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Mar 28, 2023 28 tweets 10 min read Read on X
Crianças internadas na Escola Estadual de Willowbrook, em Nova York, Estados Unidos, em uma fotografia de Bill Pier. Entre 1955 e 1970, a instituição sediou os chamados Experimentos de Willowbrook, um dos estudos científicos mais hediondos do pós-guerra.

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Milhares de crianças pobres e portadoras de transtornos mentais internadas em Willowbrook foram utilizadas como cobaias humanas e deliberadamente infectadas com hepatite, como parte de uma pesquisa secreta sobre a doença.

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Localizada em Staten Island, na cidade de Nova York, a Escola Estadual de Willowbrook foi originalmente concebida como um internato para crianças com transtornos psiquiátricos. A construção teve início em 1938, mas foi interrompida após a eclosão da Segunda Guerra Mundial.

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A construção foi concluída em 1947 por Thomas Dewey, governador de Nova York, que pretendia utilizar o complexo para, em suas palavras, "recolher milhares de crianças mentalmente deficientes (...) que nunca poderão fazer parte da sociedade".

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Apesar da denominação, Willowbrook jamais funcionou como uma escola. A instituição não contava com projeto ou estrutura pedagógica e não havia professores em seus quadros. Willowbrook era, na prática, um depósito para crianças e adolescentes tidos como "indesejáveis",...

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...refletindo a política higienista do governo estadunidense que seguiu em curso no pós-guerra. Desde a inauguração, os internos de Willowbrook sofriam com o abandono e negligência estatal. As péssimas condições de higiene favoreciam a disseminação de doenças.

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As taxas de letalidade eram elevadas e, não raramente, os funcionários levavam dias para recolher os corpos. As crianças eram amontoadas em alojamentos sujos, acorrentadas e submetidas a abusos físicos. Denúncias de violência sexual contra os internos eram frequentes.

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Apesar disso, Willowbrook era a única instituição que oferecia "tratamento" gratuito para crianças com transtornos mentais em Nova York, sendo, portanto, muito procurada pela população — sobretudo por famílias carentes, que não tinham como pagar por tratamentos particulares

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Projetada pra abrigar até 4.000 pessoas, Willowbrook contabilizava 6.000 internos pouco após a inauguração. Na década de 50, as péssimas condições sanitárias da instituição resultaram em um grave surto de hepatite entre os internos.

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O surto chamou a atenção do médico pediatra Saul Krugman, pesquisador da Universidade de Nova York, que então se dedicava a estudar a hepatite e os efeitos da gama globulina no tratamento da moléstia.

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Krugman solicitou ao Conselho Epidemiológico das Forças Armadas dos Estados Unidos uma permissão para estudar o desenvolvimento de uma vacina contra a hepatite em Willowbrook, utilizando as crianças como cobaias. O governo estadunidense autorizou a pesquisa.

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O estudo teve início em 1955, conduzido por Krugman e outros renomados cientistas — incluindo Robert McCollum, da Universidade de Yale. Para obter o consentimento dos pais, os pesquisadores diziam que as crianças passariam por um procedimento preventivo contra a hepatite.

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Na década de 60, a instituição também vinculou a admissão de novos internos à autorização para que as crianças participassem do experimento. Sem informações sobre a verdadeira natureza do estudo, as famílias concordavam em entregar os filhos para uso como cobaias.

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Os pesquisadores queriam observar as diferenças de evolução das hepatites sérica e infecciosa e testar o uso de anticorpos. As crianças foram divididas em dois grupos — o experimental, que recebeu os anticorpos, e o grupo de controle, formado por crianças desprotegidas.

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Em seguida, os pesquisadores infectaram propositalmente milhares de crianças com o vírus da hepatite B. As cepas do vírus eram inoculadas através de injeções ou oferecidas no lanche das crianças, misturadas ao leite com chocolate.

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As crianças infectadas não recebiam qualquer tipo de terapia, pois os médicos pretendiam observar os efeitos da progressão da doença. Como resultado do experimento, centenas de crianças morreram ou ficaram com sequelas graves.

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As complicações e mortes de internos despertaram a desconfiança das famílias, que começaram a procurar a imprensa e autoridades públicas para saber o que estava ocorrendo em Willowbrook.

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Em 1965, após uma visita à instituição, o senador Robert Kennedy relatou que as crianças estavam "vivendo em meio à imundície e à sujeira, vestindo trapos, dormindo em quartos menos confortáveis do que as gaiolas dos animais do zoológico".

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Donna Stone, militante dos direitos da infância, obteve acesso à escola passando-se por uma assistente social e registrou uma série de abusos. A imprensa começou então a publicar reportagens versando sobre as condições sanitárias de Willowbrook e os abusos contra internos.

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Temendo que as investigações avançassem sobre a contaminação deliberada de crianças, os pesquisadores encerraram o estudo em 1970. As informações sobre a pesquisa, entretanto, vazaram para a imprensa.

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Em 1972, o repórter investigativo Geraldo Rivera produziu o documentário "Willowbrook: The Last Great Disgrace", exibido em rede nacional pela WABC-TV. O documentário chocou o público e causou indignação. Moradores de Nova York realizaram protestos

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Em 1975, o estado de Nova York foi alvo de uma ação coletiva movida pelos pais dos internos. O governo anunciou que encerraria gradualmente as atividades da instituição, mas Willowbrook somente fecharia as portas em 1988.

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A pressão popular levou o congresso a aprovar da Lei dos Direitos Civis das Pessoas Institucionalizadas em 1980, estabelecendo parâmetros éticos para as pesquisas com crianças, pessoas com transtornos psiquiátricos e internos de instalações correcionais.

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Os pesquisadores e autoridades responsáveis pela condução da pesquisa, entretanto, nunca foram punidos.

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Ao ser questionado sobre o motivo pelo qual os cientistas não realizaram os testes em cobaias convencionais, preferindo usar crianças pobres e com transtornos mentais, Saul Krugman respondeu que animais de laboratório eram "caros demais".

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Fontes e leituras adicionais:

"O Caso Willowbrook: as escolhas éticas à luz do pensamento de Agnes Heller". Artigo de Edna Raquel Hogemann publicado na Revista Brasileira de Direito Animal/UFBA: periodicos.ufba.br/index.php/RBDA…

+
"Os bizarros experimentos da Willowbrook State School". Artigo de Julio Cezar de Araujo no Mega Curioso: megacurioso.com.br/misterios/1159…

"Pesquisas com Hepatite na Escola Estadual de Willowbrook". Matéria no blog Ética em Conflito: eticaemconflito.wordpress.com/pesquisas-com-…

+
"The Willowbrook Wars: Bringing the Mentally Disabled Into the Community". Livro de David e Sheila Rothman: books.google.com.br/books?id=E2Jup…

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