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Professor @UFBA @SejaIDP. Doutor em Direito. Associado @brasil_ila @idinstituto / Telegram: https://t.co/0FMHfIv3RC / Link Tree: https://t.co/2pwIUwqqU3

Apr 16, 23 tweets

NÃO CABE: “Na decisão, Moraes diz que a interrupção foi definida porque a Espanha descumpriu o "requisito da reciprocidade" no tratado de extradição que mantém com o Brasil ao negar o envio do blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio.” g1.globo.com/politica/notic…

Atenção concurseiros e amantes do direito internacional, vamos aproveitar o mote para estudar cooperação internacional para fins de extradição.

Meu livro pode ser um bom ponto de partida para o debate. editorajuspodivm.com.br/cooperacao-pen…

Então vamos lá.

Com todo respeito ao ministro Alexandre de Moraes, na minha visão doutrinária, não faz sentido a alegação de falta de reciprocidade por parte da Espanha, neste caso.

O pedido brasileiro foi fundado no tratado bilateral celebrado com Madri em 1988, e não em compromisso de reciprocidade.

Deferir ou indeferir extradições é ato relativo à soberania do Estado, de acordo com as causas de recusa que constam do próprio acordo extradicional.

Conforme o artigo 4º, §1, do Tratado hispano-brasileiro, o Estado requerido pode negar a extradição por vários motivos, entre eles:

“f) quando a infração constituir delito político ou fato conexo”.

Segundo o §2 do artigo 4º do tratado hispano-brasileiro, cabe exclusivamente ao tribunal competente do Estado requerido (que é a Espanha no caso concreto), determinar se o crime atribuído ao extraditando tem caráter político:

“A apreciação do caráter do crime caberá exclusivamente às autoridades do Estado requerido”.

Essa previsão é igual à da legislação brasileira, constante do artigo 82, VII, e § 2º, da Lei 13.445/2017, que regula as extradições passivas, isto é, aquelas nas quais o Brasil é o Estado requerido. Se estivéssemos diante de uma extradição passiva, caberia ao STF dizer se o pedido estrangeiro tinha ou não como objeto um crime era político. Como o pedido é ativo, compete à Espanha dizê-lo.

Ainda que assim não fosse, as normas previstas no tratado Brasil/Espanha têm caráter de lei especial, conforme o artigo 1º, inciso I, do CPP). Na relação bilateral, sobrepõem-se à legislação processual brasileira, de modo que a Espanha simplesmente cumpriu o tratado, conforme a interpretação de um seu tribunal superior, a Audiência Nacional.

O Estado brasileiro ainda pode recorrer para o pleno da “Sala de lo Penal”, o colegiado criminal da Audiência Nacional. A decisão, portanto, não é definitiva; pode ser reformada pelo próprio Judiciário espanhol, mediante “recurso de súplica”, a ser interposto no prazo é de 3 dias a contar da data da intimação do acórdão.

A Audiência Nacional (AN) é formada por 4 Salas ou Cortes: Sala de lo Penal, Sala de Apelación, Sala de lo Contencioso-Administrativo, Sala de lo Social.

A Sala ou Corte Penal é dividida em 4 Seções.

Em 14 de abril de 2025, a 3ª Seção Criminal da Sala Penal da AN decidiu:

“El contexto de contienda política en el que se desarrollan —tipificadas en nuestro Código Penal como delitos menos graves—; los procedimientos penales abiertos en Brasil contra el reclamado por infracciones penales de naturaleza análoga; su condición de periodista; las tres detenciones que ha sufrido; los malos tratos de que dice haber sido objeto —extremo que ha sido apoyado por la declaración de un grupo de diputados federales del Congreso Nacional Brasileño, incorporada por escrito— constituyen razones suficientemente fundadas para creer que, de concederse la extradición, habrá un riesgo elevado de que la situación del reclamado pueda verse agravada por causa de sus opiniones políticas y su adscripción a determinada ideología”.

Se esse entendimento restritivo da Audiência Nacional está correto ou não, somente a própria Justiça espanhola poderá dizer, ao apreciar o recurso que vier a ser interposto.

Como a decisão espanhola fundou-se no direito vigente e está sujeita a recurso, não há razão nem espaço para retaliação ao Estado espanhol, ainda mais pela via judicial,

De mais a mais, esta medida, se fosse cabível, seria de competência da Presidência da República, por meio do @ItamaratyGovBr , nos termos dos artigos 21 e 84 da Constituição:

“Art. 21. Compete à União:
I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;”

“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
VII - manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos;
VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;”

Assim, a decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, adotada de ofício na Extradição 1902, relativa ao cidadão búlgaro Vasil Georgiev Vasilev, colocou lenha na fogueira das relações internacionais bilaterais.

Nela, além de pôr o narcotraficante búlgaro em prisão domiciliar, o ministro mandou oficiar à Embaixada do Reino da Espanha, para que o Embaixador preste informações em 5 dias sobre a suposta violação de reciprocidade.

Como vimos, não é disso que se trata. O indeferimento do pedido brasileiro por um órgão colegiado fracionário da Audiência Nacional foi baseado em normas legais expressas, que devem ser debatidas em eventual recurso interposto pelo MP espanhol (a “Fiscalía” foi contrária extradição…) ou por advogado contratado pelo Brasil para atuar naquele juízo estrangeiro.

A AGU declarou que faria isso. Antes de pensar em qualquer forma de retorsão contra a Espanha, é caso de se esperar uma revisão da decisão denegatória. Depois, se retoma não houver, ainda se poderia discutir o assunto em negociações diplomáticas.

Em extradição, o princípio da reciprocidade costuma se aplicar às inteiras quando não há tratado para regular a relação jurídica extradicional. Não é o caso.

Acertada ou erradamente, a Espanha invocou uma disposição do próprio tratado bilateral (lex specialis), outra de sua Constituição (artigo 13.3) e mais uma de sua legislação ordinária (artigo 4.1 da Ley 4, de 1985) para recusar o pedido de extradição passiva da pessoa procurada pelo STF.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu nem será a última.

São inúmeros os casos nos quais o Brasil não teve êxito na extradição (ativa) de pessoas foragidas.

Para começar, dou dois exemplos: os casos de Salvatore Cacciola (Itália) e de Rodrigo Tacla Durán (Espanha).

Noutras oportunidades, em pedidos passivos (Brasil como Estado requerido), o próprio STF indeferiu extradições de réus para outros países, valendo-se de razões previstas na lei brasileira ou nos tratados de regência.

Cito o caso de Yakup Sagar (EXT 1693), cuja extradição para a Turquia foi negada pelo STF. Esse cidadão turco era acusado pelo MP de seu país de tentativa de golpe para a derrubada do governo. O STF considerou entre outros pontos a motivação política do pedido turco e indeferiu a repatriação.

Podemos lembrar outros tantos casos nos quais o STF negou a extradição de foragidos procurados por outros países. Os motivos alegados pela Corte têm sido os mais variados, mas todos fundados na legislação vigente.

Pedidos da China foram denegados por temor de perseguição política ou de aplicação da pena de morte.

Ronald Biggs, o famoso “Assaltante do Trem Pagador” inglês, teve sua extradição para o Reino Unido indeferida pelo STF por prescrição, conforme a lei brasileira. O fato não estava prescrito na Inglaterra.

Um pedido de extradição formulado pela Grécia foi rejeitado pelo STF para impedir o bis in idem contra o extraditando. Ninguém pode ser processado, condenado ou cumprir pena duas vezes pelos mesmos fatos.

Em 2024, o STF negou pedido de extradição apresentado pela Coreia do Sul, por questões humanitárias e pela desproporcionalidade da medida de repatriação compulsória em face da pena aplicada ao réu e de suas circunstâncias pessoais, com família no Brasil.

Em 2006, dois pedidos de extradição para a Alemanha foram rejeitados pelo STF porque a Corte brasileira considerou inexequíveis as promessas de reciprocidade apresentadas por Berlim.

É que, embora o Brasil possa, em certos casos, extraditar brasileiros naturalizados, o artigo 16.2 da Constituição alemã não o permite.

Alemães (natos ou naturalizados, não importa) só podem ser submetidos a entrega horizontal para outros países da União Europeia, ou sujeitam-se a entrega vertical para um tribunal penal internacional.

Assim, antecipando que Berlim não poderia cumprir o que prometeu, o STF negou os pedidos.

No campo histórico, temos alguns exemplos de indeferimentos de extradição por motivos sensíveis.

Em 2001, o STF rejeitou a extradição do general Lino Oviedo para o Paraguai por ver motivação política no pedido de Assunção.

Em 1979, o STF rejeitou quatro pedidos de extradição formulados contra Gustav Franz Wagner, oficial nazista conhecido como a “Besta de Sobibor”. Responsável pela morte de centenas de milhares de judeus na Polônia, durante a 2ª Guerra Mundial, Wagner fugiu por uma ratline e se escondeu no Brasil.

Os pedidos de extradição formulados concorrentemente pela Alemanha, Áustria, Israel e Polônia foram julgados em conjunto em 20/06/1979 e rejeitados pelo STF.

No geral, a Corte negou as solicitações por prescrição (mesmo em se tratando de crimes contra a humanidade), ou por irretroatividade da lei penal (mesmo em se tratando de crimes de jus cogens), ou por atipicidade de alguns dos fatos imputados ao oficial nazista.

Wagner ficou livre no Brasil até se matar em Atibaia em 03/10/1980.

Falei sobre as ratlines usadas por nazistas no Pós-Guerra neste post no meu blog: vladimiraras.blog/2017/02/12/cam…

Há ainda um complicador: a suspensão da tramitação de um pedido de extradição espanhol, relativo a um traficante de drogas, como forma de retaliação, suscita controvérsia quanto ao potencial descumprimento pelo Brasil da Convenção de Viena de 1988.

Não há qualquer relação entre um e outro pedido. Ademais, nenhum deles se funda em promessa de reciprocidade.

O artigo 6º, §5º, da CV/1988 determina que:

“5 . A extradição estará sujeita às condições previstas pela legislação da Parte requerida ou pelos tratados de extradição aplicáveis, incluindo os motivos pelos quais a Parte requerida pode denegar a extradição.”

A retaliação por decisão do STF não está prevista como causa legítima de recusa de pedido de extradição, nem nos tratados nem na lei brasileira que regula a matéria (Lei 13.445/2017).

Os motivos legais e convencionais para a recusa de pedidos extradicionais são numerus clausus, não podendo ser ampliados, sob pena de se violar o princípio pacta sunt servanda (art. 26 da Convenção de Viena de 1969) e o princípio cooperacional (pro solicitudine).

Também essa decisão está sujeita a recurso, seja pela PGR ou mesmo pelo Reino da Espanha, caso o país constitua advogado nos autos da Extradição 1902.

Em suma, se a decisão de uma das “Turmas” da Audiência Nacional espanhol estiver errada (e pode estar ou não), será o trabalho da @AdvocaciaGeral, em conjunto com a @MPF_PGR , que poderá revertê-la na via própria, a recursal.

O direito ao recurso também faz parte do devido processo legal cooperacional.

Vamos a um exemplo:

Em 2012, o STF condenou Henrique Pizzolato na ação penal 470 (Mensalão). Logo depois ele fugiu. Em 2014, foi localizado e preso na Itália para fins de extradição.

Considerando a prisão decretada pelo @STF_oficial (na primeira extradição ativa da história da Corte), a @PGR pôs-se a trabalhar com @AdvocaciaGeral , o @mjspgov e o @ItamaratyGovBr para trazê-lo de volta ao Brasil.

Em outubro de 2014, o Tribunal de Apelação de Bolonha negou a extradição de Pizzolato, que havia sido condenado por peculato, corrupção e lavagem de dinheiro.

A pedido do @MPF_PGR, a @AdvocaciaGeral já havia contratado um advogado para representar o Brasil no processo extradicional.

Os recursos apresentados pelo
MP italiano e pelo advogado brasileiro perante a Corte de Cassação em Roma foram exitosos.

O acórdão da Cassação foi publicado em fevereiro de 2015, um ano após a prisão. O caminho extradicional foi reaberto.

Faltava porém a decisão do MJ italiano.

A decisão do Ministro da Justiça em Roma para a entrega da custódia de Pizzolato ao Brasil saiu em 2015, mas a defesa a impugnou em recurso ao Tribunal Administrativo Regional (TAR) do Lazzio. Essa corte sustou mais uma vez a extradição.

O Brasil então recorreu de novo, desta feita ao Conselho de Estado. Em setembro, o que parecia o último obstáculo à extradição de Pizzolato foi superado.

A defesa de Pizzolato ainda tinha uma última arma. Um pedido de medida cautelar à Corte Europeia de Direitos Humanos, para barrar a extradição ao Brasil. Não funcionou.

Finalmente, em outubro de 2015, Pizzolato chegou ao Brasil para cumprir sua pena e a cumpriu.

Nada mais deve à Justiça brasileira.

PS - *Nenhuma medida retaliatória contra a Itália foi adotada neste caso.

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