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"É com a cabeça enterrada no esterco que as sociedades moribundas soltam o seu canto do cisne". (Aimé Césaire) Professor. Pai do Pedro.

Nov 13, 2021, 22 tweets

Uma das histórias que acho mais interessantes sobre o poder destruidor do colonialismo é a da destruição das cisternas indianas pelos ingleses, os chamados "baoli", criados lá pelo século III depois do JC.

Quando eu estava no Ensino Médio, eu lembro de ficar surpreso com as histórias de secas na Índia. O país cruzado por dois imensos rios, no meio de uma zona de monções... Como podia ter tanta seca e fome?

Anos depois, entendi que as monções são sazonais e que pode, sim, acompanhar longos períodos de seca. Mas mesmo assim, eu fiquei encafifado... Não tinha reservatório de água lá, não?

Anos depois, na graduação, lembro de ler algo sobre os harappa (7.000 a 4.000 aC), no vale do Indo, e como eles reservavam as águas do rio e da chuva. E só muito tempo depois ouvi falar dos "baoli".

"Baoli" é um termo indiano para um poço com degraus, ou níveis. Cada nível age como um decantador, de tal forma que a água da chuva podia ser reservada sem maiores prejuízos.

A funcionalidade deles era imensa, mas em muitas civilizações, do Indo ao Ganges, os "baoli" viraram símbolos de poder. Passaram a ser ornados com estéticas próprias das elites e diante da expansão e consolidação do hinduísmo, se tornaram também lugares sagrados, que atestavam...

...o poder das castas mais altas.

Por volta do século X-XI, a cultura dos "baoli" estava difundida na Índia. Mesmo com a expansão islâmica posterior, sultanatos como o de Delhi ou o poderoso Império Mughal não mexeram nos "baoli", entendendo que além do abastecimento da água...

...havia também uma noção de comunidade ao redor dos reservatórios.
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Alguns imperadores Mughal chegaram a defender a expansão do sistema em outras regiões do subcontinente. A ideia de garantir que não faltasse água era fundamental. E isso perdurou até meados do século XVIII.

O que houve no século XVIII?

Bem, houve a Companhia das Índias Orientais e o colonialismo britânico. A consolidação dos ingleses no golfo de Bengala, as guerras kármicas, a crise do Império Mughal...tudo isso garantiu a colonização britânica na Índia.

E com ela, a razão ocidental e seu infinito senso de superioridade (inclusive racial). De fato, quando os britânicos se depararam com os "baoli", eles só enxergaram piscinas de água parada, que eles atribuíram a disseminação de doenças - como o cólera.

A primeira pandemia global de cólera teve como origem o delta do Ganges, em 1817. Essa região, também conhecida como Golfo de Bengala, estava sob domínio da Companhia das Índias Orientais desde 1763, mas isso não impediu os britânicos de designarem a doença como "cólera indiano".

Para eles, a cólera era resultado das péssimas condições de higiene dos pobres indianos e isso, portanto, justificava a destruição dos "baoli", substituindo a obtenção de água por poços artesianos.

O problema, contudo, é que os engenheiros britânicos que dinamitaram as milenares cisternas indianas não conheciam muito bem os lençóis freáticos das regiões indianas. Muitos poços secavam já nos primeiros anos, deixando as comunidades sem fonte de água potável próxima.

Disso decorre uma espiral, pois sem água potável, as pessoas passam a fazer suas necessidades em latrinas secas, deixando os dejetos à vista. E, para piorar, a pouca água disponível já não era nada limpa. Nada disso, contudo, abalou a crença britânica.

Para além disso, a expansão global das mercadorias piorou ainda mais a disseminação de doenças como o cólera. E aí, claro, além de secas muito mais intensas, toda a sorte de pestes se abateu no subcontinente indiano.

Os britânicos entendiam o cólera como algo inerente dos maus hábitos de higiene indianos e de sua alimentação considerada "bárbara". E dos quase 200 anos de colonização inglesa e mais de 55 milhões de mortos de fome, pouco se refletiu sobre o papel da Inglaterra nisso.

Enfim, essa é uma das heranças mais perversas do colonialismo britânico na Índia, construída em nome da higiene e da civilização. Mas essa história não acaba aí. Lembram dos "baoli"?

Pois é, abandonados no século XIX e XX, muitos deles estão sendo restaurados pelas municipalidades indianas. O motivo é a emergência de novas crises hídricas de abastecimento no país (é, o ogronegócio é o mesmo em toda parte).

indiatoday.in/magazine/cover…

A retomada dos "baoli", contudo, não está cercada só de utilitarismo. Eles estão sendo tratados como patrimônio histórico e cultural de civilizações indianas, o que envolve reparos de diferentes ordens.

bbc.com/future/article…

Eles também são centro de disputas do nacionalismo hindu, que alega que não foram os britânicos, mas sim os Mughal (que era muçulmanos) que deram o início a decadência dos "baoli".

republicworld.com/india-news/gen…

Mas disputas à parte, é curioso pensar que uma tecnologia iniciada entre os séculos III e V d.C. pode salvar a Índia hoje, não obstante a fúria modernizadora e racional do colonialismo e dos engenheiros britânicos.

PS: De leitura, Mike Davis sempre, claro ("Holocaustos coloniais"), mas também Shashi Tharoor (em inglês) e o artigo "Cholera and colonialism", de David Arnold.

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