Thread recente conectou o fato das pessoas jogarem lixo na rua a uma suposta destruição da identidade nacional causada por professores de história marxistas. Vish, pesado, eim. Mas será?
E se o lixo pudesse falar, o que ele diria sobre o Brasil? 👇🏾
Bom, bora para um pouco de história. Antes de haver saneamento básico no Brasil, por cerca de 300 anos, eram escravos os responsáveis por coletar urina, fezes e dejetos nas casas das cidades brasileiras. Como todo trabalho degradante, ele era delimitado pela escravidão.👇🏾
Tais trabalhadores eram chamados de tigres, pois o conteúdo carregado nos tonéis sobre a cabeça frequentemente derramava sobre a pele, deixando marcas brancas sobre a pele negra. Tais trabalhadores eram bastante mal vistos, associando o racismo da escravidão com o nojo do lixo.👇🏾
Central para a administração das cidades brasileiras e reveladores da experiência negra nas Américas (das violências, mas também dos mecanismos de luta pela vida), os tigres marcaram profundamente a obra de Sidney Amaral, que os utilizou para pensar o Brasil. 👇🏾
Em "O Atleta ou O Sonho de Kichute", 2013, Sidney traz a memória dos tigres como crítica ao poder das grandes marcas sobre as vidas negras na contemporaneidade. Ademais, dialoga com a famosa fotografia do escravizado Gordon, torturado com chibatas em Louisiana, 1863. 👇🏾
Retornando à história. O saneamento básico começou a ser implementado no Brasil na segunda metade do século XIX, diminuindo a utilização desse tipo de trabalho. No entanto, mais uma vez a história dos negros e a história do lixo se entrelaçam. 👇🏾
Naquele momento, o racismo científico passa a dominar o pensamento institucional no país. Nas suas diferentes vertentes, ele atestava a inferioridade natural dos negros. Seja pela biologia, pela cultura ou pela história, os negros seriam os responsáveis pelo "atraso" do país. 👇🏾
Unindo ideias sobre saúde pública, comportamento humano e urbanismo, o sanitarismo foi profundamente marcado pelo racismo. Os negros - "com suas habitações e maus hábitos trazidos da África" - eram aqueles que proliferavam doenças nas grandes cidades brasileiras. 👇🏾
Assim, sanitarizar o Brasil era não só tratar o lixo e conter doenças. Era também limpar a mancha negra que constituía nossos centros urbanos. As grandes reformas urbanas e o autoritarismo científico só são as duas maiores expressões desse fenômeno, que não ficou por aí. 👇🏾
É bom lembrar que o momento casa com a derrocada do regime escravista. Com isso, o sanitarismo racista ajudará a inviabilizar mecanismos de sobrevivência e ascensão social da população negra, não só a afastando dos centros, como dificultando formas históricas de trabalho (...) 👇🏾
a exemplo das práticas comerciais dirigidas por mulheres negras, como os famosos tabuleiros. Neste sentido, sanitarismo e racismo explicam muito das nossas desigualdades hoje, bem como uma experiência nacional que, em geral, sempre quer reconduzir os negros ao lugar do lixo. 👇🏾
Mas como na experiência dos tigres e na arte de Sidney Amaral, a relação dos negros com o lixo também é marcada pela luta e pelo sublime. Não foram raras vezes que a população negra foi buscar no lixo não somente sua sobrevivência, mas também a mais alta realização estética. 👇🏾
Carolina Maria de Jesus e Arthur Bispo do Rosário são exemplos desse levante estético contra a lógica eugência do Brasil. Como o arquétipo do lixeiro de W. Benjamin, fizeram dos despejos e dejetos do mundo moderno mecanismo de criação artística, de narrativa e de denúncia. 👇🏾
Ademais, o lixo é o elemento central da filosofia política de Lélia González. O negro, por ter sido tratado como escória, infantilizado, subalternizado, negado e visto como merda, requer a própria fala. "Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa", na mais genial das frases. 👇🏾
Na dinâmica de Lélia, o lixo também é símbolo do recalque, daquilo que foi escondido, forçadamente ocultado, e que, por isso, revela as fissuras, traumas e violências da nossa sociedade. A memória do lixo revela aquilo que foi dejetado pela consciência. O lixo carrega verdade. 👇🏾
Como Estamira nos lembra, o lixo é potente para descortinar narrativas fáceis, que atribuem problemas complexos a causas simplistas. A sujeira na cidade aos professores marxistas. A falta de uma suposta identidade nacional a uma suposta doutrinação escolar. 👇🏾
O lixo aguça nosso entendimento sobre a produção de desigualdades, mas, especialmente, ele ilumina aqueles que resistiram a esse processo e verdadeiramente tornaram e ainda tornam esse país possível.
Foto: Vitoriosa Greve dos Garis, Rio de Janeiro, 2014.
Sidney Amaral, "História do Sanitarismo no Brasil (o trono do Rei)", 2013.
Debret, "Máscara que se usa nos negros", 1820-20
Sidney Amaral, "História do Sanitarismo no Brasil (o trono do Rei)", 2014.
Sidney Amaral, "O Atleta ou O Sonho de Kichute", 2013.
Charge da revista "O Malho", de 29 de outubro de 1904.
E um salve especial a mozão, @a_nohor, que não só me fez apaixonado pelo Sidney Amaral, como é uma das que interpreta sua obra à luz da fotografia do escravizado Gordon.
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Entre críticas e elogios, algo que tem passado ao largo dos debates sobre as indicações do presidente é de como a cultura jurídica brasileira ainda é constituída pela lógica da corte, dos medalhões, do puxa-saquismo e das relações pessoais. 👇🏾
Aqui não se trata de uma crítica moralista a essa dinâmica patrimonialista, em que as indicações ao STF e à PGR foram definidas a portas fechadas a algumas quadras da Esplanada, mas sim ao lugar funcional que ela ocupa na reprodução da nossa economia política senhorial. 👇🏾
Depois de anos de law fare, de Lava Jato e de golpes avalizados por ministros do Supremo (que hoje se apresentam como salvadores da democracia), pensei que haveria chance da esquerda retomar suas críticas históricas ao bacharelismo e ao estamento burocrático.👇🏾
Na Copa de 1938, encantados pelo futebol da seleção brasileira, os franceses disseram que os jogadores pareciam bailarinos. Leônidas da Silva, chamado de acrobata e malabarista pela imprensa européia, faria uma correção: não era balé, era samba. Miudinho. Pernada negra. Capoeira.
Aliás, a performance do Brasil na França, em 1938, é um daqueles momentos decisivos na construção do imaginário nacional. Gilberto Freyre se valeria dela para publicar o seu famoso texto "Football Mulato", talvez o artigo esportivo mais influente da nossa história.
Cinco anos depois da publicação de "Casa-Grande e Senzala", o futebol vistoso da seleção brasileira, praticado sobretudo por jogadores negros e "mulatos", seria uma comprovação das teses da mestiçagem, da harmonia racial e do caráter dionisíaco da sociedade brasileira.
Enquanto bolsonaristas fanatizados agridem ministros do STF e causam arruaça mundo afora, o senhor Dias Toffoli fala em passar uma borracha no passado (que ainda é presente). Não basta ser péssimo jurista, paraquedista profissional e néscio exemplar, tem que ser covarde também.
Há todo um campo de estudos e de intervenção política sobre como instituições e o direito devem lidar com o passado e crimes perpetrados por agentes de Estado. Naturalizar esse tipo de fala é legitimar o rebaixamento do debate público, fazendo da burrice negacionista senso comum.
E como típico de todo jurista a serviço do autoritarismo, encobre suas posições valendo-se da retórica ornamental e do discurso supostamente técnico, pois não tem coragem de se assumir publicamente
Nas análises sobre a ascensão da direita no Brasil, chama a atenção a ausência da consideração séria do fator racial e da nossa história profunda. Será que o passado escravocrata é capaz de reposicionar o olhar?
Segue o fio🧵👇🏾
A thread apenas levanta hipóteses e temas de diálogo. O intuito é colocar sob suspeita análises que tomam o Brasil como um país aparentemente nascido no século XX, que marginalizam o racismo ou que nos enxergam apenas como receptores de ideias e movimentos surgidos fora daqui. 👇🏾
1) Dinâmica escravista e base social
Como apontam Alencastro, Marquese e Parron, o caráter negreiro da escravidão brasileira travejou um tipo de sociedade particular, a qual atrelou a expansão da liberdade e da cidadania à expansão da escravidão. 👇🏾
Como estava conversando com @EvandroPiza hoje, não pensar a branquidade por trás dos atos criminosos dos bolsonaristas nas últimas 24 horas é mais uma evidência da nossa incapacidade de pensar a relação entre raça e autoritarismo no Brasil.
Identificação messiânica da "ralé branca" com seu "líder antissistema"; cruzamento de raça e região na radicalização do ressentimento; precipitação da concepção senhorial de liberdade no quase linchamento de um negro na véspera da eleição; patriotismo armado da casa-grande.
É fascismo. Mas, antes de tudo, é racismo, daqueles bem brasileiro. Brancos atacando quilombolas à beira da estrada deveriam nos dizer algo mais sobre o componente racial dos atos e, especialmente, dos sentidos do bolsonarismo - o que ele desperta e o que possibilita sua força.
Lula encerrou o discurso falando do Brasil como causa. Lembrou Darcy Ribeiro, que teria uma frase perfeita para essas eleições:
"Conheço bem o povo brasileiro. Posso dizer a vocês que não só a terra é boa como o povo é ótimo. O ruim aqui são os ricos, os 'bonitos', os educados."
O Brasil de Lula e Darcy é um Brasil maravilhoso. Que bom que ele está de volta, como também falado no discurso ontem.
Vira e mexe cito por aqui o texto dessa citação do Darcy. Chama-se "Universidade para quê?". De 1985, é o discurso para a posse de Cristovam Buarque como primeiro reitor da UnB democraticamente eleito após os anos de Ditadura Militar.