Bom dia. Paulo Freire é um desses autores que são muito citados sem grande profundidade. Alguns, citam com ódio, sem nunca ter lido uma linha do que escreveu. Outros, citam frases amorosas como este fosse o centro de sua lavra. Lá vai fio a respeito de seus principais conceitos.
1) Começando sobre a confusão a respeito do conceito de educação popular. Não foi Paulo Freire que o criou. O conceito já aparecia na América Espanhola desde o século XIX. Apareceu em meio à luta pela independência como educação nacional e popular
2) O termo evoluiu para uma concepção mais transformadora com organizações populares e sindicais na Argentina, Peru e Bolívia. Nikolai Severin, que criou as escolas sindicais na Dinamarca, foi uma referência neste período
3) Aliás, Severin foi muito importante para a construção das Escolas da Cidadania no sul dos EUA. Myles Horton, educador que trouxe suas concepções para a alfabetização de negros e que impulsionou a luta por direitos civis, foi amigo de Paulo Freire
4) Antes de Paulo Freire, Cuba desenvolveu uma enorme campanha de alfabetização que se alinha às teses do educador brasileiro. Lá, a referência foi Ana Echegoyen de Cañizares, estudiosa afro-cubana feminista que o Brasil nem estuda ou cita.
5) Mas, vamos à Freire. Depois da experiência exitosa de Angicos (RN) e no exílio no Chile, as teses do brasileiro se chocaram com a concepção de educação popular de Marta Harnecker. A chilena adotava uma linha mais tradicional de transferência de saber.
6) Esta é uma importante diferença com as visões de educação "de fora" da existência do educando apoiada no leninismo. Paulo Freire contestou esta tese que considerava autoritária e equivocada no livro Pedagogia do Oprimido.
7) Neste mais conhecido livro de Freire, o autor questiona o papel de revolucionários que pensam apenas em si. O ato revolucionário serviria para apenas colocá-lo no poder, elevando seu próprio status. O livro foi escrito no Chile, entre 1964 e 1968
8) Aqui aparece um princípio freireanos dos mais importantes. A relação educador e educando está relacionada com a libertação, contrária à prática de transmissão de conteúdos. O método educativo, portanto, deveria se basear no diálogo, na conversa, provocando os educandos
9) A problematização, assim, substitui a mera informação ou transmissão de conhecimento. A dúvida proposta leva a rupturas de paradigmas e o diálogo integra saberes (o educador se educa, aprende e reaprende no próprio diálogo com os educandos)
10) No seu livro “Pedagogia da Autonomia”, Paulo Freire destaca que o papel do educador é o de criar a possibilidade de sua construção. Na prática, a sala de aula deixa de ser o espaço da certeza para dar lugar às dúvidas
11) Mas, como provocar a dúvida se o método propõe o diálogo? Começando pela curiosidade do educando. Aqui se situa uma das maiores confusões quando se cita Paulo Freire no Brasil: ele se apoiava na fenomenologia.
12) Para a fenomenologia, o primeiro discurso de alguém sobre algo é dado pela emoção e pelo sensível (olfato, audição, tato etc). Este seria o "primeiro discurso" sobre o mundo de todos nós. A teoria seria o "segundo discurso", mais reflexivo.
13) Mas, minha percepção não é neutra. Ela é influenciada pela minha própria história comigo e na sociedade. Mais: minha percepção é sempre cotejada com a de outro sobre o mesmo fenômeno. É assim que assistimos um programa de televisão: comentamos com quem está ao nosso lado
14) Então, a formação da opinião se dá em movimentos circulares (na verdade, elípticos, superando cada momento anterior): eu, comigo mesmo; eu, trocando impressões com os outros; eu, formando uma visão mais racional do mundo. Este deveria ser o movimento do aprendizado
15) A alfabetização freireana arte desta constatação: não se deve iniciar pela palavra (o signo) que nada mais é que um desenho estranho para o analfabeto. Ela tem que iniciar justamente pelo significado afetivo da palavra para o educando. Somente assim ele "apreende" a palavra
16) O começo da alfabetização é quase um estudo antropológico: o educador ouve o educando, percebe sua existência, seus gostos, seu vocabulário. E é deste estudo que nasce a "palavra geradora": uma palavra que tem muito sentido para o analfabeto e que será o fio da meada
17) O fio da meada nasce da intenção do educador e da realidade e cultura do educando. É uma interação. É justamente assim que se aprende: nasce de uma curiosidade pessoal que impele à mudança de leitura do mundo. Para Paulo Freire, a educação só tem sentido se promover autonomia
18) Autonomia não é liberdade para fazer o que se quer, mas saber se posicionar frente ao coletivo. A tradução livre seria "eu defino as normas de conduta" e, assim, administro meu desejo e minhas pulsões. Educação é um processo civilizatório. Pessoa educada sabe se relacionar
19) Para terminar este fio inicial sobre conceitos básicos de Paulo Freire, encaixo o de "Admiração". Trata-se de um exercício de provocação do educando para ele "se ver de fora" e ganhar autonomia. Lembre-se, tudo nasce com a dúvida sobre tudo.
20) Se eu admiro o mundo eu não o aceito de pronto. O mesmo em relação às minhas escolhas: se eu contemplo o que sou e faço, sou levado a ter maior consciência sobre meu papel e o resultado de minhas escolhas. Para mim, trata-se de um antídoto para a idolatria e o fanatismo
21) Assim, na sala de aula, o educador tem que provocar a admiração sobre o mundo e sobre os nossos próprios pensamentos. Parece algo similar à psicanálise, não? Somente assim me vejo como parte consciente no mundo.
22) Fico por aqui. Este é um aperitivo para o pensamento de Paulo Freire. Algo muito distinto do que falam sobre ele, não? Inté. (FIM)
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Bom dia. Como o fio que postei ontem parece que foi útil, continuarei a conversa sobre os conceitos de Paulo Freire que começa agora. Neste fio, vou explorar o conceito de educação bancária e suas derivações. Lá vai:
1) A educação bancária se baseia na convicção que o educando é um copo vazio, incapaz de superar o senso comum marcado por crenças e crendices. Para superar tal condição, necessitaria da oxigenação vinda do conhecimento de fora.
2) Para superar tal condição, necessitaria da oxigenação vinda do conhecimento de fora. Um conhecimento civilizador, que o prepara para um salto para o mundo produtivo, de progresso pessoal e coletivo. Algo como a civilização tirando o selvagem de sua inércia.
Fiquei de postar alguns detalhes sobre alternativas pedagógicas para em virtude do IDEB recém-divulgado. Lá vai.
1) Primeiro, até por uma questão de honestidade intelectual, preciso deixar claro que sou freireano e tenho como referência as teses de Lev Vygotsky. Vou explicar brevemente o que isso significa
2) Paulo Freire contestava o que denominava de "educação bancária". Sua crítica se concentrava no papel de instrutor - às vezes, até adestrador - que o professor assumia. O aluno era visto como totalmente ignorante, um papel em branco a ser preenchido pelo saber do professor
Estou impressionado com o impacto das redes sociais no comportamento infanto-juvenil. Já temos pesquisas acumuladas que indicam um imenso estrago.
1) Um dos estragos é a máquina de conformidade que as redes sociais se revelaram. Viés de Conformidade é a atração natural de se repetir o que a maioria está fazendo. Trata-se de uma tendência de aceitação num grupo.
2) Pois bem: hoje, sabemos que uma criança acessa 1000 unidades de informações em uma hora (gastando 3 segundos por publicação). Basta olhar o número de curtidas e saberá o que gerará aceitação
Bom dia. Ontem, na live das 20h, apresentamos os dados da pesquisa "A cara da Democracia", coordenada por professores da Unicamp, UERJ e UFMG. Os dados são mais que reveladores já que revelam que o eleitor de Lula é conservador. Vamos à pesquisa:
1) Lula tem mais peso como padrinho que Bolsonaro, mas suas indicações para prefeito têm uma rejeição grande de 40%
2) O que surpreende inicialmente é o crescimento de brasileiros que não gostam de Lula (de 35% registrado no ano passado para 40% em 2024). Bolsonaro apresenta leve queda neste quesito, mas dentro da margem de erro e continua campeão: metade dos brasileiros não gosta dele.
Boa tarde. Farei um rápido fio sobre as correntes internas do Partido Democrata dos EUA, dada a confusão geral que aparece nas redes sociais brasileiras. Vou por partes:
1) Comecemos pela forte rejeição do cidadão dos EUA. Segundo o instituto de pesquisas Pew Research, 28% dos estadunidenses expressam opiniões desfavoráveis sobre ambos os partidos. (pesquisa realizada em setembro de 2023)
2) A maioria dos republicanos e democratas caracterizam seu próprio partido em termos positivos, dizendo que ele respeita a democracia e governa honesta e eticamente. 60% dos americanos dizem ser críticos ao Partido Republicano, a mesma parcela em relação aos Democratas
Bom dia. Ouvi muitas pessoas dizerem que Lula se encantou quando leu, durante sua prisão, o livro "Povo de Deus", do antropólogo Juliano Spyer. O livro é realmente bom. O fio de hoje é sobre este livro. Lá vai:
1) Spyer começa o livro quebrando barreiras ao afirmar que entrar na igreja evangélica melhora as condições de vida dos brasileiros mais pobres: fim do alcoolismo e consequentemente, da violência doméstica, além de aumentar a autoestima e a disciplina para o trabalho
2) O autor destaca, ainda, que o ingresso na igreja evangélica leva as famílias a investirem mais na educação (própria e dos filhos)