Uma das histórias que acho mais interessantes sobre o poder destruidor do colonialismo é a da destruição das cisternas indianas pelos ingleses, os chamados "baoli", criados lá pelo século III depois do JC.
Quando eu estava no Ensino Médio, eu lembro de ficar surpreso com as histórias de secas na Índia. O país cruzado por dois imensos rios, no meio de uma zona de monções... Como podia ter tanta seca e fome?
Anos depois, entendi que as monções são sazonais e que pode, sim, acompanhar longos períodos de seca. Mas mesmo assim, eu fiquei encafifado... Não tinha reservatório de água lá, não?
Anos depois, na graduação, lembro de ler algo sobre os harappa (7.000 a 4.000 aC), no vale do Indo, e como eles reservavam as águas do rio e da chuva. E só muito tempo depois ouvi falar dos "baoli".
"Baoli" é um termo indiano para um poço com degraus, ou níveis. Cada nível age como um decantador, de tal forma que a água da chuva podia ser reservada sem maiores prejuízos.
A funcionalidade deles era imensa, mas em muitas civilizações, do Indo ao Ganges, os "baoli" viraram símbolos de poder. Passaram a ser ornados com estéticas próprias das elites e diante da expansão e consolidação do hinduísmo, se tornaram também lugares sagrados, que atestavam...
...o poder das castas mais altas.
Por volta do século X-XI, a cultura dos "baoli" estava difundida na Índia. Mesmo com a expansão islâmica posterior, sultanatos como o de Delhi ou o poderoso Império Mughal não mexeram nos "baoli", entendendo que além do abastecimento da água...
...havia também uma noção de comunidade ao redor dos reservatórios.
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Alguns imperadores Mughal chegaram a defender a expansão do sistema em outras regiões do subcontinente. A ideia de garantir que não faltasse água era fundamental. E isso perdurou até meados do século XVIII.
O que houve no século XVIII?
Bem, houve a Companhia das Índias Orientais e o colonialismo britânico. A consolidação dos ingleses no golfo de Bengala, as guerras kármicas, a crise do Império Mughal...tudo isso garantiu a colonização britânica na Índia.
E com ela, a razão ocidental e seu infinito senso de superioridade (inclusive racial). De fato, quando os britânicos se depararam com os "baoli", eles só enxergaram piscinas de água parada, que eles atribuíram a disseminação de doenças - como o cólera.
A primeira pandemia global de cólera teve como origem o delta do Ganges, em 1817. Essa região, também conhecida como Golfo de Bengala, estava sob domínio da Companhia das Índias Orientais desde 1763, mas isso não impediu os britânicos de designarem a doença como "cólera indiano".
Para eles, a cólera era resultado das péssimas condições de higiene dos pobres indianos e isso, portanto, justificava a destruição dos "baoli", substituindo a obtenção de água por poços artesianos.
O problema, contudo, é que os engenheiros britânicos que dinamitaram as milenares cisternas indianas não conheciam muito bem os lençóis freáticos das regiões indianas. Muitos poços secavam já nos primeiros anos, deixando as comunidades sem fonte de água potável próxima.
Disso decorre uma espiral, pois sem água potável, as pessoas passam a fazer suas necessidades em latrinas secas, deixando os dejetos à vista. E, para piorar, a pouca água disponível já não era nada limpa. Nada disso, contudo, abalou a crença britânica.
Para além disso, a expansão global das mercadorias piorou ainda mais a disseminação de doenças como o cólera. E aí, claro, além de secas muito mais intensas, toda a sorte de pestes se abateu no subcontinente indiano.
Os britânicos entendiam o cólera como algo inerente dos maus hábitos de higiene indianos e de sua alimentação considerada "bárbara". E dos quase 200 anos de colonização inglesa e mais de 55 milhões de mortos de fome, pouco se refletiu sobre o papel da Inglaterra nisso.
Enfim, essa é uma das heranças mais perversas do colonialismo britânico na Índia, construída em nome da higiene e da civilização. Mas essa história não acaba aí. Lembram dos "baoli"?
Pois é, abandonados no século XIX e XX, muitos deles estão sendo restaurados pelas municipalidades indianas. O motivo é a emergência de novas crises hídricas de abastecimento no país (é, o ogronegócio é o mesmo em toda parte).
A retomada dos "baoli", contudo, não está cercada só de utilitarismo. Eles estão sendo tratados como patrimônio histórico e cultural de civilizações indianas, o que envolve reparos de diferentes ordens.
Eles também são centro de disputas do nacionalismo hindu, que alega que não foram os britânicos, mas sim os Mughal (que era muçulmanos) que deram o início a decadência dos "baoli".
Mas disputas à parte, é curioso pensar que uma tecnologia iniciada entre os séculos III e V d.C. pode salvar a Índia hoje, não obstante a fúria modernizadora e racional do colonialismo e dos engenheiros britânicos.
PS: De leitura, Mike Davis sempre, claro ("Holocaustos coloniais"), mas também Shashi Tharoor (em inglês) e o artigo "Cholera and colonialism", de David Arnold.
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Dormi mal ontem por causa do horror do que houve ontem em Gaza, do massacre de civis que buscavam alimentos.
Parece que segundo os monopolizadores da memória do holocausto, não se pode fazer comparações com o nazismo.
Beleza. Vou lembrar do que houve na Índia, em 1919.
Nesse ano, os ingleses praticamente sepultaram todas as conversas com os líderes indianos para um plano de independência. E, tão logo a 1ª GM acabou, os ingleses promulgaram o Rowlatt Act, uma lei que permitia que o governo colonial britânico prendesse qualquer pessoa...
...suspeita de participar de qualquer atividade contrária ao governo colonial. E mais: elas sequer teriam acesso aos processos. Kafka é fichinha.
Na região do Punjab, ao longo dos meses de março e abril, uma série de protestos contra a lei deixaram os governadores e chefes...
É preciso que se diga uma coisa sobre negacionismo do holocausto.
Um dos maiores nomes críticos a esse negacionismo foi um historiador francês e judeu chamado Pierre Vidal-Naqet.
Vidal-Naqet escreveu, em 1987, um livro chamado "Os assassinos da memória", onde desfere duras críticas a acadêmicos e a imprensa por darem palco aos chamados intelectuais negacionistas.
Baseada numa falsa ideia de "arena pública", muita gente acabou abrindo espaço para negacionistas preferirem as maiores mentiras sobre a Shoah. E, em alguns casos, com o aval de intelectuais renomados (como Noam Chomsky, p. ex.).
Por ocasião do conflito, tenho tentado retomar leituras sobre movimentos israelenses e palestinos que lutaram contra o sionismo ao longo do século XX.
Um dos mais interessantes foi o Matzpen:
Durante a Guerra dos Seis Dias, o Matzpen se aliou com grupos palestinos para denunciar a guerra e exigir a "des-sionização" de Israel. A defesa era da criação de um Estado único e secular para árabes e israelenses.
Na verdade, nos anos 1960 e 1970, uma parcela significativa da esquerda israelense era anti-sionista. A Guerra dos Seis Dias foi determinante nesse sentido, mas os "rachas" entre a esquerda (inclusive os comunistas) era anterior.
Em 1967, as cortes israelenses criaram dois sistemas jurídicos distintos. A jurisprudência dos territórios ocupados é coordenada por tribunais militares.
Ontem eu postei um mapa que o Irgun divulgava sobre o projeto de Erez Israel, na década de 1930 - e que manteve-se fiel a ele em 1940.
Fui acusado de antissemitismo por isso. Mas antes de dar processo a rodo, vou dar aula de história.
A história do Irgun remete ao sionismo revisionista de Ze'ev Jabotinsky. Na formação do sionismo político israelense após 1917, Jabotisnky liderou um grupo de sionistas que contestava o pragmatismo de líderes como Ben Gurion.
Para eles, a Palestina deveria ser conquistada...
...militarmente. E isso implicava (nos anos 1930, ao menos) num governo militarista e autoritário. Jabotinsky era um grande admirador do fascismo italiano e de Benito Mussolini.
Mas para além da conquista da Palestina, Jabotinsky defendia a criação da "Grande Israel".
7 livros que fundamentaram as minhas concepções sobre a questão Palestina:
1) "A questão da Palestina", de Edward Said. Um livro inescapável. A partir da história da colonização israelense na Palestina durante os anos do mandato britânico, o autor mostra como a identidade palestina se construiu num "não-direito" à terra.
2) "The Palestine Nakba", de Nur Masalha. Infelizmente, sem tradução, mas um livro poderoso que retoma a importância de entender um projeto de História decolonial por meio da memória dos palestinos sobre a Nakba, a "catástrofe", ocorrida em 1948.