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Ontem Israel atacou um comboio de ambulâncias em Gaza. Além de chocadas, muitas pessoas ficam também perdidas em relação aos argumentos expostos por Israel: e se essas ambulâncias estavam mesmo sendo usadas pelo Hamas? Então, vou tentar explicar o que a lei diz sobre isso:
Começando pelo mais simples: as ambulâncias, os hospitais e o pessoal sanitário (de saúde) gozam de total proteção dos efeitos do conflito armado. Em 1864, a 1ª Convenção de Genebra convencionou o uso de um emblema, a cruz vermelha sob fundo branco, para identificar essa proteção
Mais tarde, protocolos adicionais à convenção passaram a reconhecer outros emblemas protetores, como o crescente vermelho. O combinado pelos próprios Estados signatários é de que locais, veículos e pessoal identificados com esses emblemas são protegidos.
Note que a Convenção refere-se principalmente a veículos, pessoal e instalações sanitárias das próprias forças em conflito. Ou seja: refere-se a hospitais e ambulâncias militares, que transportam combatentes e que são operados por combatentes. Então ...
De saída, o argumento de que o comboio de ambulâncias em Gaza transportava combatentes do Hamas não justifica, por si só, o ataque, pois a lei aplicável prevê justamente isso: a proteção de combatentes atendidos pelos serviços sanitários.
Essa proteção vem do fato de que, no direito da guerra, todos os combatentes são, sim, alvos legítimos, mas deixam de ser quando estão feridos ou enfermos (1ª Convenção de Genebra), náufragos (2ª Convenção), rendidos ou capturados (3ª Convenção).
Ou seja: um combatente do Hamas é um alvo legítimo, mas ele deixa de ser se está fora de combate. O mesmo vale – pelo menos no direito da guerra – para os soldados israelenses: quando feridos ou enfermos, em ambulâncias e hospitais, não podem ser atacados.
Então, se as ambulâncias de Gaza transportavam combatentes do Hamas, mas esses combatentes estavam feridos ou enfermos, o ataque israelense pode ser um crime de guerra. (Se sequer havia gente do Hamas no comboio, então, a violação é ainda maior. Mas aí seria outro tópico).
Alguém pode perguntar: mas e se o Hamas estava usando as ambulâncias não para transportar combatentes feridos e enfermos, mas para esconder combatentes que estavam participando ativamente das hostilidades. Vamos lá:
Esse seria uma crime de guerra também, chamado de perfídia. Os combatentes não podem usar os emblemas protetivos para realizar operações militares ofensivas. Mas isso justificaria então o bombardeio israelenses contra o combio. A resposta é: depende ...
Ainda que esse fosse o caso, Israel teria de observar dois outros princípios: o da precaução e o da oportunidades. Ambos passam pela avaliação sobre o dano aos civis que dirigem as ambulâncias, que estão ao redor e que também possam ser pacientes transportados.
Oportunidade: esse era o melhor momento para atacar? Os alvos poderiam ter sido atacados antes de entrar no comboio? Depois? A vantagem militar obtida com esse ataque (a morte de alguns combatentes) justifica o dano humanitário (as mortes civis), em números e amplitude?
Precaução: Israel sabia que havia um número enorme de civis misturados ao que poderia ser um alvo legítimo? Usou os meios e métodos menos destrutivos possíveis para atingir esse objetivo que considerava legal?
Minha opinião: tem toda a pinta de um crime de guerra injustificável. Acho que, junto com o ataque aos campos de refugiado, será um caso histórico de violação do direito da guerra. Por onde se olhe, Israel poderia ter evitado essa ação, que me pareceu meramente punitiva.
Por último: é possível argumentar que o direito citado não se aplica em plenitude neste conflito, por razões "burocráticas" que o pessoal do direito adora citar. Ressalva: são regras consuetudinárias. Não há por onde escapar.

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