos tonéis sobre a cabeça frequentemente derramava sobre a pele, deixando marcas brancas sobre a pele negra. Tais trabalhadores eram bastante mal vistos, associando o racismo da escravidão com o nojo do lixo.👇🏾
Central para a administração das cidades brasileiras e reveladores da experiência negra nas Américas (das violências, mas também dos mecanismos de luta pela vida), os tigres marcaram profundamente a obra de Sidney Amaral, que os utilizou para pensar o Brasil. 👇🏾
Em "O Atleta ou O Sonho de Kichute", 2013, Sidney traz a memória dos tigres como crítica ao poder das grandes marcas sobre as vidas negras na contemporaneidade. Ademais, dialoga com a famosa fotografia do escravizado Gordon, torturado com chibatas em Louisiana, 1863. 👇🏾
Retornando à história. O saneamento básico começou a ser implementado no Brasil na segunda metade do século XIX, diminuindo a utilização desse tipo de trabalho. No entanto, mais uma vez a história dos negros e a história do lixo se entrelaçam. 👇🏾
Naquele momento, o racismo científico passa a dominar o pensamento institucional no país. Nas suas diferentes vertentes, ele atestava a inferioridade natural dos negros. Seja pela biologia, pela cultura ou pela história, os negros seriam os responsáveis pelo "atraso" do país. 👇🏾
Unindo ideias sobre saúde pública, comportamento humano e urbanismo, o sanitarismo foi profundamente marcado pelo racismo. Os negros - "com suas habitações e maus hábitos trazidos da África" - eram aqueles que proliferavam doenças nas grandes cidades brasileiras. 👇🏾
Assim, sanitarizar o Brasil era não só tratar o lixo e conter doenças. Era também limpar a mancha negra que constituía nossos centros urbanos. As grandes reformas urbanas e o autoritarismo científico só são as duas maiores expressões desse fenômeno, que não ficou por aí. 👇🏾
É bom lembrar que o momento casa com a derrocada do regime escravista. Com isso, o sanitarismo racista ajudará a inviabilizar mecanismos de sobrevivência e ascensão social da população negra, não só a afastando dos centros, como dificultando formas históricas de trabalho (...) 👇🏾
a exemplo das práticas comerciais dirigidas por mulheres negras, como os famosos tabuleiros. Neste sentido, sanitarismo e racismo explicam muito das nossas desigualdades hoje, bem como uma experiência nacional que, em geral, sempre quer reconduzir os negros ao lugar do lixo. 👇🏾
Mas como na experiência dos tigres e na arte de Sidney Amaral, a relação dos negros com o lixo também é marcada pela luta e pelo sublime. Não foram raras vezes que a população negra foi buscar no lixo não somente sua sobrevivência, mas também a mais alta realização estética. 👇🏾
Carolina Maria de Jesus e Arthur Bispo do Rosário são exemplos desse levante estético contra a lógica eugência do Brasil. Como o arquétipo do lixeiro de W. Benjamin, fizeram dos despejos e dejetos do mundo moderno mecanismo de criação artística, de narrativa e de denúncia. 👇🏾
Ademais, o lixo é o elemento central da filosofia política de Lélia González. O negro, por ter sido tratado como escória, infantilizado, subalternizado, negado e visto como merda, requer a própria fala. "Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa", na mais genial das frases. 👇🏾
Na dinâmica de Lélia, o lixo também é símbolo do recalque, daquilo que foi escondido, forçadamente ocultado, e que, por isso, revela as fissuras, traumas e violências da nossa sociedade. A memória do lixo revela aquilo que foi dejetado pela consciência. O lixo carrega verdade. 👇🏾
Como Estamira nos lembra, o lixo é potente para descortinar narrativas fáceis, que atribuem problemas complexos a causas simplistas. A sujeira na cidade aos professores marxistas. A falta de uma suposta identidade nacional a uma suposta doutrinação escolar. 👇🏾
O lixo aguça nosso entendimento sobre a produção de desigualdades, mas, especialmente, ele ilumina aqueles que resistiram a esse processo e verdadeiramente tornaram e ainda tornam esse país possível.

Foto: Vitoriosa Greve dos Garis, Rio de Janeiro, 2014.
Obras na thread:

Sidney Amaral, "História do Sanitarismo no Brasil (o trono do Rei)", 2013.

Debret, "Máscara que se usa nos negros", 1820-20

Sidney Amaral, "História do Sanitarismo no Brasil (o trono do Rei)", 2014.

Sidney Amaral, "O Atleta ou O Sonho de Kichute", 2013.
Charge da revista "O Malho", de 29 de outubro de 1904.

E um salve especial a mozão, @a_nohor, que não só me fez apaixonado pelo Sidney Amaral, como é uma das que interpreta sua obra à luz da fotografia do escravizado Gordon.

• • •

Missing some Tweet in this thread? You can try to force a refresh
 

Keep Current with Marcos Queiroz

Marcos Queiroz Profile picture

Stay in touch and get notified when new unrolls are available from this author!

Read all threads

This Thread may be Removed Anytime!

PDF

Twitter may remove this content at anytime! Save it as PDF for later use!

Try unrolling a thread yourself!

how to unroll video
  1. Follow @ThreadReaderApp to mention us!

  2. From a Twitter thread mention us with a keyword "unroll"
@threadreaderapp unroll

Practice here first or read more on our help page!

More from @marcosvlqueiroz

Nov 28, 2023
Centavos sobre as escolhas de Lula

Entre críticas e elogios, algo que tem passado ao largo dos debates sobre as indicações do presidente é de como a cultura jurídica brasileira ainda é constituída pela lógica da corte, dos medalhões, do puxa-saquismo e das relações pessoais. 👇🏾
Aqui não se trata de uma crítica moralista a essa dinâmica patrimonialista, em que as indicações ao STF e à PGR foram definidas a portas fechadas a algumas quadras da Esplanada, mas sim ao lugar funcional que ela ocupa na reprodução da nossa economia política senhorial. 👇🏾
Depois de anos de law fare, de Lava Jato e de golpes avalizados por ministros do Supremo (que hoje se apresentam como salvadores da democracia), pensei que haveria chance da esquerda retomar suas críticas históricas ao bacharelismo e ao estamento burocrático.👇🏾
Read 7 tweets
Nov 25, 2022
Na Copa de 1938, encantados pelo futebol da seleção brasileira, os franceses disseram que os jogadores pareciam bailarinos. Leônidas da Silva, chamado de acrobata e malabarista pela imprensa européia, faria uma correção: não era balé, era samba. Miudinho. Pernada negra. Capoeira. Voleio de Richarlison no segundo gol contra a Sérvia.
Aliás, a performance do Brasil na França, em 1938, é um daqueles momentos decisivos na construção do imaginário nacional. Gilberto Freyre se valeria dela para publicar o seu famoso texto "Football Mulato", talvez o artigo esportivo mais influente da nossa história. Manchete do texto Football Mulato de Gilberto Freyre.
Cinco anos depois da publicação de "Casa-Grande e Senzala", o futebol vistoso da seleção brasileira, praticado sobretudo por jogadores negros e "mulatos", seria uma comprovação das teses da mestiçagem, da harmonia racial e do caráter dionisíaco da sociedade brasileira. Capa do livro Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre.
Read 6 tweets
Nov 15, 2022
Enquanto bolsonaristas fanatizados agridem ministros do STF e causam arruaça mundo afora, o senhor Dias Toffoli fala em passar uma borracha no passado (que ainda é presente). Não basta ser péssimo jurista, paraquedista profissional e néscio exemplar, tem que ser covarde também.
Há todo um campo de estudos e de intervenção política sobre como instituições e o direito devem lidar com o passado e crimes perpetrados por agentes de Estado. Naturalizar esse tipo de fala é legitimar o rebaixamento do debate público, fazendo da burrice negacionista senso comum.
E como típico de todo jurista a serviço do autoritarismo, encobre suas posições valendo-se da retórica ornamental e do discurso supostamente técnico, pois não tem coragem de se assumir publicamente
Read 4 tweets
Nov 4, 2022
Escravidão e extrema-direita brasileira

Nas análises sobre a ascensão da direita no Brasil, chama a atenção a ausência da consideração séria do fator racial e da nossa história profunda. Será que o passado escravocrata é capaz de reposicionar o olhar?

Segue o fio🧵👇🏾
A thread apenas levanta hipóteses e temas de diálogo. O intuito é colocar sob suspeita análises que tomam o Brasil como um país aparentemente nascido no século XX, que marginalizam o racismo ou que nos enxergam apenas como receptores de ideias e movimentos surgidos fora daqui. 👇🏾
1) Dinâmica escravista e base social

Como apontam Alencastro, Marquese e Parron, o caráter negreiro da escravidão brasileira travejou um tipo de sociedade particular, a qual atrelou a expansão da liberdade e da cidadania à expansão da escravidão. 👇🏾
Read 26 tweets
Nov 1, 2022
Como estava conversando com @EvandroPiza hoje, não pensar a branquidade por trás dos atos criminosos dos bolsonaristas nas últimas 24 horas é mais uma evidência da nossa incapacidade de pensar a relação entre raça e autoritarismo no Brasil.
Identificação messiânica da "ralé branca" com seu "líder antissistema"; cruzamento de raça e região na radicalização do ressentimento; precipitação da concepção senhorial de liberdade no quase linchamento de um negro na véspera da eleição; patriotismo armado da casa-grande.
É fascismo. Mas, antes de tudo, é racismo, daqueles bem brasileiro. Brancos atacando quilombolas à beira da estrada deveriam nos dizer algo mais sobre o componente racial dos atos e, especialmente, dos sentidos do bolsonarismo - o que ele desperta e o que possibilita sua força.
Read 10 tweets
Oct 31, 2022
Lula encerrou o discurso falando do Brasil como causa. Lembrou Darcy Ribeiro, que teria uma frase perfeita para essas eleições:

"Conheço bem o povo brasileiro. Posso dizer a vocês que não só a terra é boa como o povo é ótimo. O ruim aqui são os ricos, os 'bonitos', os educados." Darcy Ribeiro e Lula sentados um ao lado do outro, olhando p
O Brasil de Lula e Darcy é um Brasil maravilhoso. Que bom que ele está de volta, como também falado no discurso ontem.
Vira e mexe cito por aqui o texto dessa citação do Darcy. Chama-se "Universidade para quê?". De 1985, é o discurso para a posse de Cristovam Buarque como primeiro reitor da UnB democraticamente eleito após os anos de Ditadura Militar.

fundar.org.br/universidade-p…
Read 5 tweets

Did Thread Reader help you today?

Support us! We are indie developers!


This site is made by just two indie developers on a laptop doing marketing, support and development! Read more about the story.

Become a Premium Member ($3/month or $30/year) and get exclusive features!

Become Premium

Don't want to be a Premium member but still want to support us?

Make a small donation by buying us coffee ($5) or help with server cost ($10)

Donate via Paypal

Or Donate anonymously using crypto!

Ethereum

0xfe58350B80634f60Fa6Dc149a72b4DFbc17D341E copy

Bitcoin

3ATGMxNzCUFzxpMCHL5sWSt4DVtS8UqXpi copy

Thank you for your support!

Follow Us!

:(