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Feb 15, 2022 24 tweets 9 min read Read on X
Uma thread sobre como a geografia desempenha um papel fundamental na disputa entre Rússia e Ucrânia:
A Rússia é enorme. Literalmente o maior país do mundo, com 1/8 de toda a área terrestre do planeta.

Para você ter noção do quão grande é esse lugar, eu estou falando da mesma área de superfície de Plutão.

Quando o sol nasce no leste da Rússia, está se pondo no oeste.
A Rússia é aquilo que conhecemos como país transcontinental - faz parte de dois continentes: a Europa e a Ásia.

E a Rússia é tão grande que a sua parte asiática é grande o suficiente para transformá-la no maior país da Ásia, e sua parte europeia faz o mesmo na Europa.
Acontece que 75% do território russo está na Ásia, mas somente 22% dos russos vivem ali.

É na Ásia que está parte importante da riqueza natural russa - como petróleo e gás - mas os russos estão na Europa, e é esta região a maior preocupação militar de Moscou.
Este território todo, claro, não caiu dos céus para a Rússia. Foi conquistado.

Por séculos, a Rússia teve diferentes autocratas. E a relação dessas figuras com o poder está intimamente ligada:
1) à obsessão em proteger o território,
2) à influência nos países vizinhos (são 14).
Este cara aqui - Pedro, o Grande (1672-1725) - foi o primeiro imperador da Rússia e grande expoente do expansionismo russo.

Sua biografia escrita por Robert K Massie - mil páginas que fazem Game of Thrones parecer Cinderela - é material obrigatório e imperdível sobre este país.
Nos últimos séculos, a Rússia foi invadida diversas vezes pelo oeste:

Pelos poloneses, em 1605.
Pelos suecos, em 1707.
Pelos franceses, em 1812.
Pelos alemães, em 1914 e 1941.
Essa é a razão por que os russos não menosprezam a possibilidade de serem invadidos.

Desde 1812, os russos lutaram para proteger seu território, no oeste, em média, uma vez a cada 33 anos.

Como o Kremlin reage a esse risco? Expandindo ainda mais seu território.
A União Soviética resolveu essa vulnerabilidade dominando os países do Leste da Europa.

Eles formavam um bloco militar chamado Pacto de Varsóvia. Seu adversário era a OTAN, a organização militar liderada pelos EUA para proteger aliados de um possível ataque soviético.
Quando a União Soviética acabou, em 1991, esta cortina de ferro, que protegia Moscou, se desmanchou.

Milhões de habitantes de países dominados pelos russos foram às ruas pedir independência. O Pacto acabou.

Putin chama este capítulo de “maior catástrofe geopolítica do século”.
Desde então, a OTAN incorporou estes países do extinto Pacto de Varsóvia:

- República Tcheca, Hungria e Polônia, em 1999;
- Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia e Eslováquia, em 2004;
- Albânia, em 2009.

Moscou, claro, reclama.
Hoje, essa é a relação dos países da extinta União Soviética com Moscou:

Neutros: Uzbequistão, Azerbaijão e Turcomenistão.
Pró-Rússia: Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Bielorrússia e Armênia.
Pró-Ocidente: Todos que estão na OTAN.
Não citei três países: Moldávia, Geórgia e Ucrânia.

Os três estão num limbo - até desejam fazer parte da OTAN, mas têm medo da briga com Moscou.

Dos três, ninguém representaria maior vulnerabilidade geográfica à Rússia, em caso de aliança com a OTAN, do que a Ucrânia.
Rússia e Ucrânia dividem 2 mil quilômetros de fronteira, equivalente à distância de São Paulo a Salvador. Mas esta não é uma relação pacífica.

Em setembro de 2021, 81% dos ucranianos disseram ter uma opinião negativa em relação a Putin.

ratinggroup.ua/research/ukrai…
Há diversos motivos para a rejeição a Moscou. Um deles é o trauma com o genocídio de ucranianos (não apenas um gentílico, mas uma minoria étnica) liderado por Joseph Stalin em 1932/1933.

Milhões de ucranianos morreram. E a Ucrânia não esquece essa dor.

veja.abril.com.br/cultura/o-bril…
Cada país envolvido nessa briga age na defesa de seus interesses.

A Rússia julga ter o direito natural de dominar o Leste da Europa.

Os EUA desejam enfraquecer Moscou e manter sua hegemonia global.

A Ucrânia busca melhores condições na economia e na segurança nacional.
Putin se inspira na jornada de Pedro, o Grande. E age para intimidar seus vizinhos apelando para diferentes táticas, dignas de um dos mais bem sucedidos impérios da História.

Moscou nega a países soberanos o direito de determinar seu próprio futuro.

foreignpolicy.com/2022/01/11/bal…
E o Exército não é a arma mais poderosa de Moscou - mas o gás e o petróleo. A Rússia só fica atrás dos Estados Unidos como maior fornecedor de gás natural do mundo, e não abre mão de usar esse recurso para atingir seus objetivos militares.
No meio dessa disputa está o Nord Stream 2, da estatal russa Gazprom: um gasoduto que liga a Rússia à Alemanha, ainda inativo, com capacidade de transportar 55 bilhões de metros cúbicos de gás natural por ano.

A Alemanha, maior economia da Europa, ainda depende da energia russa.
Os EUA, e seus aliados, são contrários ao Nord Stream 2 porque dizem que a Europa ficará ainda mais refém da Rússia, em troca de gás natural.

Washington acredita que Putin usará essa dependência como ferramenta de pressão em disputas com o Ocidente.
Biden promete fechar o Nord Stream 2 caso a Rússia decida invadir a Ucrânia, com sanções que tornariam o projeto inviável.

Seu governo diz que EUA e Alemanha são aliados e darão "os mesmos passos e eles serão muito, muito difíceis para a Rússia".

bbc.com/portuguese/int…
Desde novembro, a quantidade de gás natural que chega à Alemanha da Rússia despencou, elevando os preços.

Esse aumento pode jogar pressão dos consumidores no governo alemão, fortalecendo Putin.

27% da energia consumida na Alemanha vem do gás natural.

nytimes.com/2022/02/14/wor…
Vender seu excedente de gás de xisto para a Europa parece ser a solução dos EUA.

Só que esse gás precisa ser liquefeito e enviado pelo Atlântico, o que exige a construção de terminais para gás liquefeito no litoral europeu para receber essa carga e transformá-la de volta em gás.
Essa é, enfim, uma batalha baseada na geografia.

Gás, clima e terra são indispensáveis para entender este conflito político. Nós chamamos isso de geopolítica.

Se haverá uma guerra, só o tempo dirá. Mas a natureza não deixará de ser protagonista nessa história. Mais uma vez.

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Feb 20
Nesse final de semana haverá eleições na Alemanha.

Eu preparei essa thread sobre a Alternativa para a Alemanha, para que, daqui a um tempo, você não seja pego de surpresa sobre quem manda na AfD:
Em abril de 2024, a justiça da República Tcheca anunciou o congelamento dos bens de dois homens acusados de dirigir uma operação de influência para a Rússia na Europa. Os seus nomes eram Viktor Medvedchuk e Artem Marchevsky.

mzv.gov.cz/jnp/en/issues_…
Segundo os tchecos, Medvedchuk dirigia uma “operação de influência russa” com o objetivo de “espalhar narrativas pró-Rússia que minavam” a Europa.

Como ele fez isso? Com a ajuda de Marchevsky, diretor de um site chamado Voz da Europa.Image
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Feb 16
Se você acha que a Rússia não é uma ameaça à segurança mundial, e que todas as acusações recentes contra Moscou não passam de propaganda, russofobia ou histeria, você definitivamente precisa se informar melhor.

Aqui embaixo, revelo por que você está errado:
Nessa semana, publiquei essa thread, em que conto como a inteligência de diferentes nações europeias detecta a ambição russa de atacar países membros da OTAN nos próximos anos – o que poderia provocar uma guerra aberta na Europa.

Nela, disse que a principal ambição política de Vladimir Putin é a restauração dos territórios perdidos na dissolução da União Soviética.
cambridge.org/core/journals/…

Há pilhas de evidências mostrando isso.
bfi.uchicago.edu/wp-content/upl…

Putin lamenta repetidas vezes a derrocada da condição imperial russa, e chama a dissolução da União Soviética de “maior tragédia geopolítica do século”.
nbcnews.com/id/wbna7632057

Ele entende que esse foi um processo de “desintegração da Rússia histórica sob o nome de União Soviética”.
reuters.com/world/europe/p…

Ou seja: para Putin, os ex-territórios soviéticos fazem parte da Rússia histórica.
ppr.lse.ac.uk/articles/10.31…
Read 37 tweets
Feb 14
Abandonar a Ucrânia não é uma opção para a Europa. O risco de realizar esse movimento é a história se repetir e outros países europeus serem engolidos pela ambição de um ditador imperialista.

Qual a chance disso acontecer e por que isso é tão importante?

Conto aqui embaixo:
Nesse final de semana, numa entrevista para a Economist, Zelensky acusou Moscou de trabalhar na formação de 10 a 15 divisões militares, com mais de 100 mil soldados, com a intenção de enviá-los à Bielorrússia para atacar um país-membro da OTAN.

economist.com/europe/2025/02…
Hoje, na Conferência de Segurança de Munique, Zelensky voltou a repetir o discurso.

Mais: disse que, segundo a inteligência ucraniana, esse ataque pode acontecer já no próximo ano.

politico.eu/article/putin-…
Read 18 tweets
Feb 2
Você sabe quem é Elon Musk. Mas você já ouviu falar em Joshua Norman Haldeman?

Joshua era o avô de Musk, e ele tem uma história bastante curiosa – suspeito que você irá gostar de conhecê-la.

Saca só:
Joshua era esse sujeito aqui. Ele nasceu nos Estados Unidos, em 1902, mas cresceu no Canadá, onde virou quiroprático.

Ao longo da vida, Joshua teve 5 filhos – entre eles, as gêmeas Maye e Kaye.

Em 1971, Maye deu à luz ao seu primeiro filho: um menino chamado Elon Musk.Image
Antes de falar sobre Joshua é preciso entender esse movimento social aqui: a Technocracy Inc.

De forma bem resumida, esse grupo defendia uma mudança do sistema político para um modelo apolítico usando cientificismo para organizar a sociedade.

Confuso? Explico melhor:Image
Read 22 tweets
Jan 20
O que tá acontecendo com o TikTok nos EUA?

Conto aqui embaixo:
Você provavelmente já sabe o que é o TikTok, então não preciso perder muito tempo explicando.

Mas de forma resumida: o TikTok nasceu em 2016, como um app para gravar e compartilhar vídeos com sincronização labial. Nada muito revolucionário, mas sucesso imediato.

O conteúdo evoluiu bastante desde então – das dancinhas às análises políticas.

No passado, ele só existia na versão chinesa, chamada Douyin (抖音). Até hoje o Douyin é o aplicativo disponível na China.

Sim, são dois apps. Douyin e TikTok pertencem à mesma empresa, são praticamente a mesma coisa, mas os seus conteúdos são completamente diferentes.

O TikTok que você conhece é bloqueado na China.Image
Douyin e TikTok são da chinesa ByteDance.

A ByteDance foi fundada pelo chinês Zhang Yiming. Em 2024, Yiming virou o homem mais rico da China.
bbc.com/news/articles/…

Ele é chamado pelos EUA de "porta-voz" do Partido Comunista Chinês.
npr.org/2020/09/26/917…
Read 35 tweets
Dec 17, 2024
Isso é o que esses políticos falavam sobre a alta do dólar no governo anterior:
Read 28 tweets

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