Uma thread sobre ambições internacionais, geopolítica e fake news
1. Os rumores sobre a cobiça internacional sobre a Amazônia não são novos. Dado o inegável valor estratégico, ecológico e econômico da região amazônica, o imaginário coletivo sempre foi povoado por acusações de sabotagem, espionagem, pirataria e imperialismo estrangeiros.
2. É possível que a 1a história sobre esses temores seja de 1689, quando um jesuíta alemão, Samuel Fritz, foi impedido pelos portugueses de retornar à tribo Yurimágua, no Alto Solimões, por acusações de espionagem. Só conseguiu voltar, tempos depois, acompanhado por tropas lusas.
3. Ao longo do século 18, a vulnerabilidade das fronteiras amazônicas levou 🇵🇹 a transformar a demografia local, abolindo a escravidão indígena (1755), transformando vilas religiosas em cidades civis e encorajando a miscigenação entre brancos e indígenas na região.
4. Após a independência, a defesa do território amazônico tornou-se 1 dos elementos + sensíveis do emergente nacionalismo brasileiro.
Mas as preocupações se deslocaram da Europa para os 🇺🇸: no auge do expansionismo norte-americano, a Amazônia tornou-se objeto de desejo ianque.
5. Inspirado pelo destino manifesto, Matthew Maury, tenente da Marinha 🇺🇸, defendeu a invasão da Amazônia como forma de resolver os problemas sociais dos estados sulistas frente à pressão abolicionista. A floresta seria, na visão dele, uma extensão natural do vale do Mississippi.
6. Alguns escritos de Maury foram publicados no Correio Mercantil em 1853 e geraram imediata reação. Teixeira de Macedo, diplomata e ministro, fez dura crítica à arrogância anglo-americana, "convencidos de que devem regenerar todo o mundo e governar a partir de sua influência"
7. O desejo de transformar o 🇧🇷 numa potência levou Getúlio Vargas a propor uma marcha p/o oeste. Em discurso na Biblioteca Nacional de Manaus, em 1940, falou em "destino brasileiro do Amazonas", cuja tarefa era desbravar, conquistar e dominar aquele "espaço imenso e despovoado".
8. Segundo Vargas, "a mais alta tarefa do homem civilizado é conquistar e dominar os vales das grandes torrentes equatoriais, transformando a sua força cega e a sua fertilidade extraordinária em energia disciplinada. O Amazonas tornar-se-á um capítulo da história da civilização"
9. Com o fim da 2a Guerra e a criação da ONU, surge uma das + polêmicas propostas sobre a Amazônia.
O cientista Paulo Berraldo Carneiro, buscando desenvolver a pesquisa no país, sugere a criação do Instituto Internacional da Hileia Amazônica (IIHA), encampado pela UNESCO em 1947
10. Após várias rodadas de negociações, o IIHA foi estabelecido pela Convenção de Iquitos, de 1948. O presidente Dutra, interessado em valorizar a Amazônia, recomendou ao Congresso que se aprovasse o projeto. Ele só não esperava que alguns parlamentares denunciassem a proposta.
11. O + vocal opositor do IIHA era o ex-presidente Artur Bernardes, deputado por MG. No embalo da campanha nacionalista "O Petróleo é Nosso", Bernardes atacou a proposta, que considerava uma forma velada de "internacionalização da Amazônia" pelas potências, com anuência da UNESCO
12. O nacionalismo de Bernardes contagiou o Congresso, de modo que o projeto do IIHA não chegou a ser votado.
Em discurso, o deputado falava do risco de se lotear a Amazônia "em zonas coloniais p/um condomínio de nações", sendo o fim humilhante da soberania brasileira.
13. A ideia de integração nacional, contudo, só irá se materializar alguns anos mais tarde, em 1966, quando militares e empresários sinalizaram a transição da "Amazônia dos rios" para a "Amazônia das estradas".
14. Conhecido como "Operação Amazônia", o sistema de colonização da região envolveu empreendimentos rurais e empresariais, articulados pelo regime por meio de órgãos como SUDAM, SUFRAMA, INCRA e Banco da Amazônia (BASA).
O lema dos militares era "ocupar para não entregar".
15. Ao mesmo tempo, o 🇧🇷 mantinha uma postura defensiva com relação ao debate ecológico. Na Conferência de Estocolmo de 1972, antecessora direta da Rio-92, o Brasil culpava os ricos pela poluição e insistia que preservação ambiental era incompatível c/ desenvolvimento soberano.
16. A redemocratização do 🇧🇷 coincidiu c/a "segunda onda do meio ambiente", marcada pela publicação do relatório Our Common Future (1987), que introduziu o conceito de desenvolvimento sustentável. No ano seguinte, foi criado o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.
17. Se os militares conseguiram evitar embates ambientais, o governo Sarney tornou-se alvo de críticas internacionais. Em 1988, matéria do @nytimes alegava que as queimadas na Amazônia poderiam estar causando o aquecimento global - e o 🇧🇷 seria o culpado
18. A resposta do 🇧🇷 foi imediata. A CF-88 dedicou o Art. 255 ao meio ambiente, de autoria de @fabio_feldmann. No mesmo mês, Sarney lançou o Programa Nossa Natureza, que integrava 7 ministérios, reitrava incentivos fiscais de projetos agropecuários na floresta e criava o IBAMA.
19. Também em 1988, partiu do @ItamaratyGovBr a ideia de oferecer o Brasil como sede para a realização da Conferência Ambiental que daria sequência a Estocolmo, 4 anos mais tarde.
A ideia brasileira era melhorar a credibilidade do país, cuja imagem estava desgastada no exterior.
20. Mas ninguém esperava q, na véspera do Natal de 1988, o ambientalista Chico Mendes fosse brutalmente assassinado. Ele era criticado por fazendeiros por "atrapalhar o progresso". Ameaçado de morte, chegou a fazer denúncia em entrevista ao @JornaldoBrasil, que não foi publicada.
21. O assassinato de Chico teve enorme repercussão internacional. Os olhos do mundo se voltaram para a Amazônia. Em 1989, @PaulMcCartney gravou música em homenagem ao seringueiro. No mesmo ano, @OfficialSting saiu em turnê c/o Cacique Raoni, chamando atenção p/a questão indígena.
22. No início de 1989, uma delegação parlamentar dos 🇺🇸 veio ao país e reuniu-se c/Sarney. O jovem senador @algore, que seria eleito vice 3 anos depois, declarou à imprensa: "ao contrário do que creem os brasileiros, a Amazônia não é sua propriedade, ela pertence a todos nós"
23. Meses + tarde, os 🇫🇷 @mrocard e @fmitterrand defenderam variações dessa mesma ideia numa Conferência Ambiental.
A diplomatas brasileiros, Rocard disse que o 🇧🇷 não era capaz de cuidar da Amazônia. Mitterrand sugeriu que nós abríssemos mão da soberania em questões ambientais.
24. O que estava na mesa era um conceito novo, o "direito de ingerência".
Criada pelo jurista francês Bernard Kouchner, a doutrina desafiava a ideia de soberania em casos de crise humanitária - e agora estava sendo estendida a casos de "massacres ambientais"
25. O risco de uma intervenção internacional para "roubar" a Amazônia passou a povoar os pesadelos dos nacionalistas, à direita ou à esquerda.
O caricato Enéas Carneiro, eterno candidato à presidência e deputado, contribuiu para disseminar a narrativa.
26. Em 1998, o deputado Bernardo Cabral fez um discurso alarmista na Câmara, em que se referiu à obra do Gal. Rubens Bayma Denis sobre a Amazônia p/denunciar uma possível ingerência dos 🇺🇸 na região. Chama atenção p/memorando de 1817, "Desmobilization (!) of the Colony of Brazil"
27. Esse memorando teria sido escrito por um certo Capitão da Marinha dos 🇺🇸, Mathew Fawry, e revelava planos norte-americanos p/dividir o 🇧🇷 e estabelecer 1 "Estado Soberano da Amazônia".
É da 1a fake news de grande escala sobre o tema, c/vaga relação com a realidade histórica
28. Em 2000, o Comandante Militar da Amazônia, Luis Gonzaga Lessa, previu que intervenções militares p/proteger o meio ambiente seriam a "tendência da nova década". Os interesses estrangeiros, por meio de ONGs ambientalistas/humanitárias, seria pelos bens do subsolo e da floresta
29. Naquele mesmo ano, a 2a fake news, ainda mais poderosa: os livros didáticos nos 🇺🇸 já estariam colocando a Amazônia como território internacional.
Apesar da falsificação tosca, a imagem circulou amplamente, tendo sido compartilhada, inclusive, pelo @Estadao e pela @SBPCnet
30. Em meio aos boatos, o ex-governador do DF, @Sen_Cristovam, publicou 1 reflexão sobre a internacionalização da Amazônia. Que internacionalizemos o petróleo, museus e as armas nucleares do mundo! Só que o texto acabou amplificando ainda + a narrativa.
@Sen_Cristovam 31. Numa época em que a internet era bastante limitada (tanto para disseminar quanto para combater as fake news), um dos maiores caçadores de mitos sobre a internacionalização da Amazônia foi @PauloAlmeida53, que servia na embaixada do 🇧🇷 em Washington
32. Por + que se tentasse combater o mito da internacionalização, os temores da ingerência, ampliados pelo comportamento unilateral de George W. Bush no pós-11 de setembro, fizeram com que o chanceler Luiz Felipe Lampreia fosse chamado para prestar explicações ao Congresso.
33. O interessante dessa narrativa conspiratória é que, apesar de ter suas origens no discurso militar, ela se popularizou rapidamente entre a esquerda antineoliberal.
Para o antropólogo Sean Mitchell, isso tem a ver c/ a combinação de nacionalismo antiamericano e internet.
34. A história da internacionalização ressurge a cada par de anos. Em 2006, p.ex., o Secretário do Meio Ambiente do Reino Unido, @DMiliband, cogitou a privatização da floresta amazônica como forma de preservá-la. Foi o bastante para atiçar os nacionalistas reporterbrasil.org.br/2006/10/intern…
36. De todo modo, a atitude correta de qualquer governo é repetir o óbvio: a Amazônia é brasileira e não está à venda. Qualquer interesse estrangeiro que coloque em risco a soberania do 🇧🇷 não pode ser tolerado. tribunapr.com.br/noticias/brasi…
37. O problema é quando isso vira carta branca para o governo, em nome da soberania sobre a Amazônia, perseguir ambientalistas, flexibilizar leis ambientais ou incentivar o desmatamento para atender a interesses econômicos.
38. Percebam, por fim, que os temores brasileiros de que as potências querem internacionalizar a Amazônia e os temores estrangeiros de que o 🇧🇷 está destruindo o "pulmão do 🌍" são narrativas que se retroalimentam, contribuindo para uma escalada de tensões que não é boa p/ninguém
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Muita gente negando que o titio @elonmusk seja de extrema direita. "Ele só está defendendo a liberdade de expressão!", dizem.
Não é sobre liberdade, mas sobre ideologia. Nesse campo, Musk vem jogando pela direita de maneira cada vez mais aberta. Vamos falar disso em 10 exemplos?
O mito da liberdade de expressão já foi elegantemente derrubado por esse fio do @XadrezVerbal e outros tantos que comentaram sobre as inconsistências do dono do antigo Twitter.
1. Ainda em 2020, Musk fez um tweet jocoso sobre o golpe que destituiu Evo Morales na Bolívia. "Vamos dar golpe em quem a gente quiser! Lidem com isso", disse o dono da Tesla. O posicionamento foi entendido como legitimação de intervenção estrangeira por recursos (no caso, lítio)
Acabei de ouvir o discurso de Lula na ONU. Li mais cedo, meio correndo, mas agora posso comentá-lo com calma.
A impressão geral é uma só: foi um ótimo discurso, de estadista. Há muito tempo um presidente brasileiro não se posicionava tão claramente diante dos problemas globais.
1. E, vejam, não estou falando somente das falas constrangedoras (e muitas vezes mentirosas) de Bolsonaro.
Temer, e sobretudo Dilma, fizeram discursos acanhados, voltados para questões domésticas, sem oferecer uma leitura sofisticada da ordem global - e das posições brasileiras.
2. O discurso de Lula se organizou em 4 eixos. O primeiro, e mais importante, foi um diagnóstico dos problemas do mundo a partir da dimensão da desigualdade.
Na visão do 🇧🇷, a raiz de muitos conflitos e tragédias está na disparidade de renda e oportunidades. E faz sentido.
Sobre as recentes polêmicas de Lula a respeito da guerra na Ucrânia, vou tentar organizar um pouco a bagunça.
Um resumo do fio a seguir: o Brasil acerta nas ações, erra no discurso e, com a visita de Lavrov, se coloca (involuntariamente) numa posição complicada.
Venha comigo 👇🏼
1. Política externa sempre foi uma força de Lula como presidente: sua reputação está muito ligada à imagem que construiu em seus anos de governo.
Mas 20 anos atrás, o Brasil e o mundo eram muito diferentes. Eram desafios de outra ordem, que não exigiam que o país tomasse lados.
2. A visão brasileira era clara: a hegemonia americana era insustentável e o futuro era multipolar. O grande ativo brasileiro era saber transitar bem entre ricos e pobres, grandes e pequenos.
Nossa posição irritava, mas não antagonizava os EUA. As relações foram boas, no geral.
Quando decidi entrar pro Twitter e produzir conteúdo por aqui, em 2018, temia o julgamento de colegas acadêmicos.
Muitos acham a divulgação científica uma atividade menor, incompatível com o rigor metodológico e a complexidade dos fenômenos.
Não é verdade, claro, mas acho que explica pq parte da comunidade científica não se engaja na comunicação mais ampla com a sociedade.
Há outros fatores. Na universidade, são poucos os incentivos para atividades além de ensino e pesquisa. Zero remuneração e pouco reconhecimento.
Dar entrevistas, escrever artigos para jornal, postar nas redes sociais, oferecer cursos de extensão: tudo isso demanda uma quantidade de tempo e esforço que quase sempre vem em prejuízo da pesquisa (ou da qualidade de vida).
Muita gente não entendeu a proposta de Lula de criar um órgão para promover a paz entre Rússia e Ucrânia.
"A ONU já existe!", "isso nunca vai funcionar!", disseram os críticos quando a iniciativa foi aventada, na visita do chanceler Olaf Scholz.
O que Lula quer com essa ideia?
1. Lula entende que tem 4 anos para deixar um grande legado ao país. Ou legados, quem sabe.
O caminho + seguro é o da política externa. Diante de um país dividido, a diplomacia presidencial torna-se instrumento poderoso de legitimidade.
E o melhor: depende pouco do Congresso.
2. Ao assumir em 2003, Lula tinha minoria legislativa e governabilidade frágil. Naquele ano, visitou 30 países. Era tão querido dentro quanto fora do 🇧🇷.
Bolsonaro fez coisa parecida. Em 2019, sem maioria, fez uma agenda externa focada na guerra cultural de Trump e Netanyahu.