Pedro Henrique Tunes Profile picture
Biólogo, mestre em Zoologia pela UFMG e especialista em ursos extintos brasileiros - Conta pessoal @IDunes (não devo te aceitar)

Jan 22, 2022, 31 tweets

Você já ouviu falar no Macaco-de-loys, um primata de quase 1,60 m, extremamente semelhante a um hominídeo, que vivia na floresta Amazônica até 1917?
Venha conhecer o hominídeo das Américas que nunca existiu, em uma história que reúne fraudes, colonialismo científico e racismo.

Durante o século XX, a Europa e os Estados Unidos criaram um enorme interesse pelo Sul do mundo. "Regiões intocadas pelo homem" ou "pouco civilizadas" poderiam conter tesouros inimagináveis e curiosidades científicas, sendo frequentemente visitadas por "exploradores"

Expedições científicas muitas vezes eram exclusivamente realizadas com o fim de encontrar riquezas (sendo joias, metais ou "seres curiosos"), que poderiam ser vendidas para museus ou colecionadores. Múmias, animais, cabeças humanas, tudo valia, desde que oferecessem lucro

Nessa época, esse tipo de mercadoria passou a ser tão procurada que diversos produtos foram forjados para serem vendidos. Aves-do-paraíso eram empalhadas sem suas patas e vendidas na Europa como "aves que nunca pousavam", sendo mais estranhas e, portanto, mais valiosas

Cabeças encolhidas eram cabeças humanas que passavam por práticas ritualísticas de povos da América do Sul. O preço desses produtos subiu tanto na Europa que pessoas passaram a cometer assassinatos para arrancar cabeças e encolhê-las, vendendo como cabeças ritualísticas legítimas

Entretanto, nem apenas de produtos viviam esses exploradores. Retornar de uma viagem contando que você avistou um monstro gigante poderia te dar muito prestígio. Por que não contar que você matou o monstro também? Uma pena que você não tem provas, mas é verdade esse bilete

Apelidadas de Hoax, essas Fake News científicas começaram a se tornar cada vez mais comuns, sobretudo entre exploradores que visitavam a África Central ou a Amazônia, regiões "selvagens e intocadas, onde tudo pode existir", onde civilizações perdidas viviam no meio de monstros

Esses contos inspiraram filmes como Indiana Jones (que mostram até o crânio supostamente feito de cristal por indígenas sul americanos, mas q foi talhado na Alemanha) ou, o mais recente, The Lost City of Z, uma suposta civilização perdida no Mato Grosso encontrada por Percy Fawc

É aí que entra o explorador suíço François de Loys e uma grande expedição realizada por ele na fronteira entre a Colômbia e a Venezuela, que buscava petróleo na região entre 1917–1920.

A região extremamente isolada contribuiu para a dificuldade da expedição. Muitos morreram por diversas causas e, dos 20 exploradores, apenas 4 sobreviverem. Segundo De Loy, a maioria foi morta pelos indígenas da região, mas ele era bem fanfiqueiro (vcs vão entender já já)

Supostamente, ele e sua equipe estavam na beira de um rio (antes da maioria morrer) quando dois macacos se aproximaram. Andando nas patas de trás, jogando excrementos e chacoalhando galhos como armas, eles tentaram atacar os humanos, que atiraram nos dois e mataram uma fêmea

A equipe fotografou o suposto macaco gigante (usando um galho para que ele ficasse em pé) e tentou levar o corpo, mas no final das contas só a foto sobrou. Suspeito, né?
Isso foi em 1917 e ele basicamente ESQUECEU que encontrou um macaco gigante, até que outro cientista +

encontrou a foto nos seus diários de viagem e convenceu De Loys que eles tinham que publicar (Aham, vc faz a descoberta do século, esquece disso por NOVE anos até te lembrarem e ainda a pessoa tem que te convencer a publicar. De Loys era mais fanfiqueiro que a Lady Gaga, credo)

Como era de se esperar, a história foi um sucesso, sobretudo pois solucionou um grande mistério: "Encontramos o elo-perdido dos índios, o que explica eles serem inferiores!" - Sim, a manchete era basicamente essa.
Com o crescimento de ideias eugenistas na Europa e EUA, criou-se +

a teoria que diferentes grupos humanos tinham diferentes origens, cada um vindo de um ancestral diferente (colocando os brancos como superiores ao resto do mundo), uma teoria que foi, em parte, a base do nazismo e perdurou muito após a Segunda Guerra Mundial

O macaco-de-Loys se encaixava perfeitamente nessa ideia e era inquestionado por grande parte da comunidade científica da época (nm preciso dizer que era composta por homens, brancos e ricos, né?)
Já deu para imaginar algumas implicações dessa "mentirinha", né? (Fake news é serio)

Em resumo, o primata não só não era ancestral dos povos nativos-americanos (obviamente), como nunca existiu.
Em resumo, a foto é de um macaco-aranha morto que teve o rabo cortado e foi colocado em uma pose "humana", dando o aspecto de hominídeo para o animal

Para piorar, a foto em si também foi forjada. Repare nas fotos da esquerda: Um macaco-aranha (de tamanho normal) e o De Loys sentados em um caixote, que aparece quebrado na foto da direita, em baixo do macaco-de-Loys. Eles reduziram o caixote, para o macaco parecer bem maior

Muito provavelmente, ela também não foi tirada em uma "selva intocada", e sim próximo de uma comunidade indígena (ou até mesmo nem foi na região), uma vez que bananeiras recém plantadas podem ser vistas na imagem (ou será que os macacos-de-Loys plantavam bananeiras na mata?)

Como podem ver, as fake-news científicas (hoax) podem ser extremamente perigosas, e são utilizadas para disseminar ideologias. O macaco-de-Loys foi uma justificativa ""científica"" para justificar o neoimperialismo e, até mesmo, a perseguição e o extermínio de outros povos

As falsas sobre vacinas são hoaxes modernas que estão ocasionando a morte de milhares de pessoas, exclusivamente com o objetivo de disseminar ideologias. A psedociência é extremamente perigosa e pode ter consequências inimagináveis no futuro

Essa história é apenas um lembrete de como devemos SEMPRE nos atentar à ciência verdadeira, que utiliza métodos científicos, além de ressaltar o triste passado colonialista e racista de parte da ciência que, sendo honesto, perdura até hoje em relação ao Sul do mundo

A Europa e a América do Norte seguem roubando a ciência do sul de forma totalmente antiética, com os mesmos argumentos, porém refinados. Eles não nos roubam porque somos inferiores, agora eles roubam porque nossa ciência é vista como inferior (né Alemanha? #ubirajarabelongstoBR )

Precisamos continuar lutando contra o racismo e colonialismo científico (que acontece até mesmo entre estados aqui do Brasil) e batalhando por cada vez mais justiça científica. Um povo só tem total soberania se pode controlar sua ciência e sua história

Apoiem nossa ciência, apoiem nossos cientistas e apoiem iniciativas como a @PalaeoVsRacism e a luta de pessoas como a @alinemghilardi para devolverem o que nos pertence.

Espero que tenham gostado de conhecer um pouco mais sobre fake news científicas e me sigam nas minhas outras redes linktr.ee/pedrohenriquet…

N ganho nada com divulgação científica e estou desempregado, então quem puder ajudar com um PIX de qualquer valor: pedrotunes00@gmail.com

Venha conhecer o maior macaco (real) que já viveu nas Américas e foi extinto só há 10 mil anos

Se quiserem se aprofundar no assunto, recomendo o vídeo de @Trey_Explainer

Ou essa thread fantástica do @TetZoo

Inclusive, um ponto interessante a se ressaltar. Essa teoria de que diferentes "raças" tenham surgido de diferentes ancestrais é conhecida como "hologenesis hypothesis" ou "Polygenism". Segundo a teoria, os brancos (arianos, ancestrais dos europeus) surgiram de homens ancestrais+

como o Homo erectus, enquanto os povos asiáticos surgiram de orangotangos e pretos surgiram de chimpanzés. Xingar alguém de "macaco" não só é algo extremamente racista mas vem exatamente de uma ideologia nazista. Mesmo assim é tratado como "injuria racial" pela nossa legislação

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